Bom Sucesso provou que é possível ser popular abordando a literatura
Novela chega ao fim respeitando a inteligência do público sem partir para o popularesco barato
Publicado em 24/01/2020 às 20:25
Após quase quatro anos de sua última novela, Totalmente Demais (2015-16), Rosane Svartman e Paulo Halm foram escalados novamente para a faixa das 19h. Bom Sucesso, que se encerrou nesta sexta-feira (24), aproximou o público do universo da literatura, que tantas vezes rendeu diversas adaptações dramatúrgicas pela TV. E conseguiu este objetivo sem perder a pegada popular e, de forma geral, com uma qualidade bem consistente durante sua trajetória. Não faltaram aspectos que reforçassem este conjunto positivo.
A substituta de Verão 90 se centrava na curiosa relação entre Paloma (Grazi Massafera), uma batalhadora moradora de Bonsucesso, no subúrbio carioca, e Alberto Prado Monteiro (Antônio Fagundes), sisudo empresário do mercado literário e dono da editora que leva seu sobrenome. O laço entre os dois se estabelece quando, por engano, a costureira descobre que está para morrer e chuta o balde, vivendo as mais variadas loucuras; até descobrir que os exames foram trocados. Encantado com a moça, ele se aproxima dela e os dois criam uma belíssima amizade.
Mãe de três filhos, Paloma os criou sozinha, com muito amor, sem deixar de lado o pulso firme. Alice (Bruna Inocêncio) é filha de Ramon (David Junior), primeiro namorado da estilista, que foi para os EUA para tentar mudar de vida e, sem sucesso, ficou no país, o que deixou a menina ressentida por se sentir abandonada pelo pai. Pouco depois, ela se casou com Elias (Marcelo Farias), com quem teve Gabriela (Giovanna Coimbra) e Peter (João Bravo) – e que desapareceu, sendo dado como morto.
Viúvo, Alberto é pai de Marcos (Rômulo Estrela), um típico bon vivant descompromissado, que se recusa a herdar os negócios do pai; e de Mariana (Fabiula Nascimento), mais conhecida como Nana, uma workaholic por natureza, que herdou toda a responsabilidade de tocar a editora pra frente e sempre entrou em conflito com o empresário por sentir que nunca recebeu o merecido reconhecimento.
Casada com o corrupto Diogo (Armando Babaioff) e mãe de Sofia (Valentina Vieira), Nana redescobre a leveza da vida quando se dá conta que está apaixonada por Mário (Lúcio Mauro Filho), tradutor da editora, um romântico incorrigível e eternamente apaixonado pela executiva; ao mesmo tempo em que se liberta de um inferno, no qual Diogo a manipula de todas as formas e a trai com Gisele (Sheron Menezzes), assistente pessoal da herdeira da Prado Monteiro.
Marcos, um típico mulherengo, descobre-se verdadeiramente apaixonado após transar com Paloma sem compromisso (uma das loucuras que a mocinha viveu achando que iria morrer) e investe de todas as formas possíveis para conquistá-la. Ao mesmo tempo, Ramon deixa o ciúme falar mais alto ao notar a aproximação do playboy – e esta insegurança lhe custou o término da relação amorosa com a mocinha. Ainda assim, o jogador consegue reconquistar o afeto familiar (especialmente da filha) e refaz sua vida ao lado de Francisca (Gabriela Moreyra), obstinada educadora e professora de Alice; enquanto Paloma se entrega de vez ao sentimento por Marcos.
Bom Sucesso e seu viés positivo
Desde o começo, ficou claro que a história seria abordada por um viés positivo. Mesmo à beira da morte, Alberto soube redescobrir os prazeres ao lado de Paloma, inicialmente contra a vontade de Nana, cuja primeira impressão sobre a mocinha foi a pior possível. Aos poucos, a costureira foi conquistando todos à sua volta e criou um belíssimo vínculo com o empresário, que a aproximou ainda mais do universo da literatura, enquanto ela o fazia reviver os prazeres populares de sua juventude.
