"Segundo Sol" decepciona e evidencia crise criativa de João Emanuel Carneiro
Autor tentou se reinventar, porém se perdeu nas deficiências do enredo
Publicado em 09/11/2018 às 23:12
Após o fracasso de “A Regra do Jogo” (2015-16), uma proposta ousada que naufragou pela condução confusa de seu enredo e pela influência de “Os Dez Mandamentos” na RecordTV, João Emanuel Carneiro apostou em um estilo mais tradicional em “Segundo Sol”, que terminou nesta sexta-feira (9). A missão do autor era manter a grande fase de audiência da faixa das nove, em função dos fenômenos “A Força do Querer”, de Glória Perez; e “O Outro Lado do Paraíso”, de Walcyr Carrasco. No entanto, a atual história decepcionou especialmente pelas incoerências de enredo e repetições de vícios recorrentes na obra de JEC.
Sua chegada ao horário ocorreu em meio a mudanças na fila: a trama de Walcyr sucedeu a de Glória após “O Homem Errado”, de Duca Rachid e Thelma Guedes, ser cancelada; e deveria dar lugar a “O Sétimo Guardião”, de Aguinaldo Silva – e apenas após esta “Segundo Sol” entraria. No entanto, a trama de realismo fantástico enfrentou acusações de plágio envolvendo a autoria e a criação do enredo e personagens e, com isto, trocou de lugar com a atual novela.
As primeiras chamadas vendiam como mote central a história de Beto Falcão (Emílio Dantas), um decadente cantor de axé music que foi dado como morto após perder um voo para Aracaju, onde faria um show. A notícia de seu “falecimento” fez sua popularidade disparar como nunca antes e desperta a ambição desenfreada da então namorada Karola (Deborah Secco) e de seu irmão Remy (Vladimir Brichta), amante da cunhada. Convencido por ambos, ele manteve a mentira e se refugiou em Boiporã, ilha paradisíaca próxima a Salvador, onde mudou de nome e se apaixonou pela bela marisqueira Luzia (Giovanna Antonelli).
O romance chegou aos ouvidos de Karola, que armou para separar o casal, orientada por Laureta (Adriana Esteves), cafetina disfarçada de promoter de eventos. Para tanto, a ex-prostituta fingiu estar grávida do cantor e sua mentora trouxe de volta o violento ex-marido da humilde protagonista, que se envolveu em uma confusão com Beto e acabou empurrado de um penhasco por Luzia, que descobriu estar esperando um filho do ídolo do axé. Em virtude disso, as armações se intensificaram: Luzia foi condenada pela morte do ex e, após o parto, teve seu filho roubado por Karola, que a fez pensar que a criança morreu. Atormentada, ela abandonou os filhos pequenos e fugiu para a Islândia com o amigo Groa (André Dias), onde se tornou uma DJ famosa, Ariella.
Ícaro (Thales Miranda/Chay Suede) e Manu (Rafaela Brasil/Luísa Arraes), filhos de Luzia, foram separados ainda pequenos: ele foi morar com a tia Cacau (Fabiula Nascimento) e se tornou garoto de programa, enquanto ela foi adotada por Edgar (Caco Ciocler), patrão da irmã da protagonista, que trabalhava como empregada na mansão dos Athayde, envolta em um grande segredo familiar: seu patriarca, o corrupto Severo (Odilon Wagner), se envolveu com a governanta Zefa (Cláudia di Moura) e deste relacionamento nasceram Edgar e Roberval (Fabrício Boliveira), motorista da família, que também se envolve com Cacau e rompe com todos ao descobrir a verdade sobre sua origem, viaja e volta milionário para se vingar.
Com esta premissa, João Emanuel Carneiro inverteu uma lógica comum em suas duas últimas obras: apostou em um estilo mais folhetinesco e tradicional em seu enredo central e buscou ousar mais nas histórias paralelas. Tanto que as mesmas passaram a chamar mais atenção do que a principal, em especial os dramas familiares do clã Athayde, que logo se tornaram o melhor núcleo da história. Outro grande passo que simbolizou esta mudança de estilo foi a troca de direção: saiu Amora Mautner e entraram Dennis Carvalho e Maria de Médicis.
