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Pichação é "anarquia, rabisco, depredação", diz artista que invadiu a Bienal de 2008

Ação inspira o filme Urubus, que acaba de chegar aos cinemas brasileiros e quer humanizar a imagem dos pichadores


Cena do filme Urubus
Cena do filme Urubus - Foto: Divulgação/O2 Play

Em 2008, um grupo de pichadores invadiu a 28ª Bienal de Artes de São Paulo. O alvo das pichações foi o segundo andar da exposição, que não tinha qualquer obra e procurava discutir o “vazio da arte”. Na época, a ação chamou a atenção da imprensa e da sociedade - que, em grande parte, rotulou o ato como vandalismo.

Passados 15 anos, aqueles acontecimentos inspiram o filme Urubus, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros. Esta coluna entrevistou os envolvidos na produção – em parte para entender se o pixo, como é chamado pelos seus praticantes, pode ser considerado arte e até transformada em mercadoria comercial.

“O pixo é uma expressão urbana que é anarquia, rabisco, depredação — dependendo do ponto de vista, por exemplo, se for um ponto de vista estético, mas é relativo — e protesto, que está no próprio ato de reivindicar o uso da paisagem no espaço público — que hoje é totalmente regido pelos interesses do poder privado. Então, não é sobre a escrita, mas sobre a atitude”, explica Djan Ivson Silva, mais conhecido como Cripta Djan, um dos responsáveis pela invasão de 2008.

Naquela Bienal, os organizadores pretendiam promover um debate sobre a crise na fundação responsável pela mostra. Para Djan, a discussão era ainda mais profunda. “Era um vazio da falta de representatividade da arte periférica. Para a gente, ocupar o vazio da Bienal, naquele momento, foi muito simbólico dessa reivindicação da arte periférica também estar participando de um espaço de reconhecimento institucional”, explica.

Dentro da lógica em que vivemos, isso leva a um segundo pensamento: se a pichação deve ter reconhecimento, não poderia então gerar valor financeiro como um produto?

Expressões artísticas como o funk e o grafite já passaram por esse processo. Anitta, por exemplo,levou o estilo musical para o mundo por meio de sua apresentação na final da Champions League, nesse sábado (10).

“Não, não tem como ganhar dinheiro com pixo”, refuta o pichador, artista e ativista - como ele mesmo se descreve. “No único momento em que a gente está de fato pichando, [que] é legítimo, é quando a gente tá fazendo isso de forma transgressiva na rua. Quando estamos fazendo o pixo fora desse contexto vira uma representação. Quando eu estou na galeria ou museu, estou fazendo uma representação da estética, da cultura e da linguagem.”

“A gente pode vir a ter um reconhecimento fora da rua como artista oriundo do pixo e que trabalha com essa linguagem. Porém, não tem como ganhar dinheiro pichando.”

Virando filme

Pichação é \"anarquia, rabisco, depredação\", diz artista que invadiu a Bienal de 2008

Urubus é livremente baseado nos acontecimentos de 2008. Na história somos guiados pelo olhar de Valéria (Bella Camero), uma estudante de artes que vai até o Centro de São Paulo abordar pichadores para estudar o movimento. Lá ela conhece Trinchas (Gustavo Garcez), e ambos se apaixonam.

A estudante passa então a acompanhar o grupo Urubus e as suas pichações pela cidade, registrando tudo com uma filmadora. É a partir desse olhar que a trama se desenvolve, incluindo a invasão à Bienal, a relação de amizade entre os jovens e também a violência - seja entre grupos rivais ou aquela da polícia.

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A protagonista é livremente inspirada em uma pessoa real: Caroline Pivetta, na época com 23 anos. Ela, que era uma das pichadoras, foi a única presa durante a ação na Bienal, ficando 54 dias na cadeia. No ano seguinte, foi condenada a quatro anos de prisão, em regime semi-aberto, por formação de quadrilha e destruição de bem protegido por lei.

