A trajetória da A24: como um pequeno estúdio fez história no Oscar 2023?
Nome por trás do sucesso de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, a A24 faz muita coisa diferente das concorrentes de Hollywood - a começar pelo fato de estar sediada no lado errado dos EUA
Publicado em 20/03/2023 às 07:41
Nunca antes na história um único estúdio havia levado no mesmo ano as sete principais categorias do Academy Awards, o Oscar: Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz, Atriz Coadjuvante, Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro (seja original ou adaptado). Isso até o último dia 12 de março.
A A24 foi a primeira a conseguir todas essas vitórias em uma só noite. Seis delas com Tudo Em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, que também venceu na categoria de edição. A sétima - de Melhor Ator, com Brendan Fraser - veio por A Baleia.
Quem conhece pouco da indústria de cinema pode imaginar que essa tal de A24 é riquíssima e poderosa, com seus executivos colhendo os louros da vitória enquanto se exibem pelas ruas e ladeiras de Hollywood. Que nada: os sócios, que são de Nova York, muito raramente dão entrevistas e o estúdio tem habitualmente orçamentos pequenos e “médio-pequenos” (para o cinema americano), fazendo investimentos de marketing inteligentes, digamos assim.
Como, então, esses caras conseguiram um resultado tão expressivo? Para entender isso, vamos voltar um pouco no tempo.
A24: o pessoal de Manhattan
A companhia foi fundada em agosto de 2012 em Nova York por Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges (foto/acima). Os dois últimos já eram desse mercado, ainda que sem grandes conquistas no currículo, enquanto Katz veio da Guggenheim Partners - da área financeira, inclusive a responsável pelo primeiro aporte de dinheiro na nova empresa. Já o nome veio de uma estrada italiana.
A estreia como distribuidora (empresa que lança os filmes nos cinemas) foi em 2013, com Spring Breakers: Garotas Perigosas - suspense policial que colocou Vanessa Hudgens e Selena Gomez, ambas ex-Disney Channel, como estudantes universitárias que saem por aí de biquíni enquanto cometem crimes.
Uma mudança de patamar veio em 2016, quando a A24 financiou (ou seja, botou o próprio dinheiro) e produziu o seu primeiro filme, Moonlight: Sob a Luz do Luar. Com esse novo degrau, a empresa se tornou efetivamente um estúdio, na acepção hollywoodiana do termo. Mais do que isso: o longa-metragem do diretor Barry Jenkins abocanhou três Oscars, incluindo o de Melhor Filme.
"Se eu dissesse que estava abrindo um estúdio de Hollywood e que o primeiro filme em que eu colocaria meu dinheiro seria um ‘tríptico’ [obra dividida em três partes] sobre um garoto negro gay cuja mãe era viciada em drogas, feito por um cineasta que só fez um filme por US$ 15 mil, você diria: 'Sim, parece uma ótima ideia?' Provavelmente não", disse Jenkins em entrevista ao Washington Post. "Mas essas pessoas, sim."
O resto, como dizem, é história.
Hoje, a A24 é considerada uma “mini-major” do mercado de cinema dos EUA. Ou seja, uma independente que, ainda que pequena, tenta concorrer com as cinco grandes - Universal, Paramount, Warner Bros., Disney e Sony. Ela possui 1,67% do mercado cinematográfico de lá, de acordo com The Numbers.
Taças de vinho e boas ideias
A essa altura, a A24 já estabeleceu o seu nome e o seu estilo - que é não ter estilo. Diferentemente dos concorrentes da Califórnia, que querem correr poucos riscos e investem muito dinheiro para terem grandes retornos, os nova-iorquinos tocam o seu estúdio de forma totalmente oposta. Gostam justamente de matar no peito esse perigo enquanto dão espaço para que cineastas de renome ou potencial exerçam a sua liberdade criativa.
Isso se reflete em uma relação mais próxima e íntima. De acordo com reportagem do The Independent, os executivos da A24 gostam de se reunir com diretores em jantares regados a vinho em vez de reuniões formais. Diferentemente do pessoal da Costa Oeste, eles não empurram franquias e a sua visão, mas querem ouvir do cineasta o que ele quer contar na tela.
Eles não são criativos: eles ouvem quem é. Nem lançam “filmes de produtor”.
Essa estratégia atraiu nomes que são badalados no cinema de “auteur” - ou seja, com estilo próprio reconhecido pelo público. É gente como Darren Aronofsky, Claire Denis, Alex Garland, Sofia Coppola e o já citado Barry Jenkins.