A primeira fase não poupou adrenalina. Em menos de uma semana, JEC não economizou história e apresentou, logo de cara, a história de amor de Beto e Luzia, seus desencontros, as armações de Karola e Laureta e as confusões na casa de Severo. Tamanha agilidade, ao mesmo tempo que empolgava, também deixava dúvidas se a história conseguiria aguentar mais cinco meses de trajetória. Até que veio a Copa do Mundo e a trama desacelerou. Junto com esta queda no ritmo, a trajetória dos protagonistas perdeu força.
Ou, mais precisamente: Beto Falcão simplesmente não aconteceu como personagem. A farsa da morte do cantor e seus desdobramentos não foram explorados a contento e não fizeram jus ao posto de um protagonista. O cantor virou mero joguete nas mãos da família, da namorada e do cunhado, sendo facilmente manipulável e irritando pela burrice. Uma pena, pois Emílio Dantas, em seu primeiro protagonista, vinha em uma crescente de sucesso após o estouro do Rubinho, de “A Força do Querer”.
A situação de Luzia é tão grave quanto. Passiva, medrosa e tão burra quanto seu amado, a marisqueira passou grande parte do tempo fugindo das vilãs e acreditando em todas as armações delas, mostrando-se assim uma das piores e mais apagadas protagonistas da teledramaturgia. Por mais que Giovanna Antonelli se esforçasse, era praticamente impossível dignificar um papel tão ruim. Justamente por isso, é incompreensível sua indicação como Melhor Atriz para o “Melhores do Ano”, do “Domingão do Faustão”.
Um dos núcleos paralelos que chamou a atenção do público foi o de Rosa (Letícia Colin), uma jovem prostituta de personalidade forte. Filha da cozinheira Nice (Kelzy Ecard) com o machista Agenor (Roberto Bonfim) e irmã de Maura (Nanda Costa), a garota de programa viveu uma relação quente com Ícaro, temperada pela intensa química da atriz com Chay Suede. Ao mesmo tempo, também se envolveu com Valentim (Danilo Mesquita), o filho perdido de Luzia, e, através dele, descobriu a verdade sobre a armação envolvendo o roubo do garoto.
Motivada pela ambição, passou a chantagear as vilãs, até que engravidou de Ícaro e, de algoz, se tornou vítima de Laureta. Uma ilógica e incompreensível virada, apesar do brilhante desempenho de Letícia. Para piorar, do nada, Rosa rompeu com Ícaro e ficou com Valentim no penúltimo capítulo, ignorando todas as constantes traições dela contra o filho de Luzia e de forma jogada, sem qualquer construção.
Outra trama que também despertou interesse, mas se perdeu ao longo do tempo foi a abordagem do machismo de Agenor contra as mulheres de sua família. Grosseiro, asqueroso e agressivo, o patriarca não poupava palavras para humilhá-las. Sobrava até mesmo para Cacau, que chegou a empregá-lo no restaurante que montou após deixar a mansão Athayde. Em meio às dificuldades, Nice conseguiu se libertar do domínio doentio do marido e conquistar o seu espaço. No entanto, Agenor em nenhum momento foi punido por seus atos – nem mesmo quando incendiou o restaurante.
Ainda merece ser citada a polêmica que norteou as primeiras chamadas da trama, que foi a presença reduzida de atores negros em papeis de destaque. A escalação de grande parte dos nomes foi criticada em função da falta de representatividade da população de Salvador, uma das cidades com a maior presença de habitantes negros fora do país – algo que pegou mal para a história.
