Quarta Parede

Milton Gonçalves ousou ao "criar asas" e aparecer de terno e gravata nos anos 1970

Ator, que morreu nesta segunda-feira (30), aos 88 anos, foi pioneiro da TV e reivindicou papéis de destaque para negros em novelas da Globo

Milton Gonçalves pediu um personagem que "usasse terno e gravata" e ganhou o psiquiatra Percival da novelista Janete Clair - Foto: Divulgação/Globo
Por Walter Felix

Publicado em 30/05/2022 às 16:25:00,
atualizado em 30/05/2022 às 16:27:30

Milton Gonçalves foi um dos primeiros atores negros a conseguir destaque na TV brasileira. Pioneiro, o artista que morreu nesta segunda-feira (30), aos 88 anos, reivindicou esse lugar junto aos autores daquela época. Nos anos 1970, ousou ao “criar asas” em O Bem-Amado (1973), numa alusão à liberdade em meio à ditadura militar, e apareceu de terno e gravata, afastando-se dos papéis estereotipados, em Pecado Capital (1975).

Papel de Milton Gonçalves em O Bem-Amado, Zelão realiza seu sonho e voa no último capítulo da trama de Dias Gomes. Ingênuo, o personagem confecciona asas desde o início da trama e acredita que, por um milagre, conseguiria alçar voo ao pular do alto da igreja. E consegue, na última cena da história, como um elogio à liberdade em uma novela marcada pela censura do regime militar, em vigor na época.

“Meu personagem levava dentro dele isso que nós brasileiros devemos sempre ter: esperança de que um dia as coisas vão estar melhor, vão mudar. Ele tinha como bordão ‘Quem tem fé voa’.”

Milton Gonçalves, em entrevista ao Vídeo Show, em 2013

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Personagem de Milton Gonçalves casado com mulher branca enfrentou preconceito do público em 1981

Já em Pecado Capital, de Janete Clair, o ator deu vida ao psiquiatra Percival. Um tipo, até então, incomum na TV: um homem negro bem-sucedido, com uma profissão consolidada. Em entrevista ao G1, em 2008, ele falou esse papel: “Interpretei muitos papéis considerados clichês para um ator negro. Até que um dia cheguei no Dias Gomes e pedi um personagem que usasse terno, gravata e falasse um português correto. E foi pelas mãos da Janete Clair que vivi um psiquiatra, o doutor Percival”.

Na época, a autora abordou o racismo na trama e chegou a planejar um romance entre o personagem e Vitória (Theresa Amayo). Não aconteceu, especialmente porque a audiência, em grande parte preconceituosa, rejeitou a ideia. Um romance interracial viria anos depois, em Baila Comigo (1981), de Manoel Carlos. Seu par romântico, a atriz Beatriz Lyra chegou a ser hostilizada nas ruas pelo casal da ficção.

Ainda no depoimento ao G1, Milton relembrou: “Meu personagem, o Otto, era casado com o da atriz Beatriz Lyra, e você não imagina o que ela sofreu na época, coitada. Foram muitas críticas, do público e até dentro da própria equipe da novela. Era muito raro uma atriz branca, bonita e conceituada fazer par romântico com um ator negro, mesmo ele também sendo bonito e conceituado”.

Em entrevistas mais recentes, Milton ressaltou o pouco espaço que artistas negros ainda têm na TV. É certo que muito mudou dos anos 1970 e 1980 até os dias de hoje, mas a luta contra o racismo e a busca por representatividade ainda está longe do fim, como o próprio artista frisava. Nessa história, que ainda tem muitos capítulos pela frente, o veterano ator sai de cena após ocupar o lugar que sempre lhe coube: o de protagonista.



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