Indústria musical supera “Efeito Napster” e renasce das cinzas com streaming
Receita com música gravada retorna ao patamar dos anos 1990, antes da explosão da pirataria na internet; no entanto, ressurgimento causa grande mudanças no consumo e nas próprias canções
Publicado em 28/03/2023 às 04:30,
atualizado em 28/03/2023 às 14:50
O ano era 2015. Em uma viagem a trabalho em Beverly Hills, na Califórnia, passei em frente a uma bela e imponente sede de uma importante gravadora. Lembro que, naquele momento, fiz uma piada no Instagram que hoje me parece besta: postei uma foto do edifício junto da legenda “isso ainda dá dinheiro?”.
Não demorou muito para uma colega, assessora de imprensa do estúdio de cinema do mesmo grupo, comentar: “Opa. Sim”.
Confesso que, naquele momento, apostar na derrocada de um gigante da indústria musical parecia a jogada certa a se fazer. O ano anterior, 2014, representou a pior receita para as gravadoras na era moderna, em uma queda paulatina que vinha desde o começo dos anos 2000 - quando a chegada do Napster, o aplicativo pioneiro no compartilhamento de áudio, abriu as portas da pirataria na internet, mudando drasticamente esse negócio.
A situação estava tão complicada que a tal empresa já havia anunciado que estava deixando aquele endereço, se mudando para a estrutura do estúdio de cinema. O objetivo? Cortar custos.
Bom, eu não poderia estar mais errado sobre o futuro.
A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, da sigla em inglês) divulgou na última semana que a receita com música gravada cresceu 9% em 2022, chegando a US$ 26,2 bilhões - o dobro daquela marca de 2014. De acordo com a organização que representa as gravadoras, quem puxou esse aumento foram África Subsaariana (+34,5%), América Latina (+25,9%) e Ásia (+15,4%).
Esse foi o oitavo ano consecutivo de crescimento para o setor. Melhor do que isso: o volume de dinheiro já é superior aos 22,3 bilhões de dólares que as gravadoras arrecadaram em 1999, quando elas dominavam o mercado com táticas agressivas, a MTV reinava e a pirataria ainda engatinhava. Isso sem considerar a inflação, é claro.
O resultado se deve à receita advinda do streaming. O faturamento dessas empresas no modelo de distribuição foi, no último ano, de US$ 17,5 bilhões, um incremento de 11,5%. Se desconsiderar as assinaturas gratuitas, bancadas por publicidade, a renda foi de 12,7 bilhões de dólares, um crescimento de 10,3%. De acordo com a federação, há 589 milhões de assinantes pagantes, divididos em plataformas como Deezer, Apple Music e diversas outras.
Em grande parte, o boom é motivado pelo Spotify. O serviço, que é a Netflix da música, teve o seu melhor trimestre da história no final de 2022, de acordo com o balanço da própria companhia. O Spotify chegou à impressionante marca de 205 milhões de assinantes premium, que é como ela chama aqueles que desembolsam que pagam mensalidade. Um aumento de 14% de um ano para o outro.
No total, considerando quem paga e quem usa de graça (e ouve anúncios), o Spotify tem nada menos que 489 milhões de usuários ativos.
Curiosamente tudo isso acontece quando outro streaming, o de vídeo, vem passando por um momento complicado - incluindo diminuição em investimentos, cortes e diminuição no valor de mercado dos principais players.
Causas e consequências
Tanto sucesso assim têm diversas explicações. Cabe olhar para algumas delas.
Para começar, o mercado de streaming de música funciona de uma forma um pouco diferente do de vídeo. Quase não existem exclusividades, muito menos “canções originais” de plataforma A ou B. As gravadoras e músicos são agnósticos, com a maioria disponibilizando o seu catálogo nos serviços mais importantes.
Com isso, Spotify, Deezer, Amazon Music e afins se parecem mais com aquela tão sonhada grande biblioteca na qual o conteúdo que a maioria das pessoas quer está a um clique de distância. Não se faz necessário assinar mais de uma plataforma, facilitando a vida (e aliviando o bolso) do ouvinte.
Nenhuma gravadora se arriscou a criar o seu próprio serviço. Todas elas deixaram essa tarefa para empresas de tecnologia, se reservando o lugar de “fornecedoras de armas”.
Isso criou um canal de distribuição que efetivamente substitui o varejo de CDs, mas que também pode soar muito bem como rádios customizadas ao ouvido do usuário - e que remuneram melhor as gravadoras do que as antigas estações.
Sem exclusividade de conteúdo, os serviços podem focar naquilo que eles são bons: tecnologia. Entre eles, o diferencial acaba sendo o algoritmo (ou seja, o quanto aprendem sobre o seu gosto para oferecer novas canções), estabilidade, qualidade do áudio versus a compactação dos arquivos, experiência do usuário, etc. E, claro, o custo.
Já as gravadoras, ao ficarem na sua parte do negócio, podem continuar se dedicando a encontrar as próximas vozes de sucesso. Isso, aliado ao streaming, criou um cenário extremamente pulverizado. Hoje é difícil alcançar um nível global de popularidade de outrora, como Elvis, Michael Jackson e Beatles conquistaram, mas há gente fazendo muito sucesso em bolhas específicas.
