Mídia, Mercado e Etc.

Obituário: Marvel Entertainment, que revolucionou a cultura pop, morre aos 76 anos

Responsável por levar personagens como Homem-Aranha e Homem de Ferro para outras mídias, a Marvel Entertainment deixa a mãe, Marvel Comics, e a filha, Marvel Studios


Logo da Marvel com os super-heróis
Marvel Entertainment foi vítima de disputas políticas e de cortes financeiros

Morreu na última quarta-feira (29), aos 76 anos, a Marvel Entertainment. Vítima de disputas políticas e de cortes financeiros, a empresa de mídia foi responsável por explorar e tornar conhecidas em todo o mundo diversas propriedades culturais, incluindo Os Vingadores e o Homem-Aranha.

Desde 2009 a Marvel Entertainment vivia na Casa do Mickey, como parte da Disney. No entanto, nos últimos meses, o chairman da Casa das Ideias - Isaac “Ike” Perlmutter - se envolveu em uma disputa de poder.

Após ser resolvida a rusga pública, o CEO de The Walt Disney Company, Bob Iger, demitiu Perlmutter. Junto, decretou a morte da Marvel Entertainment, anexando os negócios da empresa às outras áreas do grupo. A justificativa oficial, informam veículos como Variety e The Hollywood Reporter, foi uma recente onda de corte de custos e demissões.

Com isso, encerra-se uma história de quase oito décadas, trajetória que revela muito das transformações na cultura pop. Um caminho com bastante suor e que, de diversas formas, revolucionou o entretenimento como conhecemos.

Nasce a Magazine Management Co.

O relato do que viria a ser a Marvel começa nos anos 1930. Na época, o nova-iorquino Martin Goodman começou a publicar pequenos (e baratos) livros e revistas de aventura. Entre elas, histórias em quadrinhos - uma arte de massas e de baixo custo para aqueles tempos marcados pela Grande Depressão.

O nome da editora era Timely Comics e nela surgiram personagens como Namor, Tocha Humana e Capitão América. Já na folha de pagamento estavam Joe Simon, Jack Kirby e Stan Lee - este último, sobrinho da esposa de Goodman, tinha apenas 17 anos quando foi contratado.

A Timely prosperou naqueles primeiros anos, mas passou a enfrentar dificuldades após o final da Segunda Guerra Mundial - quando as HQs, enquanto mídia, entraram em decadência.

Em 1947, Goodman fundou a Magazine Management Co., empresa de editoração responsável por centralizar as suas iniciativas no setor - incluindo a Timely, que em 1951 assumiria o nome de Atlas Comics.

Surge a Marvel

Nos anos 1950, o cinema e a televisão haviam superado a importância dos gibis de herói. A Atlas enfrentou essa fase diversificando o seu portfólio, publicando HQs de terror, guerra, crime, romance, espionagem e até inspiradas na Bíblia. Valia tudo para continuar vivo.

No entanto, a concorrente National Periodical conseguiu reviver o interesse em super-heróis a partir de meados da década, revitalizando esses personagens para um novo gosto - com histórias mais infantis e enormemente influenciadas pela ficção científica e pela Guerra Fria. Em 1960, a editora explodiu de vez ao reunir esses encapuzados em uma só equipe.

O nome do time? Liga da Justiça. Sim, a National Periodical é a antecessora da DC Comics.

Diz a lenda que os donos da National, Jack Liebowitz e Irwin Donenfeld, gostavam de jogar golfe contra Martin Goodman - isso enquanto se gabavam do sucesso da Liga. O dono da Magazine Management teve então uma ideia: que tal ele também ter a sua própria equipe do gênero?

Goodman encaminhou a ideia para o editor-chefe da Atlas, Stan Lee, que a essa altura já estava desgostoso com o trabalho e queria seguir novos rumos. Contudo, a esposa do quadrinista, Joan, o encorajou a tentar por uma última vez. “Crie do jeito que você gostaria. O máximo que pode acontecer é te demitirem”, disse ela.

Após dias de desenvolvimento, nasceu o Quarteto Fantástico, um sucesso de vendas que abriria as portas para diversos outros heróis do tipo. Junto, a editora assumiu o nome de Marvel Comics, marcando a sua nova era de maravilhas. Poucos anos depois, atingiu a marca de 50 milhões de exemplares por ano. O resto, como dizem, é história. Ou quase isso.

Em 1968, Goodman vendeu a Magazine Management para a Perfect Film and Chemical Corporation - que, apesar do nome, era um conglomerado que ia muito além da indústria química e dos insumos para filmes. Ele atuava também no setor de distribuição de revistas - e a nova aquisição forneceria publicações com boas vendas para o seu portfólio.

