Mídia, Mercado e Etc.

Em guerra, plataformas de streaming acumulam perdas bilionárias durante 2022

A ousadia de tentar ser a Netflix está custando caro para os grupos de mídia tradicionais - e a “guerra do streaming” pode acabar virando velório

Guerra dos streamings pode acabar em velório - Foto: Reprodução
Por Renan Martins Frade

Publicado em 28/02/2023 às 07:03:00,
atualizado em 02/03/2023 às 08:17:16

Cerca de 11 bilhões de dólares. Foi isso que os tradicionais conglomerados de mídia norte-americanos Warner Bros. Discovery (dona da HBO Max), Disney (de Disney+, Hulu e Star+), Paramount Global (Paramount+ e Pluto TV) e NBCUniversal (Peacock) perderam, juntas, ao investirem em streaming em 2022. O número, que considera as receitas de assinaturas e as despesas na produção e no licenciamento de filmes e séries, assusta.

Tudo em nome da chamada “guerra do streaming” - que pode ser resumida a esses grandes conglomerados do passado tentando desbancar a Netflix.

O entretenimento audiovisual nunca foi um investimento simples, muito menos sem riscos. Desde sempre esses grupos “legados” apostam cartas no que pode ou não ser sucesso, colocando grandes somas em diversos projetos. No curto prazo, muitas vezes é como se jogassem no cassino: entre perdas e ganhos, torcem para “empatar” as contas até acertar no jackpot, aquele enorme prêmio acumulado no caça-níqueis.

Bom conteúdo, afinal, é algo caro.

Na prática, eles sempre jogaram no longo prazo. Um filme, por exemplo, podia até dar prejuízo no lançamento nos cinemas, mas continuava a vida enquanto era vendido em DVDs, ia para as locadoras, era comprado por redes de TV fechadas e abertas, etc. Um dinheiro que vai pingando, mês a mês, e continua a ser reinvestido em novos produtos audiovisuais.

Hollywood e toda uma indústria trabalharam dessa forma a partir de, pelo menos, o advento da televisão - lá na década de 1940.

Mudando o jogo

Acontece que, há alguns anos, os grandes conglomerados de mídia internacionais “cresceram o olho” para a Netflix. Viram que a empresa usou muitos desses conteúdos repassados pelos estúdios tradicionais para criar um bem-sucedido modelo de negócio, chamado “direct-to-consumer” (direto para o consumidor, em português).

Mais do que isso: percebendo que uma hora a ficha desses fornecedores de conteúdo ia cair, a própria Netflix se movimentou. Passou ela mesma a financiar a produção de filmes e séries, atraindo grandes nomes do cinema e da televisão. Surgiram sucessos como Stranger Things, House of Cards e Orange is The New Black. Wall Street ficou maravilhada com o crescimento, transformando a plataforma em queridinha e inflacionando suas ações.

Em poucos anos, a pioneira se tornou tão valiosa quanto grupos construídos a partir de estúdios centenários.

Os concorrentes de mídia finalmente acordaram, percebendo que poderiam ganhar mais cortando o “homem do meio” - ou seja, as operadoras de TV por assinatura, exibidores, canais concorrentes e, veja só, a própria Netflix. Foi quando escorregaram na casca de banana.

Veja: a Netflix não é, originalmente, uma empresa de entretenimento. Sabe o modelo de negócio explicado no começo deste artigo? Ele nunca existiu no Vale do Silício, região próxima de São Francisco, Califórnia, que é famosa por sediar startups e grandes negócios de tecnologia. Lá fica a sede da gigante do streaming, ao lado de Meta (do Facebook) e Alphabet (Google).

As regras são outras naquele pedaço de terra. Basicamente, aposta-se em um crescimento rápido. É como se você, querendo ficar forte, desistisse de ganhar músculos aos poucos e recorresse logo aos anabolizantes. Nesse caso, os esteróides são o dinheiro - vindo quase sempre de investidores, seja via bolsa ou não. O progresso é turbinado, acelerando-se a implementação de ferramentas e a mudança de comportamento dos consumidores. O negócio se torna um gigante em menos tempo.

Foi exatamente o que fez a Netflix, gastando muito para produzir em um volume enorme, o tempo todo. Além de alimentar um crescimento de assinantes que deveria ser exponencial, a empresa sentia que precisava compensar o centenário catálogo que Hollywood estava, aos poucos, tirando de lá.

Essa estratégia é incrível quando dá certo, mas o risco é alto. Muitas grandes ideias do Vale do Silício ficaram pelo caminho, seja por falta de adesão do público, má gestão, timing errado, etc. E mesmo os grandes grupos erram, vide o Google sempre lançando e encerrando novas ferramentas - e as recentes demissões em massa em empresas de tecnologia, dos mais diversos tamanhos.

