Em 2012, o Grupo Globo mexeu com as estruturas do esporte no Brasil ao unificar os direitos de exibição do UFC (Ultimate Fighting Championship) nas TVs aberta e fechada. Era a consolidação de uma febre: Galvão Bueno cunhou um novo bordão, o dos “gladiadores do terceiro milênio”, e o país parou para acompanhar as lutas de Anderson Silva e outros grandes nomes das artes marciais mistas - estilo que combina técnicas de diferentes disciplinas de combate e é conhecida como MMA, da sigla em inglês.
Corta para 1º de janeiro deste ano. Fora da TV aberta desde o começo de 2019 e longe do auge de popularidade, o UFC encerrou definitivamente a parceria com a Globo (que ainda fazia transmissões na televisão por assinatura e internet, por meio do Combate) para dar o seu passo mais audacioso no nosso país: lançar um streaming próprio, o UFC Fight Pass.
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Agora, o objetivo da organização americana é recuperar o terreno perdido nos últimos anos.
“Algumas coisas começaram a faltar [na parceria com a Globo]”, revela o vice-presidente sênior do UFC para a América Latina, Eduardo Galetti, em entrevista exclusiva para a coluna Mídia, Mercado e Etc. “Ao longo da história, por decisões de negócio, o canal Combate começou a ficar mais fechado e a receita da TV aberta começou a ficar menor.”
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“O contrato de televisão aberta com a Globo terminou no final de 2018, não teve mais a partir de 2019. Eram acordos separados, o do SporTV e canal Combate era um, com a [então] Globosat - e tinha um outro, que era o da TV Globo. O acordo da aberta terminou - não por falta de interesse, na verdade nossas audiências sempre foram muito muito altas -, mas o foco foi trazer a receita para assinatura, para quem paga.”
Na visão do executivo, a estratégia hoje se mostra errada. Se antes eram exibidos seis eventos por ano no canal aberto, nessa nova fase o Ultimate passou a ser mencionado apenas editorialmente - ou seja, como notícia nos telejornais e programas esportivos. Isso transformou o maior torneio de MMA do mundo em um produto mais de nicho, separado do público amplo.
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Pode-se afirmar que a Globo, então, virou um obstáculo: não tinha interesse em dar espaço na maior vitrine da TV aberta e, na fechada, exigia uma exclusividade que impedia o lançamento do Fight Pass no Brasil.
Ainda assim, existiu uma tentativa de novo acordo entre os dois lados, mas que “não houve consenso”. “Foram grandes parceiros, nos ajudaram a chegar até aqui, mas foi uma decisão nossa levar esse produto para o próximo nível, de ter uma plataforma realmente robusta”, afirma Galetti em um tom político.
“Quando a gente começou a montar esse projeto [do Fight Pass], falamos: ‘Precisamos voltar a ter um braço de TV aberta”, relembra o executivo. Esse parceiro é a Band que, desde o começo deste mês, exibe parte do cardápio do UFC.
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“Criamos o ecossistema no qual dos 43 eventos que temos ao longo do ano, 12 deles - seis preliminares ou seis cards principais - estão na TV Bandeirantes, onde a gente consegue mostrar para o grande público que o Brasil vive um dos maiores momentos da história, com [no momento da entrevista] quatro cinturões. O grande público precisa ver isso”, relata Galletti. “A Band é um canal que sabe fazer esporte, eles são muito bons em fazer promoção, tem muita programação esportiva. Nesse formato, conseguimos atingir um bolo maior, de três a seis milhões de pessoas numa transmissão, aí começamos a fazer as nossas conversões maiores [no streaming]”.
O acordo entre o Ultimate e a Band é diferente do antigo, com a Globo. Além de não envolver TV por assinatura - agora única forma de acompanhar todas as lutas passa a ser o Fight Pass -, o UFC entrega as transmissões prontas para o canal aberto, incluindo narração e comentários.