A Perfect Film se tornou a Cadence Industries Corporation em 1970, enquanto a divisão de publicações assumiu finalmente o nome de Marvel Comics Group em 1973. Goodman, a essa altura, já havia deixado de vez a empresa que fundou, substituído como presidente pelo próprio sobrinho. Lee não esquentou a cadeira: deixou a função rapidamente, assumindo o posto de publisher.

Chegada à Hollywood

Apesar das grandes transformações - como a saída de Jack Kirby, a mudança de funções de Stan Lee e a troca de dono -, a Marvel floresceu e passou a ser a líder da indústria de quadrinhos, superando a DC. Já o mercado em si não ia tão bem: depois do ápice na década anterior, as vendas em banca estavam em queda.

A saída era lucrar com outras mídias. Aos poucos, a Cadence licenciou alguns personagens da Casa das Ideias para iniciativas de TV.

O próprio Stan Lee foi percebendo que precisava alçar novos voos para perpetuar o seu trabalho. O quadrinista foi passando mais e mais tempo em Hollywood, se fazendo presente em reuniões, na costura dos acordos e no aconselhamento criativo. Foi um trabalho árduo, de formiguinha, com o objetivo de levar os heróis que criou ao cinema - ainda que, para os seus detratores, Lee quisesse mesmo se tornar um novo Walt Disney.

O esforço foi parcialmente recompensado no final dos anos 1970, quando a Marvel emplacou suas primeiras produções de televisão com atores de carne e osso: Homem-Aranha e O Incrível Hulk.

Na mesma época, a empresa tinha uma importante parceria para a produção de desenhos animados, a DePatie-Freeleng Enterprises (a responsável pelas clássicas animações da Pantera Cor-de-Rosa). Em 1981, a DFE também foi adquirida pela Cadence, se tornando a Marvel Productions - um estúdio de animação que poderia finalmente trazer a visão da Casa das Ideias à telinha de forma apropriada.

Stan Lee se tornou o diretor criativo da nova companhia, se mudando definitivamente para Beverly Hills. Parecia que o mundo pertencia à Marvel. Parecia.

O negócio não deu muito certo, apesar de produzir algumas séries que marcaram época - como Homem-Aranha e Seus Incríveis Amigos, Transformers, Caverna do Dragão (sim, ela mesma) e Os Muppet Babies (isso mesmo!).

Os projetos de cinema, aqueles com maior potencial, ficaram presos no chamado “inverno do desenvolvimento” da parceira Cannon Group, famosa por filmes como Desejo de Matar, Braddock: O Super Comando e Comando Delta.

Envolvida em disputas internas de poder, a Cadence reorganizou as duas Marvels - a Comics Group e a Productions - em uma só entidade, chamada Marvel Entertainment Group. A MEG, como ficou conhecida, foi por sua vez vendida em 1986 para a New World - uma empresa com os dois pés em Hollywood, para a alegria de Stan.

Não demorou muito para que os novos donos, definidos como “caloteiros” no mercado, vendessem parte da MEG para a Andrews Group, de Ronald Perelman, em 1989. A New World ainda manteve para si a Marvel Productions, que foi incorporada ao resto do estúdio. Anos depois, Perelman compraria o restante.

Decadência e renascimento

No começo da década seguinte, a expansão para a televisão havia finalmente se consolidado, com animações que conquistaram grande público e fãs para Homem-Aranha, X-Men e companhia. Ao mesmo tempo, os gibis vinham de uma época muito boa criativamente e com a forte expansão do chamado mercado direto, aquele das comic shops, o que ampliou os lucros.

Porém, a editora passou a viver um desgaste de ideias e uma exploração muito pesada da fama dos desenhistas, o que subvertia a lógica dos personagens estarem em primeiro plano. Além disso, a Casa das Ideias foi inundada por engravatados que queriam cortar custos e tirar o máximo de suas propriedades, sem se preocupar com o lado criativo.

Para piorar, o grupo foi comprando empresas menores, entrando em outros mercados e se tornando maior do que a sua estrutura suportava.

É por isso que os anos 1990 foram particularmente sombrios para o lado editorial da MEG.

Encurtando a história: a Marvel Entertainment Group entrou em crise. Em 27 de dezembro de 1996, às vésperas do ano novo, ela entrou com pedido de falência com base no capítulo 11 da lei que rege o assunto nos EUA - algo parecido com a nossa concordata, buscando uma reorganização para pagar as dívidas.

Uma disputa pelo controle da empresa se seguiu, tirando Ron Perelman do comando. É aí que entra Isaac Perlmutter.

Ike era um dos donos da ToyBiz, empresa da qual a MEG havia anos antes adquirido 46%, com o objetivo de fabricar brinquedos com base em suas propriedades intelectuais. Basicamente o executivo deu uma volta nos sócios, comprando a Casa das Ideias dos credores e assumindo a companhia. A Marvel Entertainment Group e a ToyBiz se fundiram, resultando na Marvel Enterprises.

