Publicado em 09/05/2023 às 05:23:00
Na última quinta-feira (4), a Globo estreou a nova versão do programa semanal Linha Direta, sucesso nos anos 1990 e 2000. Um retorno que, se você reparar bem, não acontece descolado do resto do mundo - e que, apesar das críticas aqui no Brasil, tem muito a ensinar nessa atual onda do true crime.
Discovery e Netflix são as que mais estão se dando bem no formato, sendo claramente inspirações para a emissora brasileira. A primeira é a mais tradicional, inclusive com um canal, o ID, reservado totalmente ao tema. Mas foi a segunda que efetivamente influenciou a mania do momento.
Dahmer: Um Canibal Americano, por exemplo, é a terceira série de língua inglesa mais assistida na história da Netflix, que tem mais de 230 milhões de assinantes em todo o globo. A Máfia dos Tigres, Night Stalker: Tortura e Terror, O Golpista do Tinder e Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha, entre outras, também se tornaram fenômenos culturais.
Não para por aí. Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez, da HBO Max, se tornou febre no nosso país no ano passado.
Há dois anos, a consultoria Parrot Analytics deu números a esse movimento. De acordo com a empresa, o volume de novos documentários cresceu 63% entre janeiro de 2019 e março de 2021. No mesmo período, a demanda do público saltou em 143%.
Dentro desses dados, as produções de true crime aumentaram em 60% - muito mais do que dos outros subgêneros.
Isso sem mencionar o que vem da dramaturgia, como a já mencionada Dahmer.
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O nome true crime é um estrangeirismo para explicar algo que sempre existiu: filmes, séries e documentários baseados em crimes verdadeiros. O próprio Linha Direta gaba-se de ser, em sua versão original (de 1990), um precursor dessa vertente. Nem isso: o subgênero tem as suas raízes da literatura chinesa do século 17.
No Brasil tudo isso se confunde com o jornalismo popular. Por aqui tivemos o famoso jornal diário Notícias Populares (1963-2001), ou ainda programas de TV como Aqui Agora (1991-1997; 2008), do SBT, que afirmava mostrar “a vida como ela é”.
No cinema, o filme mudo O Crime da Mala, de 1928, pode ser mencionado como um pioneiro - enquanto O Bandido da Luz Vermelha, de 1968, talvez seja o melhor exemplo de todos.
Sem nunca ter nos deixado, a exploração dos delitos reais vive uma espécie de explosão de 2014 para cá. Em parte porque as pessoas sempre tiveram uma forte fascinação pelo lado obscuro da natureza humana, se deixando seduzir pelos mistérios e pelos desejos sombrios que levam uma pessoa a cometer a pior das atrocidades.
De certa forma, é como se os espectadores buscassem alguma aventura para suas rotinas tediosas. Ou se identificar com alguém que enfrenta problemas ainda mais graves do que os seus, como uma forma de não se sentirem solitárias em seu sofrimento diário.
Essa deve ser uma análise intrigante para quem é formado em psicologia e estuda a natureza humana.
Seja como for, o subgênero é tentador para quem produz conteúdo. Em uma era no qual estúdios, canais de TV, plataformas de streaming e podcasts precisam manter um ritmo frenético de lançamento para cativar o público e manter assinaturas, documentários de true crime representam uma grande fonte de enredos impactantes, prontos e de baixo custo para produzir.
Se essas histórias forem previamente famosas, então, melhor ainda.
A resposta pode parecer óbvia: se o nome significa crime verdadeiro, então tudo ali seria realidade. Nem sempre. Uma das críticas à moda atual é que algumas produtoras são incentivadas a deixar os fatos um pouco de lado, buscando construir histórias que envolvem o espectador.
Para isso são esquecidos preceitos de uma boa investigação, ou até mesmo acontecimentos importantes para o caso, para poder encaixar no roteiro as ferramentas tradicionais de filmes e séries - como a divisão em três atos, pontos de virada, a jornada do herói e por aí vai.
É cruzada a linha em direção à ficção - ainda que exista quem faça seu trabalho de forma exemplar, é bom frisar.
Nas produções de dramaturgia não existe tanto esse compromisso, mas muitas vezes o público acaba vendo o que está na tela como uma representação quase fiel aos acontecimentos.
Não se trata de algo banal: um filme ou série pode criar heróis e vilões, capturando a narrativa e impactando para sempre a vida de pessoas reais - sejam elas as vítimas ou não.
É aqui que o revival da Globo merece elogios.
Em sua versão mais famosa, que foi ao ar entre 1999 e 2007, o semanal foi extremamente sensacionalista. Com uma narração pesada (de Márcio Seixas e, depois, de Carlos Vereza), a primeira vítima era o fato.
O programa tinha como regra ficcionalizar as reconstituições ao extremo, muitas vezes contradizendo o que as testemunhas diziam em tela. No pior sentido, o Linha Direta original também foi um precursor do atual momento do true crime no resto do mundo.
Na nova roupagem, a produção - apesar de ser assinada pelo núcleo de teledramaturgia da Globo - pega emprestado a credibilidade de seu apresentador, o jornalista Pedro Bial. Não há uma busca de adaptar a história às ferramentas de roteiro usadas por Hollywood, nem as dramatizações brigam tanto com o relato das testemunhas (apesar de eventuais escorregadas).
O caso escolhido para a estreia - do sequestro e morte da jovem Eloá Cristina - também ajuda: há um farto arquivo de imagens.
Falando nisso, o Linha Direta não foge de uma necessária análise do papel da imprensa e da polícia naqueles fatídicos dias de 2008. Faltou, talvez, ser mais incisivo nessa autocrítica, ainda que o programa cumpra a importante função de apontar falhas para que elas não se repitam.
Mesmo assim, a atração teve os seus problemas. A principal foi a falta de entrevistas com a maior parte dos envolvidos - apenas uma das vítimas foi ouvida.
Pelo lado da família de Eloá, entende-se a dor que é reviver todos esses acontecimentos, principalmente quando lembramos que a imprensa teve um peso no desfecho trágico. Porém, em termos jornalísticos, o Linha Direta ficou devendo.
Há também um certo ar de ingenuidade ao passar a mensagem de que, hoje, o final seria diferente. A mídia tradicional pode até ter aprendido a lição, mas atualmente é muito mais difícil controlar a repercussão nas redes sociais. Cada um de nós se tornou um comunicador em potencial, e nem todos entendem o peso que possuem nessa corrente.
Seja como for, o novo Linha Direta - ao menos nessa estreia - é um avanço. Dá para entender a indignação de muitos contra o programa, mas uma coisa é inegável: nesse tom, a iniciativa tem mais a contribuir à sociedade do que causar danos a ela.
Que continue assim.
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