Opinião

Tem algo quebrado em Hollywood e o desafio é descobrir como consertar

Bilheterias em queda, roteiristas em greve, atores descontentes, empresas em crise financeira: 2023 é o “annus horribilis” do entretenimento


Montagem com cenas do filme Elementos e The Flash
Elementos e The Flash enfrentam problemas na bilheteria - Foto: Montagem/NaTelinha

Em 1992, a então rainha Elizabeth II fez uma rara confissão, a de que estava passando por um péssimo momento em sua vida pessoal. “Nas palavras de um dos meus correspondentes mais simpáticos, acabou por ser um ‘annus horribilis”’ - disse a monarca, trazendo para a atualidade um antigo termo da Igreja Anglicana. 

Passados 31 anos, o annus horribilis cruzou o oceano e chegou na ensolarada Califórnia, onde fica Hollywood. Não dá para dizer que essa crise começou agora. Na realidade, trata-se do resultado de uma série de decisões e mudanças iniciadas há alguns anos. Veio então 2020, com a pandemia, e a transformação se acelerou. 

 Acontece que existia o sentimento de que havia uma luz no fim do túnel. Se os cinemas estavam fechados com a covid-19, o streaming se tornou o futuro. Se esse mesmo streaming patinou a partir do começo do ano passado, o sucesso de Top Gun: Maverick fez todo mundo acreditar que o amanhã, na realidade, seria construído a partir de uma mistura do velho e do novo. 

 Veio então 2023, junto com uma sensação de vazio. A luz no final do túnel não era a do Sol. Pior: pode ser apenas o farol do trem-bala que vai atropelar todo mundo.

 Exagero? Talvez não. Quando olhamos para a bilheteria mundial, apenas Super Mario Bros.: O Filme ultrapassou a marca de US$ 1 bilhão de arrecadação no atual ano. É possível que mais nenhum outro longa-metragem chegue nesse número daqui até dezembro - ainda que haja algumas esperanças. Entre elas, o ótimo “Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte 1”.

Para comparação, 2019 teve nove filmes com mais de US$ 1 bi, sendo que Vingadores: Ultimato chegou em US$ 2 bilhões. Mesmo 2022, já pós-fechamentos na pandemia, houve três longas ultrapassando o número mágico, sendo que Avatar: O Caminho da Água também “dobrou a meta”.

Obviamente, temos que olhar para a famosa “cauda longa”: ainda que os grandes filmes não alcancem uma marca espetacular, o todo pode chegar lá. Porém, não era isso o que o mercado esperava. Acreditava-se que, em parte, o resultado do ano passado tinha sido “segurado” por uma falta de oferta. Afinal, ainda com medo da covid e com seus impactos na produção, houve uma oferta menor de lançamentos. 

Em termos de quantidade de estreias, 2023 teve um aumento em relação a 2022. Acontece que o público (e o dinheiro gasto por ele) não está crescendo na mesma proporção. 

De acordo com a Comscore, em dados divulgados pela CNBC, houve um incremento de 20% da arrecadação no mercado doméstico norte-americano durante o primeiro semestre, quando comparado com o mesmo período do ano passado. Ainda assim, o tropeço é de 21% em relação aos primeiros seis meses de 2019. 

Títulos como The Flash e Elementos estão ficando muito aquém das expectativas financeiras. Mesmo Velozes e Furiosos 10 arrecadou bem menos nos Estados Unidos, ainda que continue forte no resto do mundo. Enfim, daria para ter diversos exemplos aqui.

Pode-se alegar que tem relação com a qualidade dessas produções, o que em parte explica, sim, o resultado. Mas o problema é maior do que esse. O que temos é uma fadiga das fórmulas de Hollywood, casada com um alto custo, uma crise inflacionária (que já passou no Brasil, mas continua nos Estados Unidos e em outros países) e, principalmente, uma quebra de conexão entre público e cinemas durante a pandemia. 

As pessoas mudaram o seu comportamento. Muitas agora preferem a comodidade de sua própria casa, com os olhos também no celular e pausando quando bem entendem. Como fã da experiência cinematográfica, acredito que muito se perde fora da sala escura - mas cada um é cada um. No frigir dos ovos, é melhor que as pessoas assistam no streaming do que não vejam nada, não é mesmo?