"Eles definitivamente investem em cineastas", disse Augustine Frizzell, diretora de Never Goin' Back. O filme, sobre duas jovens que querem fugir do subemprego de garçonetes para curtir uma viagem à praia, foi adquirido pelo estúdio após ser exibido no Sundance Film Festival.
Um resultado secundário, porém importante, é que isso acaba resultando em maior diversidade de temas e elencos.
É aqui que chegamos em Dan Kwan e Daniel Scheinert, coletivamente conhecidos como os Daniels. Em meados dos anos 2010, ambos queriam produzir um longa-metragem sobre um cadáver com crise de flatulência. Uma experiência difícil de categorizar, naquele que seria o primeiro longa dirigido pelos dois. Ninguém queria bancar.
A24 foi quem topou financiar o orçamento de US$ 3 milhões. Com Paul Dano, Daniel Radcliffe e Mary Elizabeth Winstead, Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man, no original) não foi exatamente um sucesso de bilheteria - mas tampouco foi um fracasso, arrecadando quase US$ 6 milhões. O mais importante: foi elogiado, movimentou a crítica e serviu de cartão de visitas para os cineastas.
Isso foi o suficiente para o estúdio embarcar em um projeto ainda mais audacioso, com um investimento muito maior - uma comédia fora do convencional, misturada com ação e ficção científica, e estrelada por imigrantes. O nome desse filme? Tudo Em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.
Pequenos orçamentos, grandes riscos
É por isso que os aportes financeiros da A24 não são grandes quando comparados com o resto do mercado. Tudo Em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo teria um orçamento de US$ 25 milhões, o maior na história do estúdio. Contudo, esse número é posto em cheque, com perdão do trocadilho. De acordo com alguns da indústria, o valor foi inflado para que o longa parecesse mais caro do que realmente é. Um dado mais realista diz que a produção custou US$ 14,3 milhões.
Para você ter uma ideia de valores, Nada de Novo no Front, produção alemã que levou o Oscar de Melhor Filme Internacional e outro concorrente forte na categoria principal deste ano, teve um custo de US$ 20 milhões. Top Gun: Maverick, blockbuster que também poderia ficar com a estatueta de Melhor Filme, dispôs de uma soma total de US$ 170 milhões.
E olha que o grande vencedor de 2023 é totalmente fora da curva para a companhia: Moonlight contou com um orçamento de apenas US$ 1,5 milhão. A Baleia teve um custo de US$ 3 milhões. Hereditário, segundo maior investimento em um longa produzido pela própria empresa, custou US$ 10 milhões. De acordo com o site The Numbers, o custo médio do que é lançado pelo estúdio fica na casa dos US$ 6,6 milhões, mas esse dado inclui projetos bancados por terceiros.
Ainda assim, ela dilui parte desse risco ao não se aventurar no mercado internacional, fora dos Estados Unidos. Normalmente, os longas da A24 têm os direitos de exibição em outros países vendidos para distribuidores locais. Os já citados Moonlight e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, por exemplo, foram fatiados no resto do mundo e chegaram ao Brasil pela Diamond Films.
Em outros casos, após ver o potencial da obra, a empresa compra os direitos do produto já pronto - e também faz isso apenas para o mercado americano. Aftersun, que rendeu uma indicação ao Oscar neste ano, é um exemplo: após fazer barulho no Festival de Cannes, o longa foi adquirido pela A24. No resto do mundo (inclusive no Brasil), os direitos foram comprados pela MUBI, em um negócio totalmente separado.
Já quando o valor do investimento é muita areia para o caminhãozinho do estúdio, ele simplesmente abre mão da distribuição, cuidando apenas da produção - ou seja, não financia, nem distribui, só executa, emprestando a grife de seu nome no processo. Foi assim com a Apple, que pagou e ficou com longas como A Tragédia de Macbeth e Passagem. Ruído Branco, estrelado por Adam Driver e lançado no final de 2022, foi para a Netflix após custar nada menos que US$ 100 milhões.
Há ainda a divisão de TV, responsável por séries como Euphoria, mas aí é um modelo de negócio substancialmente diferente. Melhor deixar para um outro momento.
Por todos esses exemplos (e por ser uma empresa de capital fechado), é um pouco mais difícil falar sobre qual é o real retorno financeiro da A24. Ainda assim, podemos imaginar que o negócio deve estar sendo bem lucrativo para Daniel Katz, David Fenkel, John Hodges e seus parceiros.