“Eu não conheci a Carol pessoalmente. Sei da história dela e assisti a um filme muito massa sobre ela [chamado Pivetta, lançado em 2021], que um amigo fez”, conta Bella Camero. “Mas houve uma história no roteiro final, que a gente acabou fazendo, em que a Valéria não é uma pichadora. Ela é justamente uma pessoa de fora desse universo. Isso traz um contraponto para quem está assistindo que também não é familiarizado ou está dentro desse contexto.”

“O filme não traz um olhar específico sobre o movimento, glamourizando ou vilanizando a pichação e os pichadores. Apesar de ser ficção, ele mostra o universo da pichação com uma grande carga de verdade e humanidade”, explica o diretor, Claudio Borrelli.

“O papel de Urubus é realmente humanizar os pichadores, porque é uma forma de expressão muito demonizada perante a sociedade”, complementa Cripta Djan, que também assina o roteiro. “O filme vem na intenção de desconstruir muita coisa e mostrar que é apenas um movimento de expressão de uma galera que transita pela cidade fazendo intervenção, usando a arte.

“O próprio filme não tem uma gota de sangue, só tinta.”

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Para trazer ainda mais veracidade para o longa-metragem, cerca de 90% das pessoas que vemos em frente às câmeras são os chamados não-atores, pessoas sem uma formação teatral, mas com a experiência de viver a realidade da obra em seu dia a dia.

“Todos os personagens pichadores tinham de ser pichadores de verdade”, explica Borrelli. “O processo de escalação foi muito difícil e tumultuado, porque aconteceu durante a prefeitura do [João] Dória [entre 2017 e 2018], que havia declarado guerra aos pichadores. Todos eles achavam que o casting era um golpe da prefeitura.”

Uma das poucas profissionais de formação na obra é justamente a intérprete de Valéria. “Durante a preparação, eu era a única atriz, indo conhecer esses meninos que iam fazer os personagens pichadores”, revela Bella Camero, que atuou em Malhação: Vidas Brasileiras e em Marighella.

Por fim, Urubus ainda faz um contraponto interessante - misturando música clássica e a pichação em uma mesma cena. “A música erudita é o que o ser humano produz de mais sofisticado e nobre. O pixo é bruto, rude, incômodo. Mas quando os dois se encontram, na mesma cena, há uma harmonia quase divina”, filosofa Borrelli.

O que mudou de 2008 para cá?

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De acordo com o diretor, foram 15 anos entre a ideia do projeto e o lançamento do longa-metragem nos cinemas. Um tempo extremamente longo, reflexo não só das opiniões negativas sobre a pichação, mas principalmente do estado do mercado audiovisual brasileiro.

Urubus chega agora à tela grande pelas mãos da distribuidora O2 Play e com produção executiva de Fernando Meirelles, o nome por trás de Cidade de Deus. “O filme também é um pichador que impôs a sua existência”, reflete Borrelli ao revelar que a produção foi auto-financiada, sem contar com o auxílio das leis de incentivo à cultura.

Seja como for, a realidade mudou um pouco de 2008 para cá, como relata Cripta Djan: “O pixo passou a ser visto e reconhecido dentro do circuito de arte contemporânea brasileira e mundial [...]. Os pichadores ainda estão amadurecendo essa representação, mas já é uma realidade participar de exposições e mostras internacionais de bastante relevância. Ainda tem muito pra ser conquistado, mas já é um passo que foi dado.”

O que não mudou é a relação deles - e, de forma geral, das minorias e das populações da periferia - com o estado. Se não é possível gerar renda a partir da pichação, como os órgãos governamentais poderiam ao menos quebrar o ciclo de violência que persiste?

“Oferecendo mais oportunidade. No sentido de conhecimento artístico, cultural, opções de lazer e cultura. Falta isso nas periferias”, explica Djan. “Às vezes, a pichação é o único atrativo que esse cara tem porque a quebrada que ele mora é super precária, não tem quadra de futebol, não tem biblioteca. Então, muitas vezes o que resta para essa galera é o crime ou o pixo.”


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