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O anabolizante deu errado

É aqui que entram as perdas bilionárias. Hollywood achou que poderia jogar o mesmo jogo dos adversários que ficam mais ao norte, passando a investir pesado em suas plataformas de streaming próprias. Nos últimos três anos, praticamente ignorou uma estrutura de distribuição aprimorada por décadas. Junto com a pandemia, acelerou a mudança de comportamento do consumidor - que deixou de ir ao cinema e cancelou a TV paga.

A essa altura é difícil imaginar o que passou pela cabeça dos executivos. Provavelmente eles viram os investidores exigindo a entrada no streaming, demandando um grande número de assinantes, e compraram a ideia sem fazer maiores julgamentos. Não perceberam que a estratégia das chamadas “big techs” funciona bem em mercados novos, inexplorados, ou onde a empresa não tem nada a perder contra adversários mais lerdos que paquidermes. Não é um bom caminho para quem já tem uma fonte de receita estruturada e quer transições suaves.

Para piorar, a maré mudou em 2022. A própria Netflix, baluarte e desbravadora do vídeo na internet, começou a perder assinantes. Preocupados, os investidores passaram a olhar para outros detalhes nos balanços dos grupos que investem nesse setor - e “perceberam” os grandes débitos, valores negativos quando se subtrai os gastos das receitas. É onde os enormes gastos com filmes e séries estão batendo.

O valor de US$ 11 bilhões, aliás, não representa tudo o que foi “perdido” em 2022. Não considera iniciativas menores, de outras empresas legadas - e a HBO Max, por conta da saída da WarnerMedia da AT&T para formar a Warner Bros. Discovery, tem alguns dados inconsistentes. Ainda assim, dá uma dimensão do que esse momento representa.

E para você ter uma ideia do que os números representam, US$ 11 bi (cerca de R$ 57 bilhões, em conversão direta) foi a receita total da própria Warner Bros. Discovery no quarto trimestre do último ano. Comparando com países, é quase o PIB das Bahamas.

A Netflix - que alguns forçam para dizer que está “mal” - ficou com uma receita líquida positiva de quase US$ 4,5 bilhões. Enquanto os outros perdem dinheiro, a pioneira dá lucro. Claro que essa não é, exatamente, uma comparação justa. Os grupos de mídia legados possuem diversos negócios - incluindo parques a hotéis, no caso da Disney -, já a Netflix tem basicamente dois “produtos”: vender assinaturas e publicidade na plataforma.

Voltando ao passado

As contas seguem fechando para os conglomerados tradicionais. Por enquanto. É que o mercado de TV por assinatura está em colapso e os investimentos em publicidade estão diminuindo. Para se ter uma ideia, a compra de anúncios nas plataformas tradicionais da Warner Bros. Discovery (lista que inclui canais pagos como TNT, Discovery Home & Health e CNN) caiu 17% só no último trimestre.

É por isso que essas empresas estão voltando a fazer o que sabem: serem do passado. Aos poucos, estão diminuindo a velocidade em investimentos diretos para o streaming, dando mais atenção para os cinemas tradicionais e outras práticas que tinham ficado esquecidas. Entre elas, licenciar filmes e séries em uma tentativa de virar “fornecedor de armas” para os outros lutarem na guerra. Exatamente o que pararam de fazer, lá atrás, para a Netflix.

Tudo para sair do vermelho.

Mas só isso não vai resolver, não. Uma das grandes vantagens da TV por assinatura era que você pagava por uma centena de canais que, na prática, nunca assistia. Ruim para nós, consumidores, mas ótimo para as empresas de mídia - o que permitiu sustentar todo um modelo de negócio. No streaming, você paga apenas por uma plataforma, o que não fecha a conta.

É por isso que, além de termos menos produções exclusivas para a internet, essas empresas vão cada vez mais empurrar “pacotes” de serviços, na esperança de você assinar o que não vê. Vai dar certo? Talvez, mas não é - ainda - a melhor forma de transferir a fórmula do passado para o mundo de hoje.

A verdade é que, como em qualquer guerra, as mortes vão começar a acontecer. Quem for esperto e tiver alternativas, vai buscar uma fusão, ser adquirido ou simplesmente irá diminuir de tamanho (ou de pretensões) para sobreviver. Quem não for, vai falir.

No final das contas, não é a Netflix que pode matar os grupos tradicionais de mídia, mas sim a ganância de tentar ser ela.


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