Coluna Especial

Nunca foi tão moderno valorizar a história da TV

Fernando Morgado defende o acervo da TV como negócio e sobrevivência


A Favorita (2008, retornou ao Globoplay
Divulgação

"Fazer TV era como escrever na água". Esta frase, cunhada pelo escritor e roteirista Walter George Durst, é uma das mais belas definições já dadas para os tempos pioneiros da televisão brasileira, quando o ao vivo dominava as programações. Quase nenhum registro sobrou daquilo que foi produzido pelas emissoras durante os anos 1950. Na década seguinte, o videoteipe avançou, permitindo não apenas o registro das atrações, mas também a sua retransmissão em diversas cidades, sendo esse o embrião das redes nacionais.

As fitas, contudo, eram caras e as condições de conservação precárias. Por isso, boa parte do que se fez nos anos 1960 foi apagado por sucessivas regravações ou simplesmente virou cinza. Demorou até que os canais percebessem a verdadeira mina de ouro que possuem em seus arquivos. E precisou vir uma pandemia para que muitos finalmente entendessem que memória também é negócio, e não apenas fonte de prazer para saudosistas.

A televisão é uma insaciável máquina de devorar pessoas e ideias. Tal fato, porém, fez muitos profissionais acharem que apenas conteúdos inéditos seriam capazes de atrair maiores audiências. Como consequência, programas antigos e profissionais experientes foram eliminados com a mesma facilidade com que se joga um papel velho na lixeira. Enquanto isso, o cinema foi por um caminho completamente diferente.

Os estúdios aproveitaram os avanços tecnológicos, do VHS ao streaming, para relançarem sucessos do passado com maior qualidade de som e imagem. À eles, acrescentaram conteúdos extras, como cenas descartadas e anúncios para TV. Em outras palavras: transformaram materiais com pouco ou nenhum valor comercial em objetos de desejo para fãs, que formaram um mercado bilionário. Veio dos arquivos, portanto, parte da força que levou o cinema para dentro das casas das pessoas.

Na maioria dos casos, um programa de TV é pensado para atingir o break even logo na primeira exibição. Todo dinheiro que vem depois é lucro. Isso inclui a venda de gravações no mercado internacional. Nunca se consumiu tanto conteúdo no mundo e nunca existiram tantos canais para atender a essa demanda.

Arquivo de TV é sobrevivência

Nunca foi tão moderno valorizar a história da TV

Cada emissora tem até 24 horas de programação para preencher, o que exige todo tipo de imagem: desde aquelas mais simples para ilustrar uma reportagem até novelas com centenas de capítulos. Também existe espaço para vendas no mercado interno. É cada vez mais comum ver, por exemplo, canais por assinatura exibindo atrações realizadas por redes abertas. A popularização dos serviços de streaming ampliou ainda mais a demanda por conteúdos, tanto novos quanto antigos, que tiveram sua competitividade renovada. Não custa lembrar que Friends, uma das séries mais assistidas no Netflix, foi lançada há 26 anos atrás.

Além de negócio, arquivo é sobrevivência. Em momentos críticos como este que vivemos, quando a produção de novos programas foi quase que totalmente paralisada por conta da pandemia do novo coronavírus, o acervo se transforma na primeira (e mais barata) opção para encontrar conteúdos atraentes e, assim, manter a emissora com mínimas condições de competir pela audiência. Quem não cuida de sua memória sofre ainda mais para permanecer no ar. Se sai melhor quem tem história para contar.

Além de todo o aspecto econômico, conservar a história da televisão é preservar a memória afetiva e coletiva de um país. É guardar a cultura popular. É exercer o caráter público que é intrínseco à comunicação. É diferenciar a TV das novas plataformas. É se preparar para o futuro, afinal, não sabemos tudo o que nos espera mais adiante, mas uma coisa é certa: o público continuará pedindo mais conteúdo a todo tempo e de todos os tempos.


Sobre Fernando Morgado - Consultor e palestrante. Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso. Coordenador-adjunto do Núcleo de Estudos de Rádio da UFRGS. Membro da Academy of Television Arts & Sciences, entidade realizadora dos prêmios Emmy. Assessor do SERT/SC. Possui livros lançados no Brasil e no exterior, incluindo o best-seller "Silvio Santos: a trajetória do mito" (5ª edição em 2017). É um dos autores de "Covid-19 e comunicação: um guia prático para enfrentar a crise" (2020), obra publicada em português, espanhol e inglês. Mestre em Gestão da Economia Criativa e especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela ESPM. https://fernandomorgado.com

Mais Notícias

Enviar notícia por e-mail


Compartilhe com um amigo


Reportar erro


Descreva o problema encontrado