Ney Latorraca: "Brinco que sou vaidoso, mas só até a segunda página"
Veja trechos de entrevistas do ator ao NaTelinha, em que ele relembrou sucessos, nomeou fracassos e revelou uma "rivalidade" nos bastidores da Globo
Publicado em 26/12/2024 às 12:05,
atualizado em 26/12/2024 às 13:39
Ney Latorraca morreu nesta quinta-feira (26), aos 80 anos, vítima de uma sepse pulmonar após o agravamento do câncer de próstata, diagnosticado em 2019. O veterano ator deu duas entrevistas exclusivas ao NaTelinha, em 2021 e em 2023, relembrando momentos marcantes de sua trajetória e com reflexões sobre os últimos anos de carreira.
Confira, a seguir, os melhores trechos dos depoimentos de Ney Latorraca:
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Sobre o sucesso de Vamp: “Fazia o que eu queria em cena”
“Virei dono do meu personagem, fazia o que eu queria em cena”, contou Ney ao falar sobre Vamp (1991) na época em que a novela completava 30 anos de exibição. Anárquica, a trama fez história na TV ao unir comédia e terror às 19h e permitia ao veterano deitar e rolar na pele do vampiro Vlad, disposto a possuir a cantora de rock Natasha (Cláudia Ohana).
Tanta liberdade em cena resultou em um puxão de orelha nos bastidores. “Chegou um momento em que queriam que eu diminuísse na interpretação. Falei que, se fosse assim, preferia sair da novela, isso lá pelo quarto mês de exibição. Fiquei uns dias sem gravar, mas me chamaram correndo de volta.”
Nos primeiros capítulos, Vlad era mais sombrio; com o decorrer da história, o vilão que pretendia aterrorizar a fictícia cidadezinha de Armação dos Anjos já não botava mais medo em ninguém. Na vida real, as crianças aficionadas pela novela pediam para ser mordidas quando esbarravam com o ator na vida real.
"Outro dia, assisti a uma cena em que estava de capa, todo de preto e sambando! Vejo coisas absurdas e pergunto: 'Como eu tinha coragem de fazer isso?'. Eu não dizia 'gostoso', era 'gotôso...' [quando sugava o sangue das vítimas]. Eu brincava, era uma coisa bem para criança mesmo. São signos que eu ia lançando e iam pegando com esse público."
Ney Latorraca em 2021
Ele completou: "Não foi só um sucesso pessoal meu, mas de toda a novela. Eu estava muito bem cercado. Havia o elenco jovem, o Otávio [Augusto], que fazia um vampiro com só um canino, a Patrycia Travassos maravilhosa e completamente louca... É bom quando você participa de um fenômeno desses, faz bem".
“Brinco que sou vaidoso, mas só até a segunda página”
Viver um vampiro tão poderoso, que dominava toda a novela, não subiu à cabeça de Ney, apesar de o ator ter assumido sua vaidade. "Levava aquilo sempre na brincadeira. Minha vaidade não chega a esse ponto. Brinco que sou vaidoso, mas só até a segunda página. Na terceira, eu já caí na real."
"Era gostoso brincar com essa história de vampiros, ainda mais com um toque de brasilidade e de humor, para não assustar as crianças, que acabaram virando o nosso grande público", avaliou Ney. "Conquistando o público infantil, se conquista a família inteira, porque as crianças obrigam os pais a ligar a televisão. Só não é fácil acertar."
Ele mostrava que não tinha medo de dar nome aos fracassos, como Sem Lenço, Sem Documento (1977) e Bang Bang (2005), e aos sucessos mais recentes de seu currículo, caso de O Cravo e a Rosa (2000) e Da Cor do Pecado (2004). "Todo mundo sabe quando deu certo", garantia.
“Rivalidade” com cachorro: “Ganhava mais que eu”
Outro papel marcante foi o do italiano Ernesto Gattai na minissérie Anarquistas, Graças a Deus (1984). Além da construção do personagem, foi preciso se encaixar no biotipo de um homem real, pai da escritora Zélia Gattai (1916-2008). Dos bastidores, Ney guardou uma rivalidade: com Flocos, cachorrinho de sua filha na história.