Marketing e promoção
Com menos grana que os concorrentes famosos de Hollywood, a A24 se especializou em promover os seus longas de forma diferente dos concorrentes mais tradicionais.
Primeiro: ao se aliar com cineastas tão marcantes, o estúdio pegou para si um pouco dessa aura artística deles. Na prática não é bem assim: são apenas três caras de Nova York investindo em filmes e pensando diferente do resto do mercado. Porém, para o resto do mundo, a vinheta e o logo da empresa viraram uma espécie de selo de qualidade, que ajuda a bancar novas vozes - como os próprios Daniels.
Tem mais. Eles não se valem do (caro) marketing tradicional. Ou seja, não recorrem a anúncios em outdoors e em revistas de grande circulação, nem nada assim. A A24 foi uma das primeiras a investir mais pesado na compra de mídia online e, principalmente, no estímulo da produção e alcance orgânicos (ou seja, aquele que não paga - diretamente para a plataforma - para impulsionar um post, mas que “estimula” influenciadores digitais).
Na visão de Hollywood, isso é “guerrilha”. Na realidade, é o dia a dia de quem faz marketing digital com pouco investimento.
O resultado é que os filmes da empresa são muito comentados no “campo de batalha” que importa hoje em dia: o das redes sociais. Os trailers são muito compartilhados, as hashtags surgem nos trending topics do Twitter e as contas de fãs movimentam a internet. Tem muita gente que é torcedor do estúdio do mesmo jeito que os fãs de futebol apoiam seus clubes.
No caso de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo, essa presença nas redes sociais foi parte do sucesso. Os próprios envolvidos no projeto ajudaram: Jamie Lee Curtis, que ficou com o Oscar de Atriz Coadjuvante pelo longa, é figurinha carimbada e uma “rainha do grito” com uma grande base de fãs, colecionando 5,1 milhões de seguidores no Instagram. Michelle Yeoh, a protagonista e também vencedora de uma estatueta, tem 1,9 milhões de seguidores na mesma plataforma - e é queridíssima pelo público.
Sim, o pessoal da internet não é membro da Academia e não vota na premiação, eu sei. Mas ajudam a criar fenômenos culturais, mesmo que dentro de uma bolha. Parte disso chegou ao pessoal de Hollywood, convertendo esses votantes em advogados do longa-metragem dos Daniels. De acordo com The Hollywood Reporter, foram esses fãs mais fervorosos que ajudaram a “virar” mais votos no Oscar.
“Era um filme polarizante, mas seus fãs eram tão apaixonados que estavam convertendo membros que não gostaram na primeira vez que tentaram assistir. As pessoas diziam: ‘Ok, este filme arrecadou US$ 80 milhões e recebeu tantas indicações. Sei que tentei assistir e não consegui, mas vou tentar de novo'”, contou uma fonte ao veículo.
De resto, informa o THR, a A24 fez o feijão com arroz: uma campanha de relações públicas tradicional, com cobertura na imprensa e colocando os envolvidos nas produções para conversar com jornalistas e profissionais da indústria.
Nisso tudo, o momento atual ajuda: depois da campanha #OscarsSoWhite, feita há alguns anos para criticar a falta de negros e outras etnias entre os indicados e vencedores, a Academia de Artes e Ciências Cinematográicas ampliou o número de novos membros, incluindo mais diversidade e pessoas de todo o mundo. São votantes com uma visão mais ampla, que se somam a uma Hollywood historicamente liberal e, agora, pressionada a refletir o mundo atual.
Isso afasta filmes mais tradicionais, ou mesmo que seriam considerados “iscas de Oscar” no passado, e beneficia produções de cineastas mais antenados com esse direcionamento - algo que o ambiente afeito aos riscos na A24 naturalmente estimula. Não por menos, Michelle Yeoh foi a primeira mulher asiática a vencer o Oscar como atriz. Mais do que isso: os quatro vencedores de atuação em 2023 possuem mais de 50 anos.
Sabe quem deve estar com inveja? A Netflix. O streaming tem investido muito dinheiro para conquistar a tão almejada estatueta de Melhor Filme. Nada de Novo no Front, o carro-chefe da plataforma neste ano, até que foi bem: foram quatro estatuetas, incluindo a de Filme Internacional e Fotografia. Só que seguem chupando o dedo na categoria principal - enquanto até a Apple já venceu essa.
Pois é, a história já ensina: até o os grandes impérios tombam frente a uma guerrilha bem-feita.
Siga-me no Twitter, Instagram, TikTok e LinkedIn.