Jovem Nerd dá passo ousado com série estrelada por Selton Mello
Dupla por trás do Jovem Nerd revela todos os detalhes de sua primeira audiossérie ficcional, que estreia no Spotify no fim de agosto
Publicado em 03/08/2023 às 04:15,
atualizado em 03/08/2023 às 16:42
Quando eu disser “vai”, feche os olhos. Imagine, por 30 segundos, que você é um deficiente visual. Instigue os seus outros sentidos. Sinta as correntes de ar à sua volta – ou a ausência delas. Preste atenção em todos os sons, por menores que sejam. Sinta o gosto em sua boca, o odor em suas narinas.
Vai.
Percebeu um mundo que, mesmo com os olhos bem abertos, você não vê? Pois essa é a realidade que propõe a audiossérie França e o Labirinto, podcast protagonizado por Selton Mello e produzido pela Nonsense Creations em parceria com o Spotify. Você talvez não reconheça o nome da produtora, mas certamente já ouviu falar de seus dois fundadores: Alexandre Ottoni e Deive Pazos, os criadores do Jovem Nerd.
Em entrevista exclusiva a esta coluna, os dois contaram mais detalhes do novo produto – e revelaram em primeira mão a data de estreia de todos os 13 episódios: 29 de agosto.
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Curiosamente, tudo começou do jeito mais Jovem Nerd possível: pela tecnologia.
Pazos relata que há mais de 10 anos usam o áudio binaural no NerdCast RPG, derivado do famoso programa no qual seus participantes embarcam em uma aventura de role-playing.
“É uma forma de capturar o áudio simulando como nós ouvimos. O ser humano tem duas orelhas, o cérebro [no centro] e aí, conforme o som vem – mais de um lado do que do outro, rebatendo nas paredes, da forma como ele chega na sua cabeça – o cérebro interpreta [onde está o objeto]”, detalha.
Se você não lembra de onde já escutou (com perdão do trocadilho) sobre esse conceito, Deive Pazos dá a explicação final: “O fenômeno de ASMR é uma extrapolação da tecnologia que a gente usa nesse programa”. O som Dolby Atmos, das salas de cinema, é outro exemplo.
Com o sucesso do podcast – o NerdCast é campeão de audiência há 17 anos –, surgiu a ideia de aplicar a tecnologia em outros produtos. “Como a gente usa isso para não ser só uma firula? Como isso pode ser parte da história?”, relembra.
Assim nasceu França e o Labirinto, que é definido pelos criadores como um neo-noir – versão atualizada daqueles clássicos do cinema dos anos 1940 e 1950, sempre com um assassinato, uma mulher fatal e muita fumaça de cigarro.
Ottoni diz que esse direcionamento surgiu de forma prática: a dupla procurou explorar um tipo de história que colocasse o protagonista em perigo, e que fizesse com que ele conversasse bastante. “A gente foi naturalmente indo para um ambiente mais investigativo”, lembra.
“Gostamos muito desse clima noir. Somos super fãs de Blade Runner e outros filmes noir, então isso foi inclinando a gente para esse caminho, para esse clima que queríamos trazer”, complementa Pazos.
Entra o Spotify
Apesar da ideia ser antiga, a iniciativa chegou aos ouvidos da sueca Spotify em 2018. “Não tinha nem roteiro. Tínhamos [apenas] o conceito, a ideia, a experiência de como fazer isso”, relembra Alexandre Ottoni.
Ao fechar o projeto com a plataforma, narra a dupla, uma das condições era que ambos criassem tudo, entregando a audiossérie pronta para a empresa. “É um original do Spotify”, ressaltam.
Ao ouvir a proposta, o outro lado embarcou de imediato.
“O interesse veio de se associar com o Jovem Nerd sabendo que eles são os precursores de podcasts”, conta Camila Justo, líder de produção original da companhia no Brasil. “[É] uma ideia super inovadora. [...] A gente tem também esse papel de lançar coisas que ainda não estão sendo feitas.”
Se passaram cinco anos desde aquele primeiro contato – “ficção precisa de muito cuidado”, explica. No entanto, o lançamento de França e o Labirinto ocorre em um momento de mudanças para o próprio Spotify, como já relatado aqui em Mídia, Mercado e Etc.
Afinal, o podcast desponta há alguns anos como um interessante modelo de conteúdo na internet – até este colunista tem um programa para chamar de seu, com dicas do que assistir no streaming de vídeo e nos cinemas – e os suecos apostaram pesado em grandes nomes exclusivos, como os Obamas, Kim Kardashian e o príncipe Harry.
Contudo, em 2023, a plataforma repensou essa estratégia e realizou cortes nas equipes, além de encerrar contratos de exclusividade. Ainda assim, a executiva garante: continuam apostando no formato.
“É normal, quando se está com uma nova mídia, explorar novos caminhos”, afirma Camila ao ser questionada sobre os projetos iniciados e encerrados nos últimos anos. “Vimos o que deu certo e o que não deu, aprendemos, e [agora] estamos indo para o caminho que consideramos que faz o mais sentido.”
“Não foi nada muito chocante”, relativiza. “É o que as empresas de streaming fazem, em geral.”
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Uma viagem ao labirinto
Esta coluna já ouviu os três primeiros episódios de França e o Labirinto, e o esmero da dupla do Jovem Nerd é claro em cada detalhe. O áudio binaural é quase como um “cafuné” no cérebro, enquanto o elenco de vozes inclui nomes conhecidíssimos da dublagem brasileira – além do próprio Selton Mello, que dá vida ao personagem-título.