 A crise deve continuar

Os defensores do mercado exibidor dizem que comparar 2023 até aqui com o primeiro semestre de 2019 não é justo. Afinal, nos EUA, foram 57 filmes em cartaz em 2 mil cinemas ou mais - com os chamados blockbusters ou produções “médio-grandes”, digamos assim. Neste ano, o volume é de 45.

 Pode até ser. Mas a atual temporada não traz um bom presságio: com os roteiristas em greve, haverá diminuição no número de estreias na tela grande a partir do final de 2024 e principalmente de 2025. A Disney, por exemplo, já fez uma grande mudança em seu calendário de lançamentos para, entre outros motivos, acomodar os reflexos da paralisação.

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Tem mais: é possível que os atores também iniciem outra greve. O sindicato que representa a categoria está negociando com a associação dos estúdios e streamings. O atual contrato coletivo era para ter acabado no dia 30 de junho, mas foi estendido até meados deste mês. Não houve, até o fechamento deste texto, um acordo entre as partes. 

Uma greve conjunta entre atores, atrizes e roteiristas seria algo sem precedentes, com impactos inimagináveis - aprofundando essa crise de oferta de conteúdo. 

Grupos de mídia têm dívidas pesadas

 Sabe aquela velha (e boa!) dica de fazer um pé de meia para aguentar possíveis vacas magras? Bom, Hollywood fez exatamente o oposto, para piorar a situação.

 Como você já leu nesta coluna, os grandes grupos de mídia fizeram grandes dívidas para tentar alcançar a Netflix na chamada guerra do streaming. Investiram pesado em apps, servidores e infra-estrutura, além de pagar caro para comprar ou produzir conteúdo exclusivo. Isso sem falar no marketing para divulgar isso tudo.

 Ao mesmo tempo, o declínio da velha TV paga se acelerou, diminuindo as receitas que entram por esses canais. 

O resultado é a formação de um grande débito, que essas empresas agora precisam solucionar para continuar financeiramente saudáveis. Por isso estamos vendo uma grande leva de cancelamentos, de séries sendo retiradas das plataformas (para não pagarem mais o licenciamento ou residuais aos criadores) e plataformas abrindo mão de exclusividades. 

+ Em guerra, plataformas de streaming acumulam perdas bilionárias durante 2022

É o bê-a-bá das finanças: cortar custos e procurar novas formas de trazer dinheiro. O problema é que esse processo pode deixar os fãs irritados - e essas ações têm sido tocadas como um verdadeiro pesadelo de relações públicas.

Que o diga a Warner Bros. Discovery e seu CEO, David Zaslav - que ficou o “inimigo número um” de muita gente. A Disney é outra que vem passando por um momento delicado

A própria mudança de direcionamento de Hollywood impactou a forma como filmes e, principalmente, séries são produzidas. Isso, por sua vez, mudou o ambiente de trabalho de atores e roteiristas, assim como a forma como são remunerados - causando a atual rusga entre as partes.

É um ciclo sem fim.

 Obviamente, toda crise é uma oportunidade para transformação. Porém, Hollywood parece estar perdendo o ponto aqui: tentar entender o novo comportamento do espectador. Esqueçam os dólares por um segundo: qual é a dor do consumidor? O que ele acha dos preços? Por que ele vai mais ao cinema? E assim vai.

 Também é uma oportunidade para países emergentes. O atual momento faz com que plataformas globais tenham que olhar para outros mercados produtores - como o europeu e o sul-coreano. O Brasil poderia usar isso como trampolim para, finalmente, se globalizar para além das novelas.

+ Criadores de Lupin e Elite revelam segredos para o Brasil alcançar sucesso global na Netflix 

No Japão, existe uma antiga prática chamada Kintsukuroi. Quando uma cerâmica quebra, ela é reconstruída utilizando-se uma mistura de pó de ouro e laca. Dessa forma, o objeto é revitalizado e continua a ter serventia.

O vaso de Hollywood quebrou, essa é a verdade. A indústria pode deixá-lo em pedaços, juntar os pedaços com cola barata ou reconstruí-lo com a ajuda do Kintsukuroi, criando algo ainda mais belo e impressionante.   

Uma coisa é certa: nada mais será como antes.   

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