Nesse sentido, as redes sociais e de vídeo possuem um peso enorme. Viralizar uma canção no TikTok pode ser o ponto de virada para crescer nas plataformas de música. Se antes emplacar um som na novela das 20h era a porta do sucesso, hoje o caminho é uma dancinha na rede social.
É por isso que as gravadoras assumiram ainda mais o papel de guia para os profissionais que trabalham com. Parcerias também são importantes, seja com compositores, outros músicos ou marcas.
Nem tudo são flores
Obviamente que não podemos dizer que tudo é perfeito. Apesar do streaming ter salvado a indústria fonográfica, nem todo mundo ama essas empresas.
As grandes gravadoras, como os dados da IFPI revelam, estão sorrindo de orelha a orelha. Porém, para os artistas menores, a receita que eles recebem é baixa - sendo explorados tal qual, guardadas as devidas proporções e riscos, motoristas de Uber e entregadores do iFood. E até mesmo os músicos famosos precisam sambar para tirar o seu, com perdão do trocadilho.
Isso tem reflexos no produto final. Se antes os álbuns eram compostos como obras para serem ouvidos na íntegra, agora o objetivo é criar hits que fixem na nossa mente como chiclete. Eles precisam ser curtos, também: quanto mais longa a canção, menos plays ela tem. E o artista é remunerado pelo número de reproduções, e não por minutos.
Na prática, criou-se um cenário no qual muitas composições pop atuais não possuem o trecho chamado ponte, ou bridge, em inglês. Trata-se de uma seção que é um pouco diferente do resto da música, uma espécie de respiro que vem antes do refrão. Na hora de cortar para diminuir a minutagem, a ponte virou firula.
Outra transformação é a preocupação em ter um refrão entre 15 a 20 segundos, duração perfeita para stories do Instagram ou vídeos curtos do TikTok.
Isso explica também o porquê de vivermos uma espécie de era de ouro dos shows, principalmente dos internacionais. Apresentações ao vivo possuem uma margem de ganho muito maior para os músicos, que inclusive definem as faixas de valor dos ingressos. É quando eles tiram a diferença, efetivamente lucrando com a demanda gerada no streaming e em redes sociais.
Para piorar, até mesmo o Spotify não ficou imune à recente onda de cortes no setor de tecnologia, mandando embora 6% de seus empregados - cerca de 600 pessoas.
Junto, veio uma retração nos investimentos em podcasts. A iniciativa surgiu para criar um diferencial para os serviços concorrentes, com programas de áudio exclusivos. De certa forma, a aposta fazia sentido: o formato liderou os ganhos em receita nas assinaturas grátis, com um incremento em “meados dos 30%” no último trimestre, informa o balanço da empresa.
Acontece que investir em podcast próprio é algo caro, o que afetou as margens de lucro do Spotify. Por isso os cortes. Afinal, para que ter conteúdo próprio se é possível monetizar tão bem o de terceiros?
Algumas lições para Netflix e concorrentes
O streaming de vídeo movimentou US$ 444,3 bilhões em 2022, de acordo com a Precedence Research. É cerca de 25 vezes maior que a contraparte musical. Correlações entre as duas áreas precisam ser sempre feitas com cuidado.
No entanto, ainda que não assumam isso publicamente, é possível ver que o mercado audiovisual está aprendendo algumas lições com os colegas da indústria fonográfica. Ou, ao menos, chegando às mesmas conclusões.
Grupos como Warner Bros. Discovery e Disney já disseram que vão investir menos em conteúdo exclusivo para as suas próprias plataformas, passando a focar parte do esforço na produção e venda de filmes e séries para outros streamings. Há uma semelhança aí com o posicionamento das gravadoras na internet.
A Netflix é outra que está mais cuidadosa no gasto com conteúdo, mesmo que o licenciamento para concorrentes seja um assunto tabu por lá.
Mais um papo que ganha força é o de AVOD e o FAST. Para além da sopa de letrinhas, esses são modelos de plataformas de vídeo gratuitas, bancadas por publicidade. A Paramount Global já tem uma interessante estratégia nesse caminho, com a Pluto TV, e a Warner já confirmou que irá lançar algo nessa linha em breve. Há rumores de que a Netflix se juntará à elas.
Quando olhamos para o Spotify, a estratégia vem dando certo. A remuneração por usuário no modelo grátis é bem menor do que no pago, mas ele funciona como um chamariz de novos usuários. Fora que há ainda um potencial para lucrar ainda mais com esse pessoal, já que o streaming ainda está longe de vender todo o seu inventário para anúncios - boa parte continua ocupada por propagandas do próprio serviço, ao menos aqui no Brasil.
Tudo isso deve criar um cenário onde há menos diferenciação entre as plataformas de vídeo e, por essa razão, algumas delas devem se fundir ou deixar de existir. No fim, pode ser mais interessante para os nossos bolsos e também para enfrentar a pirataria. Ao mesmo tempo, ter menos competição representa riscos para os nossos interesses coletivos - incluindo a criação de monopólios.
Sim, o futuro não apresenta respostas fáceis, ainda que algumas cartas já estejam na mesa.