Na história, o detetive particular Nelson França é um homem que vive à sombra de um caso famoso, que solucionou há muitos anos. Hoje, recém-divorciado, se contenta com pequenas investigações, a maioria de infidelidade. Todavia, um assassinato ocorre, despertando a sua atenção. Será alguém repetindo as práticas do serial killer Assassino do Labirinto, que ele ajudou a prender?
Esse é só o gancho para entrar nessa viagem. Diferentemente de outras séries do tipo, França e o Labirinto não possui a figura do narrador, que descreve em palavras as imagens que os ouvintes não podem ver. Na realidade, estamos na mesma situação do protagonista – e o visual é relatado pelos outros personagens ou pelos latidos de Bonaparte, o cão-guia de Nelson França.
“Como é áudio, o detetive ser deficiente visual foi uma premissa interessante. Nem ele, nem você vêem. Está todo mundo junto na pele dele, passando por todas as situações”, profere um empolgado Ottoni.
"A gente teve a consultoria do Lucas Radaelli, que é amigo nosso de muitos anos. Ele é cego, é engenheiro do Google – uma pessoa extremamente independente. […] Ele é meio que uma âncora pra gente”, explica.
Para eles, era primordial que esse elemento “não fosse só jogado”. Por isso, a vida de um deficiente visual é retratada com exatidão. O cuidado é tanto que ouvimos de forma acelerada a Iris – a assistente de voz do celular de França – fazendo o VoiceOver do aparelho.
Tudo isso foi um desafio para o roteiro, revelam. Eles estabeleceram algumas limitações, como evitar flashbacks, pensamentos ou cenas em que o protagonista (o fio-condutor da história) não estivesse presente. Para substituir essas ferramentas narrativas entraram velhas fitas VHS e o “cão-parceiro” Bonaparte, com quem França conversa.
No total, foram dois anos escrevendo a história, um trabalho que também envolveu Leonel Caldela (autor da saga Tormenta) e Fabio Yabu (criador dos Combo Rangers).
“Dream team” das vozes
Poucas vozes brasileiras são tão reconhecidas como a de Selton Mello, ator com uma vasta carreira com TV e cinema e que já fez, no passado, muita dublagem. Também são poucos timbres que se encaixam tão bem em uma produção que tem o esmero com o áudio como um dos seus pontos-chave.
“O nosso sonho dourado era o Selton Mello!”, diz Alexandre Ottoni, com um enorme sorriso no rosto, ao relembrar o começo dessa trajetória.
Na época, ele estava vinculado a um contrato que o impedia de participar. Contudo, com o passar do tempo, a situação mudou, e o ator ficou disponível. “A entrada do Selton elevou muito o conteúdo”, ressalta Camila Justo, do Spotify.
Não é só ele, não. O ouvinte notará diversas outras vozes conhecidas, vindas de dubladores famosos – ambiente pelo qual o Jovem Nerd sempre trafegou muito bem. Entre os primeiros episódios ouvidos pela coluna, pode-se reconhecer a presença de Jorge Lucas (dublador de Don Cheadle nos filmes da Marvel) e Maíra Góes (a Keira Knightley na franquia Piratas do Caribe).
“Fomos atrás de um 'dream team’ de dubladores”, gaba-se Deive Pazos. Um dos atrativos foi a possibilidade dos atores criarem os seus personagens do zero, sem as limitações tradicionais da dublagem. Até os erros de gravação acabaram entrando. “Deixa, a gente fala assim”, relembra Ottoni.
Por mais que siga um esquema igual ao de um filme, série ou novela, a dupla conta que os intérpretes foram inicialmente gravadas separadamente – inclusive por conta dos requisitos do áudio binaural. “Precisávamos ter todos os sons isolados, para que pudéssemos movimentá-los de acordo com a necessidade da cena”, explica.
Depois, em momentos-chave em que eles acharam necessário, foram feitas “bem poucas” regravações com todos em cena interagindo ao mesmo tempo, ainda que em estúdios diferentes. Tudo capitaneado pela diretora Fernanda Baronne – cuja voz você reconhecerá como a Charlize Theron em filmes como The Old Guard.
Próximo passo: conquistar o mundo?
França e o Labirinto abre uma nova fase do Jovem Nerd como produtor de conteúdo, agora sob o nome Nonsense Creations. “É o produto mais refinado e bem-acabado que a gente já entregou”, ressalta Pazos.
Podemos esperar novas iniciativas do tipo para o futuro próximo?
“Temos outros projetos engatilhados, alguns negociados já. Ideia nunca falta”, despista.
Até agora, apenas um foi anunciado: o videogame baseado em Ruff Ghanor, personagem que é uma propriedade intelectual do Jovem Nerd.
Agora, falando especificamente de França: alguma chance da série ser exportada para outros países, com versões em outras línguas? “É um caminho que já aconteceu antes no Spotify”, relata Deive Pazos.
“O bom do Spotify é exatamente esse: a gente tem essa internacionalização dos nossos conteúdos”, gaba-se Camila Justo. Ela menciona outras produções que vieram de fora para o Brasil, com localização em português – como Batman Despertar e Paciente 63.
“O França tem todo o poder de ser exportado”, comenta a executiva – que ressalta: “Não temos nada definido, [antes] precisamos estrear a série, ver como vai funcionar”.
O lado positivo é que a internacionalização não é tão complexa quanto se pode imaginar. Envolveria adaptações do roteiro, mas a sonorização não precisaria ser feita do zero. “A gente tiraria as vozes e ajustaria as métricas, os efeitos, etc., mas a base já existe”, explica Pazos.
Enquanto não ganha o resto do mundo, França e o Labirinto chega aos usuários brasileiros do Spotify em 29 de agosto.