Mudança no Globoplay: Como surfar na onda dos streamings custou caro para empresas de conteúdo
Break even é para poucos e nem eles estão garantidos no mercado voraz
Publicado em 14/02/2024 às 08:00,
atualizado em 14/02/2024 às 09:29
Ah, o streaming. Há alguns anos, vedete de todas as produtoras de conteúdo do mundo. Coqueluche das produtoras, galinha dos ovos de ouro dos artistas e profissionais de TI. Era lindo e mágico, até que a conta chegou. Aí, o cisne reluzente vira um pato pelado.
Tudo começou com a Netflix e sua estratégia inovadora. A empresa pegou o conteúdo de praticamente todos os estúdios e focou em montar uma plataforma agradável, com boa interface, sem muitos travamentos e com boas estratégias. Deu certo! Em pouco tempo, a empresa decretou o fim das locadoras de vídeo, mandou um abraço ao falido Blockbuster (que havia recusado o modelo de negócio anos antes) e nadou de braçada, cada vez fortalecendo mais a estrutura técnica, enquanto os conteúdos eram fornecidos a um custo relativamente baixo.
Quando as gigantes de conteúdo perceberam, os olhos cresceram. Como uma empresa nova, sem praticamente nenhum conteúdo próprio consegue fazer tanto dinheiro só com uma plataforma? Nós, donos do conteúdo, faremos muito mais!
Eis o grande engano. Ao imaginar seus possíveis lucros antes de mensurar os investimentos necessários, as empresas subestimaram o custo de um mercado que é essencial ao negócio, mas pouco conhecido delas: o da tecnologia.
Era notório que os investimentos de gigantes no streaming levariam anos para, talvez, um dia darem lucro. E isso por motivos óbvios:
- É necessário muito investimento em servidores para fazer tudo funcionar sem problemas de travamento;
- É necessário um gasto igualmente enorme com parcerias com empresas de TI e Telecomunicações;
- Antes de entrar o dinheiro do streaming, teriam canibalizado sua galinha dos ovos de ouro da vez, a TV paga;
- É preciso alterar toda uma cultura, levando pessoas que pouco ou mal sabem mexer com controle remoto a passarem a digitar URLs ou instalar aplicativos em seus smartphones.
- É preciso ter os melhores técnicos, capazes de fazer com que as tecnologias de compactação e transmissão de dados seja o mais rápido e eficiente possível, de forma a diminuir o tempo de espera para o recebimento do conteúdo desejado.
Ovos de ouro
Enquanto os grandes conglomerados preocupavam-se em produzir conteúdo e vender à Netflix, esta construía sua plataforma caucionada em uma boa estrutura de servidores e de distribuição.
Para se ter uma ideia, desde 2012 a empresa trabalhou para construir sua própria rede de distribuição de conteúdo, instalando servidores próprios em pontos estratégicos ao redor do mundo, além de manter um contrato robusto com a Amazon, que hospeda os servidores do site e trabalha o complexo mecanismo de recomendações.
Naturalmente, tantos anos de parcerias e amadurecimento propiciaram à gigante do entretenimento produzir mais e melhores conteúdos à medida em que os custos com infraestrutura se diluíram. Foram anos operando no vermelho, suportados por um plano tão robusto quanto arriscado e por milionários que abraçaram o projeto. Deu certo!
Crentes de que tinham o principal ativo da plataforma, as gigantes resolveram entrar com tudo nesse mercado. Disney, Warner, Discovery, Paramount, Universal, Sony, Globo… Todas elas fecharam os olhos a outras possibilidades e deram um “all in” no streaming.
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Paulatinamente, uma a uma vai começando a entender, depois de perder significativo valor de mercado e, portanto, dinheiro, que o buraco é muito mais fundo do que imaginavam quando embarcaram.
A Sony pouco evoluiu com seu Crackle. Em pouco tempo, entendeu o contexto e optou por apenas fazer o que tem de melhor: distribuir conteúdo para plataformas dedicadas a exibi-los.
As demais esticaram mais a corda. Passaram a ignorar a TV paga e, com isso, romperam uma parceria lucrativa com grandes players das telecomunicações. O problema é que, mesmo que não fossem mais a grande força de outrora, as gigantes da Telecom ainda eram essenciais para os lucros e, mais importante, pelas tão propaladas parcerias de distribuição de conteúdo realizada pela Netflix.
Pouco a pouco, os prazos para o break even (quando uma empresa passa a operar no azul, ou seja, apenas com o que produz de lucro) foram esticando e, de todas as grandes, apenas a Discovery conseguiu manter-se saudável e operando no azul.
Tal situação não é problema para Amazon e Apple, por exemplo, cujos negócios são focados em outras áreas de atuação e a área de conteúdo apenas serve como chamariz. Obviamente, é muito melhor um chamariz lucrativo, mas, se não for, outras operações garantem a solidez do negócio.