No entanto, em meio aos desacertos, a novela trouxe pontos positivos, especialmente relacionados ao elenco. O maior deles foi apostar em atores já veteranos do teatro ou das artes locais, mas estreantes em televisão, como foram os casos das já citadas Cláudia di Moura e Kelzy Ecard. As talentosas intérpretes emocionaram em sua estreia na TV e representam a quebra de um paradigma muito comum: a de que apenas atores jovens poderiam estrear e ser revelações na teledramaturgia. O caso também se aplica a Narcival Rubens, intérprete de Galdino, capacho de Laureta.
Outros nomes que também merecem elogios são Giovanna Lancellotti (perfeita como a vilã juvenil Rochelle), Danilo Mesquita (que conseguiu se sair bem mesmo na pele do chatíssimo Valentim), Roberto Bonfim (excelente como o asqueroso Agenor, um tipo bem-vindo na carreira do grande ator), Odilon Wagner (valorizado vivendo o vilão Severo), Fabiula Nascimento (sempre ótima) e Fabrício Boliveira (em seu melhor momento ao encarnar o arrogante Roberval). Em compensação, Robertha Portella e Gabriela Moreyra, recém-saídas da Recordava, fizeram figuração de luxo no núcleo do bordel de Laureta, bem como Roberta Rodrigues, que teve seu talento desperdiçado na pele da ciumenta Doralice.
Três nomes merecem ser destacados como os maiores acertos do eixo principal: Vladimir Brichta, Adriana Esteves e Deborah Secco. Vivendo os vilões Remy, Laureta e Karola, o trio dominou a novela em sua segunda metade, especialmente durante a farsa da morte do interesseiro irmão de Beto. Adriana mostrou que Laureta não guardava qualquer vestígio de Carminha, se mostrando mais dissimulada e fria em relação à passional vilã de “Avenida Brasil”. Deborah, depois de anos, finalmente ganhou um papel à altura de seu talento e pôde mostrar inúmeras facetas de uma só vez: comédia, sensualidade, drama, terror – todas muito bem exploradas. E Brichta, em grande fase desde a série Justiça, mostrou que não poderia ficar muito tempo longe das novelas ao viver o malandro mau-caráter, presenteando o público com grandes cenas ao lado de Adriana, sua esposa na vida real.
E foram justamente os três, em especial Laureta, os responsáveis pelos melhores momentos do último capítulo. Em meio a mais um uso do clichê do sequestro – em que Karola raptou o filho de Rosa – a megera tentou matar Luzia, mas a ex-prostituta se jogou na frente de Valentim, que estava na linha de tiro, e morreu no lugar do próprio filho. Em função do crime, Laureta foi presa, com direito a inúmeras regalias, e, mais tarde saiu da cadeia anunciando sua entrada na política, ironizando o cenário desenhado pelas últimas eleições.
Ao mesmo tempo, Remy assumiu o bordel da irmã e se tornou o novo cafetão do lugar. O deboche da vilã garantiu os melhores momentos do capítulo final, preenchido com os mais batidos clichês e cenas estapafúrdias, como a reconciliação de Cacau com Roberval, que a humilhou, e o final de Rosa com Valentim, feito sem qualquer construção e ignorando tudo que ele sofreu com ela.
Considerando o que apresentou ao longo de seus 155 capítulos, “Segundo Sol” sai de cena como uma grande decepção. A trama de João Emanuel Carneiro não fez feio em termos de audiência – uma média geral de 33 pontos, satisfatória para o horário, apesar de derrubar 5 pontos da antecessora –, porém, revelou-se uma trama preguiçosa, onde a burrice e a passividade dos personagens dominaram quase todos os núcleos.
JEC, reconhecidamente um dos melhores autores de sua geração, parece carregar ainda o peso do sucesso de “Avenida Brasil” e, com isso, a “necessidade” de fazer uma trama à altura daquela. Seria mais benéfico para o autor que se aventurasse em um novo horário (como as 23h ou mesmo uma volta às 19h, onde fez seu nome) ou outro formato, como as séries para o Globoplay, onde ele poderia se mostrar em melhor forma – como na elogiada série “A Cura”. Que tenha melhor sorte na próxima.