Coluna Especial

Silvio Santos, o mito que venceu a hipocrisia

A análise é de Fernando Morgado, autor do best-seller Silvio Santos - A Trajetória do Mito


Silvio Santos e o professor Fernando Morgado
Silvio Santos e seu biógrafo Fernando Morgado - Foto: Lourival Ribeiro/SBT

"[Silvio Santos] não fez nada que fosse importante para a história da TV brasileira a não ser ele mesmo." No momento em que deu essa declaração ao UOL, Boni, ícone da nossa televisão, certamente teve um breve lapso de memória. Quando Boni era o rei sol da Globo, Silvio Santos também estava lá e foi decisivo para que a emissora alcançasse a liderança de audiência e pagasse seus salários em dia, pois, nas palavras do próprio Boni, a empresa da família Marinho "estava praticamente falida". E foi a concorrência com o SBT, fundado por Silvio, que forçou a Globo, ainda sob a batuta de Boni, a ampliar o tempo dedicado às crianças, lançar programas de auditório e dinamizar o jornalismo, que sofria severos questionamentos.

Enquanto Boni, segundo o próprio, auxiliava Collor no debate contra Lula em 1989, o SBT exibia o TJ Brasil, que apostava na opinião, algo raro nos noticiários de então, e na ancoragem de um jornalista, Boris Casoy, completamente fora do padrão global.

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Aliás, é interessante analisar a postura dos críticos mais vorazes que Silvio teve ao longo da vida. Ao ler centenas de textos publicados desde meados do século XX para escrever o livro Silvio Santos - A Trajetória do Mito, verifiquei que alguns dos que demonizavam Silvio e seus programas eram os mesmos que, felizes da vida, aceitavam convites para colaborar como jurados do Troféu Imprensa e, orgulhosos, posavam em fotos e vídeos ao lado do animador. No passado, era mais explícita a ojeriza de muitos ao fato de Silvio Santos ter sido camelô. Recentemente, nas redes sociais, pessoas que diziam combater preconceitos se referiam ao fundador do SBT como "decrépito" e "gagá".

Por trás de tanta hipocrisia, existe a sanha por cliques, além de diferenças político-partidárias absolutamente momentâneas, visto que Silvio enalteceu todos os governos, da esquerda à direita. Muitos dos que condenaram o animador após a posse de Michel Temer fizeram vista grossa quando Silvio Santos de terminou que sua rede não transmitisse a votação do impeachment de Dilma Rousseff.

Ao mesmo tempo, aqueles que celebraram vinhetas ufanistas inseridas nos intervalos do SBT se esqueceram que o SBT Brasil, principal telejornal da emissora, estreou sob a "benção oficial do presidente Lula". Sem falar dos muitos que, ao resumirem a história de Silvio, omitem o fato da Semana do Presidente ter permanecido no ar por mais de uma década, terminando apenas durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em suma: há quem diga empunhara bandeira da independência, mas só quando convém.

O maior apresentador de TV do mundo

Silvio Santos é o maior nome da história da comunicação nacional. Nenhum outro profissional foi capaz de se tornar um grande ídolo popular e, ao mesmo tempo, erguer uma das maiores redes de televisão da América Latina, tendo que competir com a Globo, uma das melhores TVs do planeta. Entre acertos e erros, como qualquer ser humano, a vida de Silvio gerou aquilo que eu chamei de mito. E foi esse mito que deu assunto para críticos, emprego para profissionais e diversão para pelo menos seis gerações de telespectadores.

Ainda que São Paulo o tenha acolhido como filho, foi no Rio de Janeiro onde nasceu Senor Abravanel, nome verdadeiro de Silvio Santos. Desde os tempos em que vendia canetas na esquina da rua Sete de Setembro com a avenida Rio Branco, ele construiu uma história na qual a figura do comerciante se confunde com a do artista. No início, fazia pequenos números de mágica para atrair fregueses. Depois, diante dos microfones de rádio e das câmeras de televisão, animou todo tipo de programa, transformando audiência em clientela para os muitos produtos que lançou: de carnê de mercadorias a perfume, passando por plano de saúde e título de capitalização.