A vez do MCU

A Marvel Films foi fundada em meio a toda essa confusão e, em 1996, a divisão foi renomeada Marvel Studios. Sob o comando de Avi Arad, que também era sócio da ToyBiz, a empresa passou a licenciar os super-heróis da Casa das Ideias para grandes estúdios de Hollywood. Finalmente, depois de décadas de empenho de Stan Lee, a popularidade daqueles personagens nas HQs e (principalmente) na TV justificavam o passo além. Isso e o avanço da computação gráfica no cinema, é claro.

Blade, X-Men, Hulk, Homem-Aranha e Quarteto Fantástico, entre outros, foram fatiados em micro-universos e vendidos para, respectivamente, New Line, Columbia Pictures, Universal Pictures e 20th Century Fox. O licenciamento foi lucrativo, assim como a porcentagem nas bilheterias desses longas-metragens. Isso - somado a uma reestruturação, um melhor direcionamento criativo nos gibis e a explosão da venda de bonecos - fez a Casa das Ideias se reerguer.

Em 2005, para melhor refletir essa nova posição, mudou de nome por uma última vez: passou a se chamar Marvel Entertainment.

Acontece que a expansão não acabaria por aí. O grupo sabia que o próximo passo era financiar e produzir os seus próprios longas-metragens. Arad foi substituído na Marvel Studios por Kevin Feige, e o produtor foi em busca desse objetivo - se transformando no Stan Lee dos cinemas.

Em 2008, o estúdio lançou Homem de Ferro e O Incrível Hulk, seus primeiros longas. Com cenas pós-créditos, uma cronologia interligada e teasers sobre a formação d’Os Vingadores e do perigo do vilão Thanos, o Universo Cinematográfico Marvel se tornou uma febre.

Agora a Marvel Entertainment estava no topo do mundo e, em 2009, foi adquirida por The Walt Disney Company por US$ 4 bilhões. Uma mixaria perto da máquina de dinheiro que havia se tornado.

Últimos anos e legado

De alguma forma, Ike Perlmutter se manteve no posto de chairman da Casa das Ideias - presidente do conselho administrativo, teoricamente supervisionando a empresa para garantir a conquista de seus objetivos estratégicos.

Na prática, o executivo foi sendo deixado de lado. O primeiro grande golpe veio em 2015: após uma série de desentendimentos com Kevin Feige, Ike quis demitir o subordinado. A Disney, sabendo de todo o sucesso da Marvel Studios, interveio e tirou a divisão de cinema do guarda-chuva da Marvel Entertainment. A partir daquele momento, o estúdio passou a estar ligado diretamente ao CEO da Disney, Bob Iger.

Quatro anos depois, Feige foi também nomeado CCO (chefe criativo) da divisão de quadrinhos, enquanto os estúdios de televisão e animação passaram a fazer parte da estrutura da Marvel Studios. Na prática, Perlmutter tinha tanto poder quanto a Rainha da Inglaterra.

Isso deve ter enfurecido Ike, que, de acordo com relatos vindos dos EUA, começou no último ano a agir por baixo dos panos para apoiar o investidor-ativista Nelson Peltz - um bilionário que, por meio da Trian Fund Management, aproveitou o momento de fragilidade da Disney por conta da crise no streaming e comprou muitas ações do grupo.

Agora sócio, o investidor fez diversas demandas de reestruturação e exigiu um assento no conselho administrativo. Após ver parte de suas demandas atendidas no começo de 2023, Peltz se retirou da disputa de poder. Bob Iger, que nesse meio tempo saiu e voltou ao cargo de CEO da Disney, foi o vencedor.

É aí que chegamos aos acontecimentos da última semana. Entre as medidas adotadas por Iger estão grandes cortes de custos, algo na casa de US$ 5,5 bilhões - o que passa pela demissão de 7 mil pessoas.

Ike Perlmutter provavelmente não imaginava que a briga que ele teria ajudado a inflar foi justamente a desculpa perfeita para a Disney se livrar dele próprio.

Junto, a Disney desligou de vez os equipamentos que mantinham a Marvel Entertainment viva. A empresa está deixando de existir e seus ativos serão absorvidos por outras divisões do conglomerado.

Marvel Studios, a filha mais pródiga, continua firme e forte, ainda comandada por Kevin Feige. Sob o seu guarda-chuva passa a ficar definitivamente a Marvel Comics, a avó orgulhosa. Afinal, parece natural a neta cuidar de sua matriarca.

Já a Marvel Entertainment deixa o seu nome na história, tendo sido responsável por desbravar novas mídias e levar os personagens criados por Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e companhia à bilhões de pessoas.

Se não fosse por ela, a cultura pop seria outra - e heróis como Homem-Aranha e Capitão América fariam sucesso apenas em pequenos nichos.

Um legado pelo qual nós devemos agradecer.

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