Não é o caso das gigantes de conteúdo. Ao abrir mão dos cinemas, muito por conta da pandemia e da TV paga, elas passaram a depender quase exclusivamente de suas plataformas. Sem preparo, várias tiveram problemas sérios de entrega, com produtos difíceis de acessar, plataformas difíceis de navegar e players que levam muito tempo para iniciar a ação, muitas vezes travando no meio do caminho.
Não à toa, o “engenheiro de obra pronta” que vos escreve nunca se empolgou com a corrida pelo streaming e pregava insistentemente que empresas de conteúdo deveriam procurar manter-se saudáveis e fazer o que têm de melhor, ao invés de se aventurar em um território dominado por gigantes, hostil e que não possui uma margem razoável para tentativa e erro.
Vale lembrar que o Google tinha sua plataforma, o Google Vídeos, e abriu mão quando viu que seria mais vantajoso comprar o YouTube que competir com ele. O mesmo fez a Microsoft com a OpenAI. O mercado de TI cobra rápido a conta pelo arrojo, logo, todo passo tem que ser dinâmico e os rumos têm de ser corrigidos ainda antes do processo de desenvolvimento começar.
Globoplay
A recente saída de Erick Brêtas do Globoplay trouxe à tona, mais uma vez, as dificuldades de compreensão dessas particularidades do mercado de TI. Brêtas é do conteúdo e, como tal, fazia um bom trabalho à frente da plataforma. Mas sem outros investimentos, é claro que não há stock para avançar no rito das concorrentes. Se para elas a água está no pescoço, imagina para quem tem menos dinheiro. É praticamente lançar-se ao mar sem nenhum dispositivo de segurança e sabendo apenas o básico de natação.
A entrada de um executivo de mercado na gestão da plataforma não anima. Conteúdo não se faz olhando apenas o financeiro. Algumas vezes, considerar esse fator é mais um problema que uma solução.
Eis que a Globo cogita fazer o que sempre fez: distribuir seu conteúdo a outras plataformas. Uma ideia acertada, mas que joga uma pá de cal em si própria. Como manter relevante uma plataforma com poucos atrativos se estes não forem exclusivos? É um desafio para Manuel Belmar, novo executivo da empresa, resolver.
Fusões e parcerias
A medida não é única. Ainda esta semana, Fox, ESPN e Warner Bros. Discovery anunciaram a criação, no mercado americano, de uma plataforma que abrange todos os conteúdos esportivos que transmitem.
Também é certa, para o dia 27 de fevereiro, a chegada do Max à América Latina. O streaming passa a ser o único da Warner Bros. Discovery, substituindo HBO Max e Discovery+. Curiosamente, vale lembrar, o Discovery é o único streaming, fora a Netflix, que atingiu o tão sonhado break even.
Falando em Max, havia fortes rumores de que a Paramount passaria a inserir seus conteúdos na plataforma e, desde novembro de 2023, os rumores davam conta da venda da empresa, ex-ViacomCBS, ao conglomerado comandado por David Zaslav.
Mas esta semana, houve uma mudança significativa nos boatos. Isso porque o magnata da mídia Byron Allen, do Allen Media Group, fez uma oferta oficial de cerca de 30 bilhões de dólares à empresa, assumindo 15 bilhões em dívidas e pagando outros 15 bilhões, após ver uma oferta pela rede ABC ser recusada pela Disney.
Além de Allen e WBD, Skydance Media e Apollo Global também são candidatas a futuras proprietárias da empresa que comanda, dentre outras, as marcas CBS, Nickelodeon e MTV.
Mais rumores dão conta que a faminta Disney, que mantém sob seu guarda-chuva nada menos do que quatro diferentes streamings (Disney+, Star+, ESPN+ e Hulu), está prestes a reduzir a quantidade para apenas 2 (ESPN+ e Disney+), sendo que o ESPN+ corre sério risco com o anúncio da parceria dos gigantes.
O futuro do streaming
O futuro de consolidação do mercado de streamings não é tão distante e suas vítimas já estão bastante claras. Há espaço para mais conteúdo aberto, como vêm trabalhando SBT (+SBT) e Paramount (Pluto TV), bem como para plataformas próprias atreladas a parcerias, como o Bandplay.
Dificilmente vejo um modelo como o do Globoplay sendo levado adiante sem profundas alterações no plano de negócios.
A venda de conteúdos deve ser melhor trabalhada e o know-how das empresas, respeitado. Já dizia um antigo ditado que “quem quer tudo, nada tem”. Parece-me cair como uma luva neste caso.
Torço para que as empresas de conteúdo retomem seu caminho e que surjam mais agregadoras como as telecoms, big techs e grandes e-commerces, que possam consumir o conteúdo e tocar as plataformas de distribuição.
Nossa lei do SeAC (Serviço de Acesso Condicionado) é ótima porque identifica muito bem cada ator do mercado (produtor, programador, empacotador e distribuidor) e o streaming precisa olhar com mais carinho para ela.