Super Mario Bros. revela que precisamos refletir sobre a função da crítica de cinema
Sucesso nos cinemas, o longa tem uma baixa aprovação em ferramenta que compila a opinião dos críticos. Será que não damos muito peso para um número criado a partir do caos?
Publicado em 25/04/2023 às 04:45
Em alguns dias, Super Mario Bros.: O Filme alcançará a mágica marca de 1 bilhão de dólares de bilheteria mundial. Um grande sucesso, ainda mais considerando que a animação chega em um momento no qual os cinemas ainda não se recuperaram totalmente da pandemia de Covid-19.
Não pela perspectiva do Rotten Tomatoes.
De acordo com o site, o longa-metragem baseado nos personagens dos videogames da Nintendo conta com uma aprovação de apenas 59%, junto de um tomate estragado - ícone que revela que não se trata de um bom filme.
Não demorou para uma parte do público nas redes sociais criticar justamente os críticos. Alguns apontaram que seria por conta de uma birra com a escalação de Chris Pratt para a voz original do simpático encanador.
Teve até o bilionário Elon Musk, dono do Twitter e da SpaceX, se metendo na polêmica para dizer que esses profissionais "estão desconectados da realidade".
Quem, afinal, está certo? E o mais importante: será que não estamos dando muito peso para algo que deveria ser considerado apenas uma referência subjetiva?
Como funciona o RT?
É importante entender o que é o Rotten Tomatoes. O site pertence à Fandango, empresa que vende entradas de cinema e que já foi dona da brasileira Ingresso.com. Lá são compiladas críticas feitas por jornalistas nos mais diversos veículos. Apenas profissionais ou publicações pré-aprovadas podem submeter as suas avaliações.
Como cada empresa jornalística adota um critério único para as análises, o que o RT faz é dividi-las em dois grupos: entre quem "aprova" ou "desaprova". A nota da ferramenta, chamada Tomatometer (tomatômetro, em bom português), é exatamente a porcentagem de jornalistas que deram o seu "gostei" para o filme ou a série. Se for 50%, bom, 50% da crítica deu a sua aprovação.
A partir dessa nota, o Rotten Tomatoes distribui os famosos icônes, medalhas visuais para facilitar a leitura do público. Se o tomatômetro for de 60% ou mais, é um tomate vermelho, fresco. Se for menos que isso, a fruta é verde, amassada e podre.
Há ainda o tomate "certificado", que indica que o conteúdo tem um selo adicional de aprovação. Para consegui-lo é necessário ter uma nota de 75%, entre outros critérios - que incluem um número mínimo de profissionais "top" (de acordo com o site) avaliando.
Tudo isso para pretensamente colocar uma ordem no caos, encontrando opiniões concordantes para determinar o que é bom ou não. Talvez os gringos precisem conhecer Nelson Rodrigues, que disse que toda unamidade é burra.
Acontece que cada profissional e veículo adota parâmetros únicos para suas avaliações. Fora que as publicações possuem um perfil editorial específico. Um site mais popular vai abordar o novo longa da Marvel de forma diferente de um veículo que primariamente cobre o cinema independente, por exemplo. Uma publicação especializada em animação olha para critérios diferentes de um jornal diário.
É tudo muito subjetivo.
Há ainda problemas na própria forma como o tomatômetro foi concebido. Um filme onde toda a imprensa diz que "passou de ano raspando" - ou seja, deu nota 5,5 em uma escala de 0 a 10 - terá 100% de aprovação. Já uma produção que divide os críticos e que tem como foco um público específico, pode levar 10 de 55% dos jornalistas e 4 dos outros 45%. Pronto, avaliação baixa e tomate podre. Mas será que a obra é realmente ruim?
Determinando sucessos e fracassos
Não dá para dizer que o Rotten Tomatoes é extremamente conhecido. É provável que esta seja a primeira vez que você ouve falar do site.
Mas ele tem, em alguns casos, o poder de determinar o que será sucesso ou fracasso. Afinal, os cinéfilos usam a ferramenta como fonte de informação. Uma porcentagem ruim pode influenciar uma análise negativa por parte dessas pessoas, ou até desestimular a ida ao cinema.
É muitas vezes esse público, invariavelmente pequeno, que dá o pontapé inicial do filme. São eles que vão ajudar no boca a boca, algo que, combinado com ferramentas de marketing, podem determinar o que é ou não sucesso. Se essa cadeia de confiança quebra logo no começo, com a nota ruim, o fracasso pode ser inevitável.
