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2019: Um ano de desencontros entre audiência e qualidade na teledramaturgia

Coluna faz uma retrospectiva do ano na dramaturgia


Juliana Paes como Maria da Paz
Juliana Paes fez grande sucesso como a Maria da Paz em A Dona do Pedaço - Divulgação

O ano que se encerra foi mais generoso que 2018 em relação à teledramaturgia. Porém, nem tanto. 2019 foi um ano em que, com algumas exceções, a qualidade dramatúrgica nem sempre encontrou os altos índices do Ibope. Produções primorosas não receberam o prestígio merecido enquanto outras foram mais valorizadas do que deveriam, as séries avançaram ainda mais, a Record se reencontrou com o universo não-bíblico e o comodismo começou a custar caro para o SBT.

2019 começou com a redenção de Espelho da Vida, na faixa das 18h. Na metade de sua exibição e outrora criticada por sua lentidão e por sua baixa audiência, a novela de Elizabeth Jhin virou o jogo e passou a empolgar cada vez mais com sua trama diferenciada, jogando com presente e passado ao mesmo tempo e valorizando ainda mais o primoroso elenco, de nomes talentosos como Vitória Strada, Alinne Moraes, Irene Ravache, Felipe Camargo, Rafael Cardoso, João Vicente de Castro e Felipe Camargo. Em tempos onde é comum novelas começarem empolgando e morrerem na praia, Espelho foi um raro caso contrário e concluiu sua trajetória mostrando que merecia ter sido muito mais valorizada.

Sua sucessora Órfãos da Terra não teve a mesma sorte. A novela que trouxe Duca Rachid e Thelma Guedes de volta à faixa das 18h empolgou no primeiro mês, em grande parte graças ao terrorismo do vilão Aziz (Herson Capri). Bastou o crápula morrer para que tudo fosse por água abaixo. A novela perdeu o fôlego e passou a andar em círculos, numa vergonhosa trajetória que desaproveitou grande parte de suas tramas e ainda reiterou o vício das autoras pelo recurso dos sequestros para movimentar o enredo. Apesar disso, Órfãos conseguiu aumentar a audiência em 4 pontos de sua antecessora.

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O título atual do horário, Éramos Seis, chama atenção pela regularidade. Bonita e bem cuidada, a quinta adaptação do clássico literário de Maria José Dupré, ao contrário da novela de Duca e Thelma, vem conduzindo muito bem o seu enredo e apresenta algumas sutis diferenças para as outras versões, como o fato de Lola (Glória Pires) ter mais voz ativa e o retorno de Inês (Carol Macedo) para seu pai adotivo, Afonso (Cássio Gabus Mendes). Ainda merece elogios o elenco bem escolhido, com destaque para Eduardo Sterblitch, Maria Eduarda de Carvalho, Simone Spoladore, Kelzy Ecard, Nicolas Prattes, Bárbara Reis, Danilo Mesquita e Giullia Buscacio, além dos já citados Glória, Carol e Cássio.

O horário das sete viu o apagar das luzes de O Tempo Não Para (2018), uma elogiada ideia de Mário Teixeira que morreu na praia; e a chegada de Verão 90, de Izabel de Oliveira e Paula Amaral. Pautada na memória afetiva dos anos 90, a última novela dirigida por Jorge Fernando recuperou o horário e conquistou o público pela leveza e despretensão, apesar do enredo malcuidado das autoras. Nomes como Camila Queiroz, Jesuíta Barbosa, Totia Meirelles, Gabriel Godoy, Dandara Mariana e Cláudia Raia se destacaram, mas também houve desacertos, como as constrangedoras interpretações de Débora Nascimento e Humberto Martins – este último saiu da novela como se nunca tivesse estado, tanto que nem fez falta.

E o sucesso da faixa se ampliaria ainda mais com a nova empreitada de Rosane Svartman e Paulo Halm: Bom Sucesso, iniciada em julho, chega à sua reta final aclamada por público e crítica, especialmente por sua capacidade de mostrar um enredo popular que não beirasse o caricatural ou o grotesco. Apoiada em referências à literatura, a novela encantou pela intensa química de Grazi Massafera e Rômulo Estrela (os protagonistas Paloma e Marcos), pelos desempenhos brilhantes de Antônio Fagundes, Fabiula Nascimento, Armando Babaioff, Sheron Menezzes e Lúcio Mauro Filho, entre outros; gratas revelações como Bruna Inocêncio, Lucas Leto e Giovanna Coimbra; e pela representatividade nas escalações de atores negros em tipos fora do usual, como David Junior, Carla Cristina Cardoso e Romeu Evaristo. Claro, nem tudo é perfeito: a novela apresentou recentemente o retorno de Elias (Marcelo Faria), pai dos outros filhos de Paloma, em um entrecho pesado sem muita utilidade. No entanto, o quadro geral de Bom Sucesso é muito positivo.

