Publicado em 03/10/2023 às 06:40:00
Acabou a greve dos roteiristas de Hollywood. Com muito suor e sofrimento, os trabalhadores saíram como os vencedores dessa disputa. Afinal, o sindicato foi vitorioso em boa parte de suas exigências – que incluem aumentos, pagamentos de “residuais” pelo sucesso de séries no streaming e um número mínimo de profissionais nas produções.
Mas a maior conquista foi “barrar” o uso de inteligência artificial para escrever roteiros. A questão que fica é: será que isso dará certo? E qual é o impacto da medida para o resto do mundo, inclusive para o Brasil?
Quem acompanha esta coluna já sabia que o uso de IA era uma das maiores polêmicas por trás da paralisação, empreendida pelo Writers Guild of America (o Sindicato dos Roteiristas dos EUA, mais conhecido pela sigla WGA). Enquanto os trabalhadores exigiam uma forte regulamentação para o uso desse tipo de ferramenta, os grandes estúdios e grupos de mídia (representados pela Aliança dos Produtores de Filmes e Televisão, ou AMPTP da sigla em inglês) não queriam nem conversar sobre o assunto.
Após 148 dias de braços cruzados, ambos os lados concordaram com um novo Acordo Mínimo Básico (MBA), que rege – como o nome entrega – o mínimo que pode constar em um contrato entre estúdio/produtora e o roteirista. Ou seja, gente de renome tem espaço para negociar condições melhores, mas todos (incluindo aí quem está começando a carreira) partem de um nível igual. Tal compromisso é válido por três anos, até 2026, quando deverá ocorrer uma nova assinatura – e, por consequência, uma outra negociação.
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Em poucas palavras, o novo MBA diz que uma inteligência artificial generativa (IAG, ou GAI em inglês), aquela que é “treinada” por conteúdo existente para criar algo “novo” (o ChatGPT é o exemplo mais famoso), não tem permissão para assinar um roteiro. “As companhias concordam que, pelo fato de nem a IA tradicional nem a generativa serem pessoas, também não são ‘roteiristas’ ou ‘roteiristas profissionais’ [...] e, por isso, não pode ser considerado material literário”, diz o texto.
Essa, por si só, é uma enorme conquista.
Tem mais: a IA não pode ser – oficialmente – fonte para um primeiro rascunho. Isso é importante, já que quem ganha mais é aquele responsável pela versão original. Um dos medos do WGA é que os estúdios gerassem textos ruins com ferramentas digitais, obrigando humanos a reescrever tudo e pagando menos por isso, já que não era uma “ideia original”.
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O outro extremo também se aplica: os integrantes da AMPTP não possuem a permissão para pegar um roteiro feito por uma pessoa e pedir para a máquina reescrevê-lo ou retocá-lo, principalmente se for para minimizar o crédito original (e, por consequência, o pagamento).
Ao mesmo tempo, os contratantes não devem obrigar o roteirista a usar IAs durante o seu processo criativo – com exceção daquelas que não criam conteúdo, como as que verificam se há plágio. Fica assegurada uma independência profissional.
Na prática, tudo isso garante que não exista – em um futuro próximo – um filme ou série hollywoodiano com o script totalmente feito por uma máquina.
Como em qualquer negociação do tipo, a AMPTP também empurrou alguns pontos benéficos para estúdios e grupos de mídia.
Pela legislação dos EUA, o que é puramente produzido por IAs (sem uma interação humana) não é passível de copyright. Ou seja, é de domínio público, não pertence a ninguém. Ao proibir o “ChatGPT roteirista”, garante-se que os scripts são de alguém – e podem ser explorados comercialmente sem o risco de serem usados por terceiros sem qualquer pagamento.
Por isso, um autor precisa informar e pedir autorização antes de usar algo feito ou reescrito por uma IAG. A medida dá um respaldo legal para as empresas.