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O desafio do próprio app
O UFC Fight Pass é uma espécie de “Netflix do MMA”. Por R$ 29,90 mensais ou R$ 298,80 anuais, o assinante conta com eventos ao vivo do UFC, da americana LFA e da francesa ARES, entre outras, além do enorme arquivo de lutas, reality shows e documentários do próprio Ultimate e dos já encerrados Pride e Strikeforce. O valor é consideravelmente mais baixo do que o Combate, que em tempos áureos chegou a cobrar R$ 69,90 de mensalidade.
O app já está disponível nos dispositivos Apple, Android, Amazon, Xbox, Roku, Chromecast, e smart TVs LG, entre outros, e também pode ser acessado por qualquer navegador de internet. Além disso, há conversas para distribuição do conteúdo em parceria com as operadoras Claro, Vivo e Sky.
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Porém, como Galetti fez questão de lembrar em mais de um momento durante a entrevista, o UFC é um promotor de eventos. Ou seja, a tecnologia de uma plataforma de streaming não está diretamente ligada ao principal negócio da empresa. Há alguma chance de problemas? “A tecnologia por trás do Fight Pass já é muito testada”, revela Galletti.
É que o Brasil demorou a entrar na festa. O UFC Fight Pass foi lançado originalmente no final de 2013, há quase dez anos. Porém, o antigo acordo com a Globo exigia exclusividade, como já mencionado, o que adiou em quase dez anos a chegada por aqui. “Só faltava Brasil e China”, diz. “Agora, ir sozinho dá um frio na barriga, sim”, confessa o executivo.
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Durante o UFC no Rio, no último sábado (21), esta coluna encontrou algumas dificuldades e instabilidades no uso do app para iPad, principalmente nos momentos de algumas lutas - no computador e na Apple TV a experiência foi mais suave. Além disso, havia um delay (atraso) em relação à exibição ao vivo na Band, de cerca de 35 segundos - um pouco mais do que o habitual nesse tipo de transmissão. Na acessibilidade, as legendas ocultas (closed caption) pareciam feitas de forma automática, com grande índice de erros. São pontos a serem ajustados.
Outro desafio envolve a chamada localização - que inclui disponibilizar legendas, dublagens e locuções em português. É um trabalho que contempla o esforço de tradução, mas também da tecnologia de dar, ao usuário, a opção de escolher em qual língua ele vai consumir o conteúdo.
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Nesse sentido, Eduardo Galetti conta que o UFC procurou um caminho diferente de streamings como Disney+ e HBO Max, que, entre outros motivos, seguraram séries e filmes antigos para disponibilizá-los apenas quando dublagens e legendas estivessem disponíveis. O Fight Pass já foi lançado com todo o catálogo, mesmo que grande parte ainda esteja apenas em inglês.
“Começamos uma plataforma do zero. Eu não tenho o número exato, mas são cerca de 650 eventos ao longo dos anos. A gente está falando de oito mil horas de narração. [Mas] Queríamos dar ao nosso fã a oportunidade de ter a experiência de ver as lutas antigas, porque no final das contas luta é luta, né? Então, por mais que ela esteja em inglês, o cara vai lá vai ter experiência.”
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De qualquer forma, uma parte relevante do conteúdo já pode ser conferida na nossa língua. Diversos documentários estão com legendas em português, enquanto eventos clássicos - dos quais as narrações ficaram com a Globo ou com outros parceiros anteriores - passaram por uma nova localização. “Fizemos algumas opções. Nós narramos novamente mil lutas. Fizemos uma curadoria, pegamos as mais importantes, os brasileiros, as coisas mais históricas”, explica.
Os novos eventos ao vivo, de 2023, possuem narração local do próprio UFC, assim como continua a produção de programas brasileiros sobre o campeonato. “Isso vai se acumulando, vai se acumulando, e daqui a pouco a plataforma estará praticamente toda ela já narrada em português.”
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UFC na Netflix?
Enquanto o UFC se lança no mercado de streaming brasileiro, os gigantes do setor enfrentam um momento de dificuldade. Com uma competição acirrada, a necessidade de atrair assinantes e de encontrar um equilíbrio entre receita e custos, algumas empresas do setor - como Apple, Disney, Paramount e Amazon - estão vendo os esportes ao vivo como um caminho. Até a Netflix estaria analisando essa possibilidade.
