Gilberto Braga enxergava qualidades nos vilões e defeitos nos mocinhos
Autor falou sobre a busca pela fama e apostou no quem matou para prender o telespectador
Publicado em 01/11/2021 às 04:30
"Que boa ideia esse casamento primaveril em pleno outono". Uma frase elegante como essa só podia ter saído da mente brilhante de Gilberto Braga (1945-2021). Dita por Bebel, personagem de Camila Pitanga em Paraíso Tropical (2007), a moça é convidada para uma cerimônia de luxo e orientada a repetir a mesma fala sempre que alguém se aproxima para que não desconfiem de que por baixo daquela fina estampa se esconde uma garota de programa.
Na própria cena, Belisário (Hugo Carnava) é quem sugere a ela decorar un texto, assim como Audrey Hepburn (1929-1993), florista que se transforma em uma dama da sociedade graças a ajuda de um professor, fez em "My Fair Lady" (1964).
Em depoimento ao Memória Globo, o próprio Gilberto confessou que sua paixão pelo cinema foi o que o levou a parar na TV. Seu desejo era se tornar diretor, mas não dá para negar que como autor conseguiu projetar sequências que se tornariam inesquecíveis aos olhos do telespectador.
Na mesma obra, hoje reprisada pelo canal Viva, a polêmica personagem protagonizou outra cena memorável do cinema, Desta vez, o filme era "Uma Linda Mulher" (1990), e a sequência mostrava Julia Roberts sendo barrada em uma loja de luxo por causa da sua aparência.
Assim como Bebel, Vivian também era uma garota de programa que, de repente, se torna acompanhante de luxo e passa a ser bancada por um homem de negócios. Fazendo a vez de Richard Gere, Olavo (Wagner Moura) surge com a amante na loja e, como já previsto, a vendedora se rende aos encantos da moça e às cédulas do bonitão.
Um cronista do cotidiano carioca
Nascido no Rio de Janeiro, e criado na zona Norte da cidade, Gilberto Braga conhecia como ninguém a alma do carioca. Cronista do cotidiano, era capaz de retratar da Lagoa a Lapa, passando pelos morros da Babilônia e do Vidigal, ou pelo tradicional bairro da Tijuca com a mesma propriedade.
Aliás, por inúmeras vezes as praias da capital serviram de cenário para a rica diversidade do povo brasileiro. Foi no posto 9, em Ipanema, que Stella (Tônia Carrero) e Beth (Maria Padilha) acabaram detidas por fazerem topless em Água Viva (1980). A equipe quase foi agredida, e a cena acabou sendo gravada em São Conrado.
Já Copacabana foi o local escolhido por Raquel Accioli (Regina Duarte) para começar seu negócio de venda de sanduíches, em Vale Tudo. Lançada em 1988, a novela questionava até que ponto valia a pena ser honesto em um país corrupto como o nosso.
Enquanto a protagonista era a personificação da mais pura e honesta de todas as mulheres, sua filha, Maria de Fátima (Glória Pires), era capaz de vender a própria alma para subir na vida.
O folhetim era rico em personagens reais e contraditórios, com defeitos e qualidades, capazes de errar e acertar, questionáveis e questionadores como todo ser humano. Talvez, por isso, a obra seja uma das mais incríveis e atemporal.
Quem matou?
Vale Tudo trouxe para a televisão muito mais do que os podres poderes do sistema. Trouxe aquele pai de família que perde o emprego por contenção de despesas e se vê desesperado para continuar a alimentar o filho, ou aquele assessor politico que sabe que se não seguir a cartilha direitinho não se estabiliza.
Trouxe nome e sobrenome, porque as personagens de Gilberto Braga tinham identidade com I maiúsculo. Era Raquel Accioli, César Ribeiro, Ivan Meireles, Solange Duprat, Heleninha Roitman...
Não satisfeito, ele trouxe a pior de todas as vilãs, Odete Roitman (Beatriz Segall). Uma empresária milionária que não fazia esforço algum para esconder seus preconceitos contra as minorias.
Que morava na Europa, odiava o Brasil e tudo o que lhe fazia lembrar dessa terra de tupiniquins, de selvagens, país de terceiro mundo, onde as pessoas não gostam de trabalhar, segundo suas próprias palavras.
Uma mulher sem limites de crueldade, manipuladora, do tipo capaz de tocar na ferida das pessoas sempre que necessário, mesmo que fossem integrantes da mesma família, porque isso lhe dava sensação de poder.