Outro ponto é que ambos os lados concordaram em se encontrar "semi-anualmente" por toda a duração do MBA, já que há uma "incerteza e rápido desenvolvimento" da nova tecnologia. Se uma grande mudança ocorrer nos próximos meses, as organizações possuem a prerrogativa de reavaliar os termos do contrato. Ao menos na teoria, há uma saída caso as regras se tornem sem efeito em pouco tempo.
Uma vitória, que não está escrita no papel, é que não há nada impedindo a AMPTP e seus membros de investirem em pesquisas e desenvolvimento com IAs. Mesmo que não possam utilizar a tecnologia como ferramenta por ao menos três anos, os estúdios têm espaço para ir refinando o “ChatGPT roteirista” com o tempo.
Isso pode ser particularmente vantajoso para empresas de tecnologia que operam nesse setor, como Amazon, Netflix e Apple, para citar algumas. Ainda que a inteligência artificial generativa não esteja no ponto para substituir humanos em 2026, ao menos há a chance de servir de barganha na próxima disputa sindical.
Por fim, há um ponto que funciona como uma faca de dois gumes. É que o WGA garantiu que as empresas de mídia não estão permitidas a usarem roteiros anteriores para treinar modelos de inteligência artificial generativa. Para citar um exemplo prático: uma IAG fica proibida de receber como fonte a história de Titanic, de James Cameron, e de Star Wars, de George Lucas, para juntar tudo e criar uma ópera espacial romântica "original" que se passa em uma nave estelar condenada.
Inclusive, pelas leis de copyright norte-americanas, isso já seria proibido.
Por outro lado, no fim do dia, quem são os donos dos direitos de adaptação desses scripts são os próprios estúdios – e garantir que eles não sejam usados em IAs também os blinda contra humanos espertinhos, que tentem usar essa artimanha.
Como você já percebeu, a discussão ainda está longe de terminar.
O MBA tem jurisdição apenas nos Estados Unidos, e entre as empresas do setor audiovisual. Nada impede que grupos asiáticos, europeus e até sul-americanos invistam em roteiros criados por inteligência artificial generativa. Pior: os próprios integrantes da AMPTP, quando atuando fora de seu país natal, têm a oportunidade de fazer o mesmo.
Isso é ruim para os dois lados da negociação. Os profissionais locais podem ver o seu ganha-pão simplesmente saindo dos Estados Unidos, migrando para países com regulamentação mais flexível. Já os produtores de conteúdo dão espaço para serem superados por concorrentes com presença mais forte em outras regiões do globo.
O Brasil poderia ser um desses lugares, claro. Contudo, isso dependeria de algum grupo local (como a Globo) encontrar uma forma de explorar essa brecha, algo que nem sempre é fácil. Algum conglomerado do exterior têm até a possibilidade de usar o nosso país como o seu playground, fazendo aqui o que não é permitido lá nos EUA. A questão é: se eles não querem para eles, vamos querer isso para os nossos trabalhadores? Será que é uma troca que vale a pena?
Nesse sentido, é importante que o novo acordo em Hollywood sirva de exemplo para outros ao redor do mundo. Ainda assim, são poucos os países onde os sindicatos possuem tanto poder de barganha e adesão. Talvez seja necessário alçar um passo maior, com leis que efetivamente regulamentem o uso da inteligência artificial. A questão é que a implementação de legislações do tipo são extremamente mais lentas do que a evolução da tecnologia.
Aliás, nos próprios EUA, conglomerados de outros setores – como os de tecnologia – podem investir pesado na criação de IAs que produzam scripts. O próprio ChatGPT já foi treinado por uma infinidade de textos sem pagar qualquer copyright, incluindo aí roteiros de filmes e séries. Mesmo que o resultado final não seja de alto nível, até você, caro leitor, tem a possibilidade de usar a ferramenta (que tem uma versão gratuita) para criar um texto do tipo.
Entrar efetivamente em um set para produzir o conteúdo criado pelas máquinas ainda seria um desafio, mas outras brechas são possíveis.
Não há respostas simples, e o futuro parece bem nebuloso. Tudo pode acontecer, inclusive nada.
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