Um exemplo recente é Renfield: Dando Sangue Pelo Chefe, que está com uma aprovação de 57% no Rotten Tomatoes. No mercado norte-americano, a produção teve uma bilheteria de US$ 10,5 milhões na abertura, abaixo da expectativa inicial da Universal Pictures - que era entre US$ 15 milhões e US$ 18 milhões, já pequena para um elenco do nível de Nicholas Hoult, Awkwafina e Nicolas Cage.
Será que o longa-metragem é ruim, por isso foi mal no RT e na bilheteria? Ou ele foi mal na bilheteria porque foi mal-avaliado pelos jornalistas? É quase como um Efeito Tostines do mundo invertido.
A nota, depois, continuará com o filme por toda a vida, o que pode acabar limitando acordos de licenciamento. Além disso, plataformas de streaming (como a Apple TV) disponibilizam o tomatômetro como referência para o usuário decidir o que vai assistir.
Alguns estúdios de Hollywood tentaram mapear esse impacto de forma mais assertiva. Um estudo de 2017 da 20th Century Fox é um dos poucos que foi divulgado - e que afirma, sim, que há uma correlação da nota no RT e o debate nas redes sociais com o retorno financeiro de uma produção.
Há muitas vezes uma desconexão entre grandes bilheterias e a avaliação dos críticos, claro. Isso acontece em franquias e personagens com grande base de fãs prévia, em que o marketing consegue burlar as avaliações ruins ou quando esse público inicial não se deixa levar pela análise negativa, paga para ver e gosta.
No caso de Super Mario Bros., dá para dizer que o resultado bilionário é uma mistura disso tudo. No entanto, muitos outros longas não possuem a mesma sorte - e morrem sem a chance de tentar conquistar espectadores que não sejam os críticos em si.
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Precisamos falar sobre a crítica
Para além da matemática, é preciso fazer uma reflexão.
Pauline Kael foi uma das mais famosas críticas de cinema dos Estados Unidos, escrevendo por décadas na prestigiosa revista The New Yorker. Ela, que se aposentou no começo dos anos 1990, tinha uma língua feroz, pegando pesado com quem elegia desafeto. Com seus preferidos, não economizava elogios.
O seu estilo de texto era particular, diversas vezes se envolvendo com o tema principal. Muitos a liam com paixão - seja por concordar com os escritos ou simplesmente por amar discordar da autora.
Confesso que ela é uma das minhas referências profissionais.
Eventualmente, o ego ganha espaço. O crítico quer aproveitar o texto para desfilar o seu próprio conhecimento sobre a sétima arte. Ou até para se colocar em uma posição de superioridade em relação ao público e até em relação ao cineasta.
Somos humanos, afinal.
Nesse tipo de análise, a nota é um acessório. A própria New Yorker, por exemplo, não a utiliza. O importante é a jornada por meio da crítica, com a perspectiva sobre a obra audiovisual proposta pelo autor.
Porém, colocar estrelinhas ao final da avaliação torna tudo mais palpável e claro, ainda mais no mundo ultra veloz e impaciente de hoje. Fora que o Google ama essas notas e conquistar acessos pela ferramenta de busca se tornou um mantra nas redações.
O problema é o Rotten Tomatoes
Dá para eleger um vilão: o próprio Rotten Tomatoes.
A crítica não foi feita para ser tabelada, transformada em porcentagens. Ela é uma relação íntima entre o leitor e o autor, da qual um conhece um pouco do outro. É uma troca.
Voltando ao exemplo de Pauline Kael. A jornalista notoriamente odiava os longa-metragens de Clint Eastwood. Com o tempo, virou piada: ela aproveitava para fazer humor a partir das avaliações, batendo no arquétipo do macho-alfa no processo. Ler esses textos se tornou uma experiência por si só. Não importava mais a análise ali, mas sim o que ela encontraria para falar mal.
O tomatômetro foi criado para se sobrepor a tudo isso, o que cria distorções. Na tabela, a opinião de Kael viraria um "não aprovou". Uma análise pessoal e subjetiva, ainda que embasada e criteriosa, se resume a isso?
No final, toda essa discussão faz parte da - necessária - reavaliação do papel do jornalismo e, principalmente, do que a sociedade faz com ele.
Não tenho uma resposta para essa questão, mas uma coisa é certa: não é sobre criar porcentagens ou buscar unanimidades.