Silvio desenvolveu uma capacidade única de traduzir em sons e imagens aquilo que o brasileiro médio deseja consumir, inclusive em termos de entretenimento. Assim, foi capaz de formar um dos maiores conglomerados empresariais do país sem deixar de ser idolatrado por parte expressiva da população.

Silvio Santos transformou-se em sinônimo de domingo graças ao programa que leva seu pseudônimo, cuja data de estreia é 2 de junho de 1963. Com um estilo inigualável, mas exaustivamente imitado, comandou atrações tão distintas quanto brincadeiras com artistas, câmeras escondidas, desafios ao conhecimento, gincanas infantis, números musicais, oportunidades para calouros e pedidos de namoro.

Cada pessoa, conforme o ano em que nasceu, recorda com mais carinho de algum momento apresentado por Silvio: as seguidas vitórias de Ronnie Von no Qual é a Música?, as câmeras escondidas com Ivo Holanda e companhia, as provas do Domingo no Parque, as palhaçadas de Sérgio Mallandro no Show de Calouros, os sonhos realizados na Porta da Esperança, as perguntas do Show do Milhão, a consagração de Bárbara Paz na final da Casa dos Artistas 1, as interações com Hebe Camargo no Teleton etc.

Tamanha transcendência levou Silvio Santos a ocupar um lugar de destaque no olimpo da televisão internacional. Em 2020, quando do nonagésimo aniversário de Silvio, eu afirmei que ele é o maior apresentador do mundo. Tal conclusão se baseia em dados incontestáveis: ele comandou mais de uma centena de formatos dentro e fora do maratônico Programa Silvio Santos, que permanece no ar há mais de 60 anos. Não existe artista, nem no Brasil nem no exterior, que se aproxime de tais marcas e, diante da contínua especialização das mídias, torna-se cada vez mais improvável que alguém venha a superá-las.

Silvio Santos é eterno

Aos 90 anos, mesmo em meio a pandemia de Covid-19, Silvio Santos animou alguns programas. No estúdio, ele encontrava não apenas as suas colegas de trabalho, como também a sua própria alegria de viver. Quem já participou de alguma gravação com ele sabe a que me refiro. Era impressionante vê-lo atento e falante por horas a fio, apesar da idade avançada. Exalava disposição para trabalhar, algo que falta para aqueles que chafurdam no ódio através das redes sociais.

Vai o Senor Abravanel e fica o Silvio Santos. Com ele, ficam também os legados: os incontáveis profissionais que revelou; os programas que marcaram a vida de milhões; uma rede de TV despudoradamente popular; a subsistência de muitos jornalistas que, falando bem ou mal dele, garantiram seu ganha pão; o estímulo, graças às vultosas doações de mídia que fez, à venda de diversos livros independentes sobre ele próprio, a começar pelo meu Silvio Santos - A Trajetória do Mito.

Por não ser de carne e osso, o mito Silvio Santos é imortal. Ele seguirá vivo em cada bordão pronunciado, em cada momento recordado, em cada vídeo assistido. Não existem unanimidades. Existem, porém, os quase unânimes. Silvio foi um desses, a despeito do extremismo que insiste em nos rodear. A onda de alegria que ele transmitia hoje se converte em um vento de tristeza que varre estúdios de todo o país. Mais do que um artista famoso ou um empresário vitorioso, o que o Brasil perde é parte importante de sua memória afetiva e coletiva. Silvio Santos é o símbolo de um tempo que não volta mais.

PS: em linha com a hipocrisia mencionada anteriormente, chegou a hora de muitos críticos colocarem em prática a célebre frase que Machado de Assis escreveu no conto O Empréstimo: "Está morto: podemos elogiá-lo à vontade".


Sobre Fernando Morgado - Consultor e palestrante. Professor da ESPM e Top Voice no LinkedIn. Possui vários livros lançados no Brasil e no exterior, incluindo Comunicadores S.A. (2019) e o best-seller Silvio Santos - A Trajetória do Mito (5ª edição em 2017). Foi coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Gestão da Economia Criativa e especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela ESPM. Instagram:https://www.instagram.com/morgadofernando_

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