Publicado em 24/07/2023 às 08:00:00
O impasse está instaurado em Hollywood. Depois dos roteiristas, em greve desde maio, agora é a vez dos atores pararem de trabalhar para exigir melhores salários, mudanças nas condições de trabalho e a regulamentação do uso da inteligência artificial.
Porém, a Netflix já tem em andamento um “plano B” para superar essas dificuldades por um bom tempo – e Bird Box Barcelona, filme que acaba de estrear na plataforma, é um grande exemplo disso.
O primeiro Bird Box você já deve conhecer. Lançado em 2018, a produção foi um dos primeiros grandes sucessos arrasa-quarteirão do streaming. Com um elenco formado por estrelas como Sandra Bullock, John Malkovich, Sarah Paulson e Trevante Rhodes, a história de terror ditou por semanas as conversas nas redes sociais. Só se falava disso.
Quase cinco anos depois, retornamos a esse mundo pós-apocalíptico no qual uma misteriosa criatura feita de luz faz com que todos os seres vivos tirem a própria vida ao vê-la. Porém, sai de cena um enredo ambientado nos Estados Unidos e entra a cidade de Barcelona, na Espanha.
Essa é uma sacada quase genial, comercialmente falando. Obviamente que o elenco de rostos famosos e a direção de Susanne Bier (de Depois do Casamento) são trunfos do original. No entanto, para além disso, há características próprias desse universo que têm potencial para funcionar em qualquer lugar do planeta.
Isso dá a oportunidade perfeita para a Netflix encaixar três das suas “necessidades corporativas”, por assim dizer, sendo duas delas relacionadas à expansão internacional.
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A primeira é produzir onde se está presente. Até pouco tempo atrás, os estúdios de Hollywood eram basicamente exportadores de conteúdo. Filmavam dentro ou fora dos EUA, sempre em inglês e a partir da cultura de lá. O que a gigante do streaming passou a fazer é dar espaço para outras línguas e outras realidades, para que o resto do mundo pudesse se ver na tela – em uma interessante estratégia para ganhar alcance.
A segunda é o “glocal”, mistura das palavras “global” e “local”. Por mais que seja ambientada em um país, a ideia da empresa é que a história seja universal o suficiente para conquistar espectadores de todos os lugares. Foi o que funcionou com Round 6, Elite e La Casa de Papel, por exemplo.
O terceiro é sobre o tal do “x-burguer gourmet” citado por Bela Bajaria, Chief Content Officer da Netflix, em uma entrevista para The New Yorker. Esse é o tipo de produto que a empresa quer ter em suas prateleiras: popular, mas com um gostinho premium.
E o que pode ser mais x-burguer gourmet do que um sucesso blockbuster americano reimpacotado para se passar na Espanha, terra de Pedro Almodóvar e famosa por seu cinema independente?
Há, ainda, mais camadas no lançamento de Bird Box Barcelona.
Os estúdios reclamam dos grandes custos para se produzir nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os sindicatos que representam roteiristas e atores afirmam que esses profissionais - em média - recebem hoje menos do que no passado.
Há diversos motivos para isso, mas basicamente é um conjunto de fatores formado por temporadas menores, contratos de trabalho mais curtos, equipes reduzidas, menos oportunidades de crescimento e, por fim, a quase extinção das gratificações financeiras pelo desempenho dos filmes e séries, como os tão falados residuais.
Os grupos de mídia mais tradicionais sofrem mais com essa paralisação. Afinal, como mencionado, boa parte da produção de conteúdo deles é baseada nos EUA. Pior: os canais lineares, principalmente as grandes redes abertas, possuem um calendário mais ou menos fixo para as estreias das temporadas, a partir do final de setembro.
A Netflix nunca teve um cronograma do tipo, e há anos expandiu os seus braços para todo o globo. Agora, pode simplesmente levar suas marcas de sucesso para outros lugares.
Esse é o exato exemplo de Bird Box Barcelona. Ainda que a produção tenha começado em 2021 e as filmagens tenham sido feitas em 2022, muito antes da greve, o longa-metragem se torna o exemplo perfeito para a empresa tocar agora.
O sucesso - no momento do fechamento, o filme é top 1 em audiência aqui no Brasil e primeiro lugar em público mundial, considerando longas-metragens em língua não-inglesa - apenas comprova isso.
Nem é um exemplo isolado. La Casa de Papel, ainda que seja espanhola, já teve uma versão coreana. Já Elite, do mesmo país, foi reinventada na Índia como Classes.
“Os remakes podem ser ótimos, porque há ideias em que você muda o contexto onde elas acontecem e ainda vale a pena fazê-la, explorá-la”, contou Darío Madrona, co-criador de Elite, em entrevista a esta coluna no começo deste ano.
Pegando o caso de Bird Box Barcelona, isso fica claro quando o roteiro adiciona uma grande camada religiosa. Os roteiristas locais se aprofundaram nos signos e símbolos da Espanha, um país com uma história e uma cultura intimamente ligados à Igreja Católica.
O grande problema aí é que os acordos entre produtores e a Netflix são bem leoninos, para dizer o mínimo. O próprio Madrona contou que não teve qualquer voz na adaptação indiana de seu trabalho. Basicamente, o produto é da plataforma de streaming e ela faz o que quiser.
Algo parecido foi recentemente revelado por Hwang Dong-hyuk, roteirista, diretor e co-criador de Round 6. Apesar da série ter vencido seis Emmys (que é o Oscar da TV) e conquistado uma audiência de 265,2 milhões em 28 dias (recorde da plataforma até aqui, em qualquer língua ou formato), Hwang não recebeu um centavo a mais além do contrato original. Como o coreano revelou em entrevista ao LA Times, ele abriu mão de toda a propriedade intelectual – permitindo até um derivado de competição, chamado Squid Game: The Challenge.
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Como vemos, exportar a produção para outros países é apenas tapar o sol com a peneira - uma hora o descontentamento vai atingir os quatro cantos da Terra. Para além de produzirem fora dos Estados Unidos durante a greve, a solução do conflito em Hollywood pode ditar o futuro da produção audiovisual como um todo.
Minha esperança, no entanto, se esvai enquanto escrevo estas linhas. É que a Netflix divulgou o seu último balanço financeiro, revelando como positivo – ainda que em um ambiente negativo – o fato dos atrasos nas entregas de conteúdo por causa da paralisação tenha ajudado na melhora de seu fluxo de caixa. É tudo sobre dinheiro, no final das contas.
Como não sabemos no que tudo isso vai dar, nos resta apenas torcer para a criatividade vencer.
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