Os autores souberam construir um enredo consistente, repleto de qualidades e que respeitasse a inteligência do seu público, sem confundir o popular com o popularesco barato. A começar pela construção de Paloma, uma protagonista muito real, divertida, carismática e de fácil identificação; ou de Nana, um dos tipos mais complexos da novela, que vê tudo virar de cabeça para baixo ao descobrir que Diogo não apenas a traía, como também lhe manipulava descaradamente e chegou ao ponto de estuprá-la enquanto dormia para ter um herdeiro – e mais tarde, ao descobrir que não era pai do filho (e sim Mário, seu grande rival), provocou um acidente que lhe custou a perda do bebê.
Houve ainda espaço para assuntos como a ressocialização, através de Waguinho (Lucas Leto), inicialmente um bandido que participa de um ataque à casa de Paloma, mas consegue se reencontrar e se encanta por Alice, tornando-se seu parceiro literário; os egos da fama, centralizados em Silvana Nolasco (Ingrid Guimarães), uma egocêntrica e deslumbrada atriz de TV, que não enxerga nada além de seu próprio umbigo; e o mundo do basquete, representado pela guinada de Ramon como treinador de um projeto social em Bonsucesso e pela difícil relação entre Gabriela e o riquinho Vicente (Gabriel Contente).
Ponto alto
O ponto mais alto do enredo de Rosane Svartman e Paulo Halm, sem dúvidas, foi a exaltação ao universo da literatura. Várias referências a obras brasileiras, portuguesas e mundiais estiveram presentes em divertidos "sonhos" de Paloma, que fantasiava estar vivendo dentro destes clássicos. Uma abordagem que não apenas homenageou a arte dos livros, mas que igualmente deixou uma poderosa mensagem contra o tratamento que a cultura recebe dos atuais integrantes do governo federal.
O elenco foi um show à parte. Grazi Massafera mergulhou de cabeça e emprestou seu raro carisma a Paloma, numa feliz união de personagem e atriz como poucas vezes se viu recentemente. Rômulo Estrela, após o péssimo Afonso da problemática Deus Salve o Rei, mostrou que era o nome certo para o Marcos; enquanto David Junior esbanjou segurança cênica e representatividade na pele de Ramon. Já Antônio Fagundes ganhou o seu melhor papel em anos, mostrando uma atuação arrebatadora e inspirada, tornando Alberto um dos tipos mais completos, complexos e icônicos de sua carreira.
Ainda merecem aplausos Fabiula Nascimento, que engrandeceu sua Nana com uma magnífica interpretação; Armando Babaioff, genial como o debochado e interesseiro Diogo; Lúcio Mauro Filho, excelente na pele do apaixonado Mário; Sheron Menezzes, em seu melhor momento ao viver a sensual e ambiciosa Gisele; Ingrid Guimarães, esbanjando talento e graça com sua Silvana Nolasco; João Bravo, que já havia brilhado em A Força do Querer e agora repetiu a excelência; Gabriela Moreyra, excelente como a professora Francisca; além do surgimento de gratas revelações como a talentosa Valentina Vieira (maravilhosa como Sofia), Giovanna Coimbra, Lucas Leto, Igor Fernandez (ótimo como Luan, primeiro namorado de Alice), Caio Cabral (Patrick, amigo de Gabriela e rival de Vicente), e das ótimas participações de Ângela Vieira, Helena Fernandes, Eduardo Galvão, Romeu Evaristo, Stella Freitas e Walter Brêda.
Outro acerto de Bom Sucesso foi a participação de atrizes de Totalmente Demais revivendo suas personagens (expediente já usado por veteranos como Sílvio de Abreu e Aguinaldo Silva): Fernanda Motta e Lavínia Vlasak reviveram as modelos Dani e Natasha, que já foram namoradas de Marcos, bem como de Arthur (o bon vivant vivido por Fábio Assunção na novela de 2016); e, mais tarde, Marina Ruy Barbosa participou resgatando sua mocinha Eliza, agora uma modelo de sucesso, durante o desfile da grife de Paloma e Nana.