Uma vilã como essa não merecia outro destino que não fosse a morte. Gilberto Braga mobilizou o país com a pergunta Quem matou Odete Roitman?, que parou, literalmente, diante da TV a espera da resposta.
Brilhante como sempre, o autor não resumiu as últimas emoções ao motivo torpe da morte de Odete. Ele concluiu a trama com chave de ouro ao abordar a fuga do empresário corrupto Marco Aurélio (Reginaldo Faria), que sai do país acompanhado da mulher, e assassina da vilã, e de uma bolada em dinheiro, mas não sem antes dar uma "banana" para o brasileiro.
"Money no bolso é tudo o que eu quero"
O ano era 2003, ainda não tínhamos as redes sociais para servirem de vitrine, o Orkut surgiria somente uma ano depois, e Gilberto Braga, pioneiro como sempre, discutiu a questão da fama, e tudo o que está por trás dela, em Celebridade.
A trama girava em torno da mocinha Maria Clara Diniz (Malu Mader), uma famosa produtora musical, e a vilã Laura Prudente da Costa (Cláudia Abreu), cujo o único desejo era usurpar a vida da protagonista.
Assim como Eve (Anne Baxter) de "A Malvada" (1950), a personagem humilde ganhava a confiança da empresária e conseguia um trabalho na produtora Mello Diniz enquanto planejava tirar tudo da empresária.
Como um dos cenários principias, o Espaço Fama, localizado na Barra da Tijuca, bairro de emergentes cariocas, servia de palco para shows com artistas nacionais e internacionais, festas glamourosas com direito a tapete de vermelho e o disparar de muitos flashes.
O contraste viria com o Sobradinho, uma casa de samba localizada no bairro do Andaraí, zona Norte da cidade, que se tornaria um point de sucesso depois que Maria Clara perde tudo e precisa se reerguer.
Um dos destaques da trama era a relação de Laura com Marcos (Marcio Garcia), ou da "cachorra e do michê", amantes e cúmplices, que nos fez recordar de outro casal de pilantras, Maria de Fátima e César (Carlos Alberto Riccelli), de Vale Tudo.
A novela trouxe personagens cômicos como as manicures Darlene (Deborah Secco) e Jaque Joy (Juliana Paes), capazes de tudo para saírem na capa da revista Fama ou em uma fotinho dentro dela.
A publicação, editada pelo interesseiro Renato Mendes (Fábio Assunção), pertencia ao Grupo Vasconcellos, complexo multimídia dirigido por Lineu Vasconcellos. Em um determinado momento, o magnata era assassinado e o mistério envolvendo o nome do assassino comandava a história.
Com participações especiais de Roberto e Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Rita Lee, Zeca Pagodinho, Alcione, Julio Iglesias, Alanis Morrissett e Simply Red, entre tantos outros artistas, Celebridade teve vários momentos históricos. Um deles, foi quando Maria Clara deu uma surra em Laura dentro do banheiro do Espaço Fama.
O criador e as criaturas
Nesta segunda-feira (1), Gilberto Braga completaria 76 amos. Sofrendo do Mal de Alzheimer, o autor morreu na última terça-feira (26), vítima de uma infecção sistêmica em decorrência da perfuração do esôfago.
Longe da TV, seu último trabalho foi Babilônia, lançada em 2015. Com temas fortes como racismo e homossexualidade, a novela não teve boa aceitação do público conservador, sofrendo boicote por parte da bancada evangélica.
Um dos destaque no folhetim, talvez motivo de repulsa por esse público preconceituoso, era o casal homoafetivos, e da terceira idade, formado por Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg).
É inegável que uma das características do autor era justamente essa, a de trazer para a telinha personalidades do nosso cotidiano, basta olhar ao redor. Cuidado! Uma mulher invejosa como a Laura você encontra dobrando a esquina. Já um puxa-saco feito o Olavo Novaes facilmente em seu ambiente de trabalho.
Sempre um passo à frente, estava nos planos do autor, logo após o fracasso de Babilônia, lançar um remake de Brilhante, que foi originalmente ao ar em 1981, e muito castigada pela censura na época da ditadura.
Intitulada Intolerância, a novela estava prevista para o horário das 23 horas, mas acabou sendo adiada e, posteriormente, cancelada. Assim como Feira das Vaidades, folhetim de época, escrita para horário das 18 horas, rejeitada pela Globo.