Assistir Sintonia dói porque série esfrega na cara um Brasil que ninguém quer ver
Segunda temporada da produção é arrasadora ao mostrar desigualdades do país
Publicado em 01/11/2021 às 07:29
Quando a pandemia interrompeu o início das gravações da nova temporada de Sintonia, em março de 2020, parte de público e crítica sentiu o baque, afinal tratava-se da melhor série da Netflix Brasil e o coronavírus colocou em dúvida até o futuro da produção da Kondzilla. Mas a espera valeu à pena e o retorno triunfal da nova leva de episódios, liberados na semana passada, mostrou um crescimento e amadurecimento dos protagonistas Doni (Jottapê), Nando( Christian Malheiros) e Rita (Bruna Mascarenhas), mas dói assistir porque a história mostra um Brasil que ninguém quer ver.
A vida do trio de amigos da favela mudou muito de um ano para o outro e também houve evolução importante na vida de cada um deles. Enquanto Doni já não é mais um menino sonhador, mas realizou o desejo de virar um MC e começa a colher os frutos do sucesso e do dinheiro, Nando virou o chefe da favela e comanda o mundo do tráfico e do crime. Já Rita, diferente dos dois, começou a crescer em sua vida dentro da igreja, após ter aceitado Jesus.
E se há um acerto nos seis episódios liberados da segunda temporada de Sintonia é a aposta em fazer algo que tornou a Globo a super produtora de dramaturgia nos anos 70 e 80: os roteiristas apostaram em mostrar um Brasil real para que, quem assista, veja identificação com a obra. Tanto que, até personagens coadjuvantes ou figurantes lembram profundamente pessoas reais que cruzam a vida no cotidiano.
O retrato real da favela de Sintonia é intenso, a começar pela fotografia real do evangélico, sem caricatura ou zombaria e também mostrando como a religião tem braços por toda a periferia e, daí, a força da influência na vida das pessoas, afinal é a fé e a igreja que estende a mão para o pobre, preto e favelado, enquanto o Estado finge que ele não existe. Ao mesmo tempo, a série também mostra um mundo que só o jovem da periferia é capaz de entender: o sonho de, através da música, dar uma vida melhor para a família e tirar todos daquele lugar.
Todo mundo em Sintonia tem orgulho da favela, mas ninguém quer permanecer nela porque sabe que o local é visto como o esgoto do mundo. Tanto que o governo não alcança suas amarras ali e dá a oportunidade para o crime se estabelecer. E não se trata de um crime que maltrata ou reprime, ao contrário, é o crime quem cuida e protege dos desmandos da própria polícia.
Enquanto outras produções apostam num Brasil imaginário, Sintonia coloca o dedo na ferida, inclusive com a chacina de policiais como vingança por uma guerra de polícia e bandido e quem morre é sempre o favelado inocente. A sequência do assassinato de três jovens com sonhos e a culpa cair em disputa por território de guerras (inclusive com a participação especial de Datena), esfregou na cara do brasileiro a situação real do país.
Assistir Sintonia é maravilhoso porque a produção é um acerto em cheio e com musculatura que faz inveja até em produções da Globo. Mas também dói porque a série te obriga a ver um Brasil esquecido e jogado para debaixo do tapete, um Brasil que ninguém quer ver.