Também houve derrapadas
Ainda assim, houve derrapadas. A principal delas foi o retorno de Elias, agora como um perigoso bandido, para ajudar Gabriela a sobreviver a um acidente provocado por Diogo contra Alberto. A chantagem do pai da garota fez lembrar do retorno de Sofia (Priscila Steinman), a garota que parecia a filha perfeita em Totalmente Demais, mas voltou para tocar o terror. Durante o período em que Elias esteve em cena, Bom Sucesso parecia outra trama, repetitiva e desinteressante – não pelo peso da situação, mas pela sensação de repetição e pelo domínio do assunto no enredo.
E a sensação de cansaço persistiu quando Diogo voltou à editora. O advogado tomou o controle da Prado Monteiro através de uma fraude envolvendo Eric Feitosa (o sempre excelente Jonas Bloch), antigo rival de Alberto, e adotou uma postura ditatorial que mais parecia lembrar os desmandos de Fabiana (Nathalia Dill), a vilã criada no convento de A Dona do Pedaço, de Walcyr Carrasco, exibida ao mesmo tempo. No entanto, a derrocada do vilão rendeu emocionantes sequências, especialmente quando ele incendeia a editora, mas acaba dominado por Gisele – que era mantida em cárcere privado.
Outro equívoco de Bom Sucesso foi a abordagem da transexualidade através de Michelly (Gabrielle Joie). De início, parecia que a colega de Gabriela, Vicente e Patrick seria tratada de uma forma natural, com dilemas, vivências e problemas relativos à transfobia. Porém, a personagem simplesmente não aconteceu e ficou relegada a terceiro plano. Na última semana, ela teve seu desfecho ao conquistar o direito de usar o banheiro feminino e o seu nome social, mas a cena soou deslocada diante do pouco aproveitamento da atriz.
Bom Sucesso recupera o fôlego na reta final
Felizmente, na reta final, a sensação de perda de fôlego se reverteu e Bom Sucesso voltou a apresentar grandiosas cenas. A primeira delas, após o incêndio da editora, foi uma homenagem que William (Diego Montez) prestou à amiga Gisele cantando Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. Pouco depois, nos escombros da editora, Alberto e os colegas, simbolicamente, salvaram livros clássicos brasileiros e mundiais, demonstrando que a arte resiste a qualquer tentativa de destruição.
E, na última quarta-feira (23), outro grande momento despertou merecidos elogios. No desfile da Unidos de Bom Sucesso, Paloma viu sua chance de brilhar na avenida destruída por Silvana – a rainha de bateria torceu o pé e roubou a fantasia da costureira para desfilar no carro alegórico, sendo mais tarde desmascarada por Lulu (Carla Cristina Cardoso), cunhada da loira. Alberto, após uma tentativa de fuga do hospital, foi liberado para curtir o desfile. Até que, juntos, eles cruzam a avenida, coroando a belíssima amizade cultivada ao longo da novela. As cenas foram gravadas no Carnaval do ano passado, durante os bastidores do desfile real das escolas do Rio de Janeiro, e primaram pela emoção.
Entre acertos e erros, Bom Sucesso foi merecidamente aclamada e os autores Rosane Svartman e Paulo Halm, embora ainda repitam vícios e marcas de suas passagens por Malhação, mostraram estar prontos para voos ainda mais altos. A novela soube aliar boa qualidade e audiência – prova disso é sua média geral de 29 pontos, a melhor desde o arrasa-quarteirão Cheias de Charme (2012) – e deixou claro que é possível fazer um enredo popular com inteligência.
Autores, direção, elenco e equipe estão de parabéns por esta tão deliciosa trama, que mais uma vez deixa uma grande responsabilidade para Daniel Ortiz, que já os havia substituído com Haja Coração (2016) e volta à faixa com Salve-Se Quem Puder.