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Na faixa das 21h, O Sétimo Guardião causou mais barulho pelos fatores externos do que pela trama em si. A tão alardeada volta de Aguinaldo Silva ao realismo fantástico, temperada pela briga judicial sobre sua autoria, fracassou por completo e chamou mais atenção pelo conflito envolvendo a separação de José Loreto e Débora Nascimento por um suposto envolvimento com Marina Ruy Barbosa, protagonista de Guardião. Talentos foram desaproveitados e desempenhos péssimos gritavam na tela, como a criticada atuação de Yanna Lavigne. No último capítulo, o vilão de Tony Ramos, atingido por um tiro, perguntava: que m**** é essa?. Um sintoma do desastre que foi Guardião.

Coube a Walcyr Carrasco, mais uma vez, ressuscitar a pátria. Com A Dona do Pedaço, o autor mostrou porque é o grande curinga da dramaturgia global. Mesclando o apelo popular de seus personagens com um estilo de novela já explorado em suas empreitadas anteriores, apostando na catarse fácil, mesmo que sacrificando a lógica e a coerência, Walcyr emplacou mais um grande sucesso que dividiu público e crítica (para a qual deu de ombros novamente), e que teve seu maior trunfo de elenco na força feminina, com o brilhantismo de atrizes como Juliana Paes, Paolla Oliveira e Nathalia Dill; em detrimento de nomes masculinos como Marcos Palmeira (cujo protagonista sumiu em cena) e Malvino Salvador (mais uma vez repetitivo). Outro grande trunfo de A Dona do Pedaço foi ressignificar as relações comerciais com a emissora, justamente pelo forte apelo comercial tanto de Maria da Paz (Ju Paes) quanto de Vivi Guedes (Paolla), que ganhou um instagram na vida real que chegou a mais de 2,5 milhões de seguidores. No mais, a trama foi a máxima maior da expressão audiência e qualidade nem sempre andam juntas.

Depois da empreitada de Walcyr, o horário das 9 abriu espaço para o lançamento de Manuela Dias e sua Amor de Mãe. A autora de Justiça teve sua obra vendida como uma grande revolução para a teledramaturgia. Os capítulos exibidos até o momento mostraram que não. Mesmo sendo bem melhor escrita que suas anteriores e com uma embalagem mais bem cuidada, Amor de Mãe é uma típica novela, com seus clichês – o que não é nenhum demérito. Entre seus principais trunfos, a vitoriosa retomada de Regina Casé às novelas, com uma impagável interpretação de sua Lurdes. A ela se somam Taís Araújo (ótima como a dúbia advogada Vitória), Adriana Esteves (excelente em sua interpretação da possessiva Thelma), Isis Valverde (que emocionou especialmente nas cenas em que sua personagem Betina é agredida pelo ex-marido), Humberto Carrão (de volta às novelas com um tipo promissor), Irandhir Santos (genial como o empresário Álvaro) e Enrique Diaz (ótimo na pele de Durval).

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Malhação, por sua vez, quebrou o ciclo de que uma temporada ruim era sempre substituída por uma boa. Toda Forma de Amar, sucessora da vergonhosa Vidas Brasileiras iniciou empolgando e prometendo bons temas, como a questão da adoção no seu núcleo principal e a atuação das milícias. No entanto, Emanuel Jacobina, como já havia acontecido em Seu Lugar no Mundo e Pro Dia Nascer Feliz, não soube conduzir as histórias e a sensação é de que nada sai do lugar, especialmente na trama central, onde a disputa de Rita (Alanis Guillen) e Lígia (Paloma Duarte) pela filha ultrapassou todos os limites da paciência.

2019 ficou marcado ainda por mais controvérsias na gestão de Silvio de Abreu como diretor de teledramaturgia da Globo. O autor, que ano passado promoveu a troca de posições entre A Dona do Pedaço e Amor de Mãe; cancelou a faixa de novelas das 23h (as ditas superséries), que agora serão produzidas exclusivamente para o Globoplay – caso de Verdades Secretas 2, continuação da aclamada novela de Walcyr Carrasco –; e suspendeu dois projetos previstos para a faixa: Irmãos de Sangue, de Euclydes Marinho, e O Selvagem da Ópera, de Maria Adelaide Amaral. Esta última foi transformada em um projeto de novela das 18h.

Nos lados da Barra Funda, a Record viu o desgaste do segmento religioso se acentuar com a diminuição do interesse do público pelas obras bíblicas – nem mesmo Jezabel, que sucedeu Jesus, conseguiu chamar a atenção. Roteiristas de elogiados trabalhos deixaram a emissora, como Marcílio Moraes e Gustavo Reiz. Ainda assim, a Record conseguiu retomar a produção de novelas contemporâneas longe da religião. Topíssima, protagonizada por Camila Rodrigues, foi um bom exemplo desta retomada. Elogiada por seu enredo ágil e bem conduzida por Cristianne Fridman, a novela conquistou um público fiel e mostrou que a retomada desse caminho pode ser benéfica. Curiosamente, Cristianne assinou duas novelas inéditas ao mesmo tempo e agora também é responsável por Amor Sem Igual, atual trama em cartaz. Uma situação que lembra os primórdios da Globo, quando Janete Clair emendava novelas seguidas.

