Coluna Especial

Na Itália, Globo foi atacada com dinamite e sofreu prejuízo milionário

Fernando Morgado relembra a Telemontecarlo, emissora que fez Roberto Marinho brigar com Silvio Berlusconi


Globo comprou a Telemontecarlo
Divulgação

Neste domingo (26), a Globo completa 55 anos no ar. Trata-se de uma trajetória que, inegavelmente, acumula mais sucessos que fracassos. Contudo, alguns desses fracassos foram enormes. E um dos maiores aconteceu fora do Brasil, mais precisamente na Itália.

No início da década de 80, motivada pelo sucesso que suas novelas faziam no exterior, a Globo resolveu investir em emissoras de outros países. Após analisar algumas oportunidades, decidiu ingressar no mercado italiano, recém-aberto ao capital privado após vários anos de monopólio estatal.

Naquela época, as novelas do Brasil alcançavam boas audiências na Itália, onde alguns chamavam essas produções de "telefavelas". A Globo, inclusive, montou uma gravadora, a Sigla Retequattro, especialmente dedicada a criar versões italianas das trilhas sonoras brasileiras. Água Viva, por exemplo, ganhou um tema de abertura local interpretado por Marisa Interligi.

Em 1 de agosto de 1985, Roberto Marinho, fundador da Globo, assinou a compra da Telemontecarlo (TMC). Apesar de ter sede no principado de Mônaco, essa rede cobria o território italiano. Com ela, a família Marinho concorreria com ninguém mais, ninguém menos que Silvio Berlusconi, que chegou a controlar quatro redes de televisão aberta na Itália, além de outras na Alemanha, na Espanha e na França. Ele também foi dono do famoso clube de futebol Milan.

O poder de Berlusconi era (e continua sendo) imenso. Não por acaso, conseguiu ser primeiro-ministro três vezes. Para impedir o avanço da Globo, ele deflagrou uma guerra que se arrastou por quase três anos. Durante esse tempo, a TMC foi alvo de uma centena de processos em todo o país. Na Calábria e na Sardenha, suas antenas foram explodidas com dinamite. Em Roma, a emissora chegou a ser impedida pela Justiça de fazer transmissões ao vivo. Já em Turim, ela ficou um ano e meio fora do ar.

Ao mesmo tempo em que se desgastavam com tantos problemas, os brasileiros montavam a programação da Telemontecarlo. Buscando compensar a falta de conhecimento sobre o mercado local, eles adotavam fórmulas bem-sucedidas no Brasil: o telejornal Hoje virou Oggi, o TV Mulher virou TV Donna e a identidade visual da emissora era rigorosamente a mesma da Globo. Em um artigo publicado na edição de 22 de maio de 1986 do jornal O Globo, Artur da Távola disse que a TMC o "fazia recordar a Rede Globo dos anos 1960".

Motivo da Globo vender a Telemontercarlo 

A audiência da Telemontecarlo nunca foi das maiores. As novelas brasileiras já não tinham a mesma popularidade de antes. O destaque mesmo ficou por conta do esporte. Valendo-se da ótima relação da Globo com a FIFA, a TMC foi a única rede a transmitir todos os jogos da Copa do Mundo de 1986 para a Itália, país apaixonado por futebol. Isso assustou a Rai, empresa estatal de radiodifusão que tinha 10% da Telemontecarlo e que defendia a emissora na briga com Silvio Berlusconi. O afastamento de um aliado tão importante aprofundou ainda mais a crise da TMC, levando os Marinho a tomarem uma drástica decisão: a de venderem a emissora.

A imprensa internacional ventilou vários possíveis compradores para a Telemontecarlo: da Parmalat a Fiat (que quase levou), passando pela Hachette e pela Olivetti. Quando foi anunciada a venda da TMC para uma desconhecida empresa chamada JM Corporation, de Luxemburgo, funcionários do canal entraram em greve. Esse negócio acabou desfeito.

Finalmente, em outubro de 1990, a Globo conseguiu vender 40% da Telemontecarlo para o grupo italiano Ferruzzi, que controlava os jornais Il Messaggero e Italia Oggi. No Brasil, ele detinha as marcas Bombril e Cica. Mas o que parecia ser um final feliz transformou-se em uma tragédia fatal: o grupo Ferruzzi faliu, deixando a Telemontecarlo ainda mais debilitada. A essa altura, o prejuízo acumulado pela rede era de quase 200 milhões de dólares.

A página 23 da edição de 7 de janeiro de 1994 do jornal O Globo registrou o fim da aventura italiana da família Marinho. Culpando a recessão europeia, a desvalorização da lira, a crise política italiana, as dificuldades do grupo Ferruzzi, a queda da receita publicitária e a estagnação dos índices de audiência, a Globo anunciou a venda de sua participação na TMC. "Os investimentos do grupo serão concentrados no Centro de Produção de Televisão em Jacarepaguá [hoje Estúdios Globo] e no desenvolvimento da televisão por assinatura no Brasil", disse a nota.

Roberto Marinho chegou a sentir que a entrada na Itália seria um erro. Contudo, seus filhos o fizeram mudar de ideia. "'Vamos embora. Isso aqui não serve pra nós. Não gostei da cara do sujeito. Isso aqui não é confiável, isso aqui não tem jogo aberto.' Ele tinha toda razão... A primeira sensação dele foi absolutamente perfeita. Na primeira oportunidade, fomos traídos", disse Roberto Irineu Marinho ao relembrar as impressões tidas por seu pai após conversar com um membro do Partido Democrata Cristão italiano (livro Roberto Marinho, de Pedro Bial, 2005, p. 324).

Apesar de fracassada, a experiência da TMC trouxe lições para a Globo, que ajustou os seus negócios no Brasil e em Portugal, onde o grupo tinha parte da SIC, primeira televisão comercial daquele país. Também deixou marcas na TV italiana, que viu seu nível técnico subir. E, claro, compôs uma parte interessante e curiosa da história da televisão brasileira, que completa 70 anos em 2020.


Sobre Fernando Morgado - Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA). Possui livros publicados no Brasil e no exterior, incluindo Comunicadores S.A. e o best-seller Silvio Santos: A Trajetória do Mito. Membro da Academy of Television Arts & Sciences, entidade realizadora dos prêmios Emmy. Mestre em Gestão da Economia Criativa e especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela ESPM. Site: fernandomorgado.com

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