“Logo nos primeiros capítulos, ele é levado pela carrocinha para virar sabão. A primeira crítica que li da minissérie dizia ‘Flocos emociona o Brasil’. Eu fiquei com uma raiva do cachorro na época! Depois descobri que o Flocos ainda ganhava mais que eu, sabia?”
Ney Latorraca em 2023
Ele ainda disse: “O Flocos era uma estrela ali dentro! O diretor dizia ‘ok, valeu’, e ele ia para o canto dele. Metido, sabe? Eu queria fazer amizade, e ele rosnava para mim... Só depois é que viramos amigos. Quando você trabalha com criança e com bicho, é melhor ficar quieto. Eles são bárbaros! São ladrões de cena mesmo!”.
“Tentavam me colocar como galã”
Ainda sobre o trabalho na minissérie, Ney comentou: “Logo que fui convidado, falei: ‘O Ernesto era um homem loiro, de olhos claros e forte’. Não tinha nada a ver comigo, mas fui atrás do physique du rôle. Depois da estreia, recebi um telegrama da Zélia dizendo que o pai ficaria muito orgulhoso de ser ver na tela. Foi quando eu disse: ‘Opa, então acertei’.”
O trabalho marcou uma nova etapa na carreira do ator. “Antes, tentavam me colocar como galã, como em Escalada (1975) e Estúpido Cupido (1976, foto acima). Quando faço esse outro tipo de trabalho, me dá uma tranquilidade como ator, fora o prestígio que eu recebi, que eu não esperava que seria tão forte.”
Depois de Anarquistas, Ney fez uma sequência de minisséries de sucesso: Rabo de Saia (1984), Grande Sertão: Veredas (1985) e Memórias de um Gigolô (1986), todas baseadas em livros e dirigidas por Walter Avancini (1935-2001), famoso pelo estilo exigente.
“Quando eu ainda morava em Santos e pensava em ser ator, já tinha algumas pessoas com quem eu queria trabalhar. Uma delas era o Walter Avancini. Então, quando tive meu encontro com ele, fiz de tudo para dar certo. Ele era uma pessoa muito séria, um grande diretor. Era trabalhar com o que havia de melhor, e eu gosto de ter um nível de exigência, de chegar na hora, estudar, ter que ficar por dentro e gravar bastante.”
Ney Latorraca em 2023
Vínculo com a Globo: “Pagavam o curso de inglês”
Em 2023, Ney falou sobre o fato de ter se tornado uma exceção dentre os veteranos da Globo: seguiu contratado da emissora, que nos últimos anos tem adotado um vínculo diferente com atores, por obras certas, sem longos prazos.
“A Globo é uma empresa. Antigamente, eu tinha um contrato que dava plano de saúde para minha mãe, minha avó… Eu queria fazer curso de inglês? Pagavam o curso de inglês! Agora, estão com um outro modelo, e vão chamando os atores quando precisam deles.”
Ney Latorraca em 2023
O ator disse que tipo de convite motivaria seu retorno ao vídeo. “Hoje, fico com as participações, para não ficar muito preso, muito tempo envolvido. É puxado fazer uma novela. Eles sabem disso e conhecem meu perfil. Fora que tenho um lado meu que é pé quente: quando entro, ‘pá’, dá certo”, garantiu.
Última fase da carreira: “Sou um senhor, exijo respeito!”
Ney também explicou o último momento de sua carreira, em que passou a analisar criteriosamente cada convite. “Preciso pensar com calma, porque não sou mais aquele rapaz que gravava novela o dia inteiro, fazia teatro à noite e depois ainda ia para a Boca do Lixo fazer cinema. Não aguento mais isso”, disse ele, que acrescentou, com seu tom sarcástico habitual: “Sou um senhor, exijo respeito!”
Os hábitos do dia a dia incluíam a caminhada na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio, onde vivia com o marido Edi Botelho, além de ler livros e ver séries. “Tenho que ter esse tempo para mim, como pessoa e como ator, para poder voltar sempre renovado”, disse. Ele também refletiu que dava preferência aos desafios:
“Cheguei na Globo com 30 anos. Tenho quase 50 anos de casa, e sempre quis fazer lá dentro as coisas que podem ser, para mim, um exercício de ator. Não fiquei naquela batida de ficar sentado em um escritório dizendo ‘Dona Jussara, pode liberar meu carro. Me veja um café’. Não consigo fazer isso.”
Ney Latorraca em 2023
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