2019: Um ano de desencontros entre audiência e qualidade na teledramaturgia

Já no SBT, a sensação foi de comodismo. Com exceção da segunda temporada de A Garota da Moto, não houve mais nenhum investimento em teledramaturgia. As Aventuras de Poliana, aclamada no ano anterior, paga agora o preço de sua duração longuíssima. Não bastasse a previsível perda de fôlego do enredo, a novela perdeu ainda vários profissionais que estão deixando até mesmo a emissora – entre eles, Larissa Manoela, principal estrela do ciclo infantil do SBT nesta década, que chegou à maioridade pronta para novos desafios e com especulações de uma possível ida para a Globo.

Se nas novelas a situação não foi muito abonadora, o campo de séries continuou fervilhando de ideias. A Globo ampliou o seu leque de opções para o Globoplay investindo em produtos como Aruanas, elogiado enredo de temática ambiental; A Divisão, que trata da dura rotina da divisão antissequestro da Polícia Militar do Rio; a controversa Eu, A Avó e A Boi, baseada em uma divertida thread do Twitter, mas que vem atraindo uma recepção bem menos generosa; e a nova temporada de Ilha de Ferro, com novas aquisições para seu elenco, como Rômulo Estrela, Mariana Ximenes e Erom Cordeiro. Na TV aberta, Sob Pressão escapou do cancelamento definitivo e impactou com um afiado enredo e especialmente por um episódio formado por três longas sequências sem corte de câmera, nas quais se viu um arrebatador desempenho de Marjorie Estiano e a versatilidade de Júlio Andrade ao se lançar como diretor da obra.

Antes, a agradável Cine Holliudy trouxe leveza ao rememorar os antigos cinemas do interior do Nordeste e a inventividade de seu protagonista Francisgleydisson (Edmilson Filho) para salvar o seu empreendimento da guerra contra a televisão nos anos 70. Ao mesmo tempo, Carcereiros trouxe novas histórias a respeito da difícil realidade dos presídios brasileiros; Assédio, baseada na saga criminosa de Roger Abdelmassih, chegava à TV aberta de forma importante e necessária; e Se Eu Fechar os Olhos Agora (produzida e lançada em 2018 no Now) trouxe uma impactante e densa trama.

2019: Um ano de desencontros entre audiência e qualidade na teledramaturgia

Mas o melhor ainda estava por vir: em outubro, chegaria o maior achado do ano na teledramaturgia global. Segunda Chamada, de Carla Faour e Júlia Spadaccini, foi aclamada por seu retrato cru das dificuldades da educação do Brasil e ainda levantou a bandeira do respeito à diversidade e da defesa de um país mais justo e igualitário, temperada pelo desempenho de nomes como Débora Bloch, Paulo Gorgulho, Sílvio Guindane, Thalita Carauta, Hermila Guedes, Linn da Quebrada, Teca Pereira, Felipe Simas, Caio Blat, Leonardo Bittencourt e vários outros.

A Netflix, por sua vez, não deixou barato. Coisa Mais Linda, melhor lançamento do ano na plataforma de streaming, tratou sobre o feminismo na virada dos anos 50/60 e a luta das mulheres contra o machismo da época, que ganhou força pelas brilhantes interpretações de Maria Casadevall, Fernanda Vasconcellos, Pathy Dejesus e Mel Lisboa. Também ganharam destaque as novas temporadas de Samantha e O Mecanismo, bem como os lançamentos da irregular O Escolhido e de Sintonia, que versou sobre o universo do funk paulista, com a direção do produtor de funk Kondzilla.

A teledramaturgia em 2019 ganhou impulsos mais generosos que o ano passado e trouxe resultados mais abonadores. O horário das 19h vive o seu melhor momento em anos; a faixa das 18h, apesar de alguns desacertos, ainda é a de maior regularidade; e as novelas das 21h foram as que mais viveram a contradição entre qualidade e audiência. A Record se permitiu arriscar ao retomar a dramaturgia tradicional sem viés religioso; enquanto o SBT paga pela falta de ousadia. E o mercado de streaming continua crescendo, com fortes apostas para 2020, como Onde Está Meu Coração, Desalma, Arcanjo Renegado e As Five (esta um spin-off de Malhação: Viva a Diferença), na Globoplay; e Spectros, Ninguém Tá Olhando e Cidade Invisível, na Netflix.

Nas novelas, títulos como Nos Tempos do Imperador (de Alessandro Marson e Thereza Falcão, às 18h); Além da Ilusão (Alessandra Poggi, 18h); Salve-se Quem Puder (Daniel Ortiz, 19h), Em Seu Lugar (Lícia Manzo, 21h) e o novo projeto de João Emanuel Carneiro também estão na mira das apostas do público.

Que 2020 seja ainda mais generoso e nos traga ainda mais produções de qualidade e que elas sejam valorizadas como merecem. Feliz Ano Novo a todos!

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