Será que o Ultimate poderia fechar um contrato do tipo com alguma outra plataforma, nos mesmos moldes daquele com a Band?
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“A gente teve conversas com alguns desses grupos, que nos procuraram com interesse em fazer transmissões de alguns trechos [dos eventos]. Mas não tem, neste momento, nada realmente acontecendo. Eu sei que eles têm interesse no UFC, porque é um conteúdo que traz muita audiência e muito engajamento, mas neste momento o foco é o Fight Pass”.
Questionado sobre quem seriam esses interessados, o executivo desconversa: “Assinamos acordos de confidencialidade”.
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Outro formato que tem tido sucesso é o da produção de séries documentais, seja sobre times ou ligas inteiras, que vão para o streaming e funcionam como isca para as transmissões ao vivo em outros lugares. É o caminho escolhido pela Fórmula 1, que disponibiliza a série Drive to Survive na Netflix e vende a temporada completa em seu próprio app, o F1 TV Pro. Curiosamente, a categoria máxima do automobilismo também tem um acordo de TV no Brasil com a Band.
“Você pega um público ali [na Netflix], que gosta, engaja, se apaixona, e aí se interessa por assistir ao evento ao vivo. Constrói uma marca”, reflete Eduardo Galetti. “Sim, eu acho que é algo bem bacana, funcionaria, mas não é algo que a gente discute hoje.” O executivo lembra que o UFC já produz esse tipo de conteúdo, que é disponibilizado no Fight Pass: “Tem muita série ali dentro”.
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Esporte x entretenimento
Quando uma categoria esportiva passa a ser o seu próprio produto direto para o consumidor, podem surgir questionamentos sobre o que é realidade e o que seria armado para impulsionar o campeonato e vender assinaturas.
A já citada série Drive To Survive, da Netflix, vem sofrendo com críticas de alguns fãs e dos próprios pilotos da categoria justamente por inflamar ou até criar conflitos inexistentes dentro e fora das pistas. No passado distante, havia aqueles que comparavam o MMA àquela luta livre mais teatral, do famoso telecatch, que tem roteiros para os seus embates.
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O UFC poderia se render a isso? Eduardo Galetti é categórico ao dizer que não.
“Primeiro, nosso esporte é esporte, comissionado, com regras claras. O UFC tem o DNA de Las Vegas, de promotor. Nós somos um grupo de promoção, que é o que a gente faz de melhor. Dentro da nossa promoção existe muito barulho, muita bagunça. Existe muitas vezes o real, os lutadores se odeiam de fato, e aquele ódio vai para dentro do octógono. Muitas vezes eles se promovem, falam, são bonachões. O Conor [McGregor] é um cara que promove muito, mas acaba o torneio ele é super ‘fair-play’, super respeitoso. Mas, antes da luta, é um horror, uma bagunça sem fim.”
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O executivo continua, após ser relembrado que o chamado “trash-talking” (com insultos e provocações) vem desde os tempos áureos do boxe, tendo Muhammad Ali como grande expoente.
“É importante dizer o seguinte: nós não botamos palavra na boca do atleta. Não colocamos, nem tiramos. Eles falam o que bem entendem, o posicionamento político é deles, a gente não interfere absolutamente em nada. Se criou essa cultura de chamar atenção e eles gostam de chamar atenção - alguns mais, outros menos. Tem atleta que não chama a atenção e desponta pela capacidade técnica, é mais quieto, e tem outros que tecnicamente não são tão grandiosos, mas criam bastante barulho em cima”, aponta.
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“Toda a construção é feita por eles. Claro que a gente amplifica, é o nosso dever. Mas não criamos essa história, a gente só conta.”
Pois bem, a lição de casa foi feita: o UFC voltou para a TV aberta e o Fight Pass está disponível - tudo “tão real quanto possivel”, como dizia um antigo slogan do campeonato. Os fãs de sempre claramente devem migrar para o novo streaming, mas fica a dúvida se a “MMA-mania” retornará entre o grande público. Será possível reconquistar o espaço perdido após escolhas erradas e uma pandemia no meio do caminho?
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Seja como for, como diria o famoso anunciador das lutas do Ultimate, : “It’s time!”.
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