Com realismo, Segunda Chamada é duro retrato do Brasil através da educação
Comparada a Sob Pressão, série impressiona pelo enredo de tirar o fôlego
Publicado em 10/10/2019 às 09:46
Uma equipe de professores de educação para jovens e adultos obstinada, que dá a vida por seus estudantes, enfrenta a falta de estrutura básica e ainda lida com seus problemas particulares. Este é o mote de Segunda Chamada, novo seriado que a Globo iniciou na última terça-feira (8). A história de Jô Bilac, Carla Faour e Júlia Spadacini, escrita pelas duas últimas, fez uma estreia de tirar o fôlego. As primeiras impressões foram as melhores possíveis.
O cenário do enredo é a ficítica Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, em São Paulo. Lá, inúmeros jovens e adultos, de diferentes vivências, dores e experiências, se encontram em prol de um objetivo maior: a esperança de um futuro melhor. Ao lado deles, uma aguerrida equipe dá a vida por estes alunos: Lúcia (Débora Bloch), uma professora de ensino diurno que volta a dar aulas três anos depois de um aluno seu morrer em sala; Jaci (Paulo Gorgulho), novo diretor da instituição, homem rude, mas carismático; Sônia (Hermila Guedes), uma educadora desmotivada, que exerce seu ofício apenas por obrigação; Eliete (Thalita Carauta), também professora, mulher livre, empoderada e bem resolvida; e Marco André (Sílvio Guindane), educador vindo da rede particular, que vê um iminente choque de realidades.
A equipe se depara com os conflitos de vários de seus alunos. Natasha (a rapper Linn da Quebrada) é travesti e luta para ser respeitada e combater a constante transfobia; Gislaine (Mariana Nunes), mãe solteira que ganha a vida como prostituta; Maicon Douglas (Felipe Simas), um motoboy que sofre com a pesada rotina de trabalho e enfrenta problemas com o uso de drogas; Solange (Carol Duarte), também mãe, que se vê obrigada a estudar com sua filha no colo, enfrentando resistências; e Dona Jurema (Teca Pereira), que representa as pessoas de idade mais avançada e a mensagem de que nunca é tarde para adquirir conhecimento.
O primeiro episódio pode ser definido como uma grande porrada no estômago. Só sobrava tempo para respirar nos intervalos. Muito mais que um tratado sobre a educação, a série se revelou logo em sua estreia um fiel retrato do Brasil em suas mais latentes nuances. Houve espaço para transfobia, homofobia, racismo, desigualdade... E nada disso foi abordado de forma rasa. Muito pelo contrário. O apurado texto das autoras, aliado à intensa direção da equipe de Joana Jabace (estreando como diretora artística), deu todo o impacto necessário a esta dura realidade.
O elenco de alto nível também merece muitos elogios, a começar por Débora Bloch. A grandiosa atriz vive um feliz momento de bons papeis e a atual personagem dá mostras de que veio para somar em seu currículo. Também é ótimo ver Felipe Simas em um personagem denso; o grande Paulo Gorgulho de volta à Globo, após um período na Record; Thalita Carauta mostrando versatilidade e apagando a imagem cômica à qual é associada; e também Carol Duarte, enfim valorizada após brilhar em A Força do Querer (2017) e ser uma figurante de luxo na malfadada O Sétimo Guardião (2018-19).
Segunda Chamada: Sob Pressão da educação
Ainda agregam positivamente à série a ótima trilha sonora, com destaque para Sujeito de Sorte, do saudoso Belchior; Amarelo, parceria de Emicida, Majur e Pabllo Vittar, que inclui um trecho da já citada Sujeito de Sorte; bem como a ótima versão de Elza Soares para Comportamento Geral, de Gonzaguinha, que embala a abertura. Na parte visual, o cenário chama a atenção por sua ambientação ser feita em uma escola de fato precária: uma desativada unidade do Colégio Equipe, que recebeu a antiga Escola do Jockey Clube de São Paulo. O nome da unidade, por sua vez, presta uma justa homenagem a Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do país.
Todo o conjunto de qualidades apresentado em seu primeiro capítulo fez com que Segunda Chamada fosse considerada uma espécie de Sob Pressão da educação, traçando um feliz paralelo com a aclamada série de Jorge Furtado e equipe, através de elementos em comum como a abordagem do Brasil pela óptica de uma dura realidade (no caso desta, a saúde); a presença de protagonistas aguerridos e obstinados em seus objetivos; e o elenco de alto nível, desde os nomes fixos até as participações.
A única coisa que se deve lamentar é a infeliz escolha do horário de exibição da nova série, na segunda faixa de shows de terça da Globo. Certamente, seu impacto seria muito maior se tivesse vindo no primeiro horário, herdando as boas audiências da novela das 21h, A Dona do Pedaço – este posto foi destinado à comédia Filhos da Pátria, que chega à sua segunda temporada sob uma nova ambientação. Isso se refletiu na audiência de 12 pontos, pouco para uma série com potencial infinitamente superior ao do produto que a antecede na grade.
Ainda assim, Segunda Chamada despertou a melhor impressão possível no público. Com boas atuações, enredo de tirar o fôlego, situações de grande apelo social e texto e direção de alta qualidade, a série tem tudo pra se tornar um dos melhores produtos já produzidos pela Globo neste último trimestre, evidenciando o apuro da emissora na produção de suas séries recentes.