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100 anos de Dias Gomes, "subversivo" que escancarou o Brasil na TV

A jornalista e pesquisadora Laura Mattos analisa perseguição ao dramaturgo na ditadura militar e destaca como histórias sobre corrupção, intolerância e falsos mitos seguem atuais


Dias Gomes
Para pesquisadora, a obra e a trajetória de Dias Gomes trazem reflexões políticas abrangentes - Foto: Reprodução
Por Walter Felix

Publicado em 19/10/2022 às 04:00,
atualizado em 19/10/2022 às 11:39

“Subversivo” era como a ditadura militar via um dos maiores dramaturgos brasileiros, segundo documentos oficiais da época. Dias Gomes, que completaria 100 anos nesta quarta-feira, 19 de outubro, se apropriou dessa alcunha no título de sua autobiografia, lançada em 1998, um ano antes de morrer, vítima de um acidente de carro. Seu legado, que se estendeu do teatro para a TV, passando pelo cinema, é de histórias que seguem falando intimamente sobre o Brasil de hoje.

A perseguição a Dias Gomes nos tempos da ditadura é narrada no livro Herói Mutilado, lançado pela jornalista e pesquisadora Laura Mattos em 2019. A autora resgatou o veto à encenação da peça O Berço do Herói, em 1965; a proibição de sua adaptação para a TV como Roque Santeiro, no dia de estreia na Globo, em 1975; e finalmente a veiculação da novela em 1985, com o fim do regime, mas ainda sob a batuta da censura federal.

“Roque Santeiro foi ao ar como um símbolo da volta da liberdade de expressão e do fim da ditadura. A pesquisa trouxe a informação de que, mesmo em 1985, a novela foi seguidamente censurada. Esse foi um ponto que considero importante da pesquisa, por demonstrar que a censura se mantém em períodos democráticos”, destaca Laura Mattos ao NaTelinha.

Para ela, a obra e a trajetória de Dias Gomes trazem reflexões políticas abrangentes. “A censura não é restrita a ditaduras e acontece fortemente em períodos em que o autoritarismo se coloca, quando há tensão social e polarização política. A censura tem muito a ver com o desejo de calar aquilo que incomoda e com discursos contrários ao segmento que está no poder.”

“Conforme a gente segue a trajetória de uma obra que foi censura nos três períodos da ditadura – no começo, no meio e no fim –, acompanhamos a história da ditadura, da censura, da TV e do próprio Brasil. É um caso particular que nos faz conhecer um panorama cultural e político brasileiro, que permite partir de uma história específica para analisar a história de um país.”

Laura Mattos

Dias Gomes migrou para a TV por conta da repressão no teatro

Dias Gomes e Janete Clair
Com estilos diferentes, Dias Gomes e Janete Clair escreveram alguns dos maiores sucessos da Globo nos anos 1970 e 1980 - Foto: Reprodução

Segundo Laura, contar a história da TV é contar parte da história do Brasil no século XX. “É muito interessante acompanhar o jogo de interesses entre a política e a comunicação, a indústria cultural. A censura se coloca como uma ferramenta na manutenção de poder em um tripé que envolve também a vigilância e a repressão. É uma ferramenta na manutenção de poder em governos autoritários, tanto de direita quanto de esquerda.”

De acordo com a pesquisadora, a ida de Dias Gomes para a TV foi ocasional. “Ele não queria, naquele momento, trabalhar na televisão nem no rádio, mas a repressão, em um primeiro momento, se concentrou no teatro. Naquele momento, os palcos concentravam os grupos de oposição, e a ditadura temia uma possível conexão entre aquelas ideias de esquerda e as classes populares.”

Foi neste contexto que Dias Gomes passou a ser um nome visado pela atuação teatral e também junto à imprensa. “A televisão era um veículo ainda em ascensão, porque havia sido inaugurada no começo dos anos 1950. Em meados da década de 1960, ainda não tinha audiência e poder econômico que viria a ter, fomentada pelo próprio incentivo da ditadura militar”, pontua Laura Mattos.

“A censura começou a proibir as peças de teatro. Dias Gomes era muito perseguido por ser um membro célebre do Partido Comunista e ficou ainda mais em evidência com O Pagador de Promessas, peça que virou o filme de Anselmo Duarte em 1962 e se tornou o único longa brasileiro a ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Em 1969, depois do AI-5, ele estava inviabilizado no teatro, deprimido, e aceitou o convite para trabalhar na Globo.”

Laura Mattos

Autor e outros intelectuais de esquerda viram potencial na televisão

Dias Gomes
Dias Gomes enfrentou a censura da ditadura e do público - Foto: Reprodução

Havia um interesse da emissora em criar um produto nacional com o qual o público se identificasse. Na época, as novelas do canal obedeciam às regras da autora cubana Glória Magadan (19200-2001), que só apostava em tramas importadas, distantes da realidade brasileira. Junto da esposa, Janete Clair (1925-1983), o dramaturgo introduziu um jeito novo de fazer novelas, impulsionados pelo sucesso de Beto Rockfeller (1968), na Tupi.

“A própria esquerda começou a olhar para a televisão com menos preconceitos. Antes, o veículo era considerado uma forma de alienar e afastar o público da realidade. Começaram a entender que havia ali uma oportunidade de que as ideias pudessem ser levadas para uma grande audiência.”

Laura Mattos

A jornalista lembra que a TV absorveu os dramaturgos de esquerda da época, como Lauro César Muniz, Bráulio Pedroso (1931-1990) e Jorge Andrade (1922-1984). “A própria Janete Clair era injustamente criticada pela esquerda como alienada por suas novelas melodramáticas e por não ser filiada ao Partido Comunista. Só que, nos documentos da ditadura, também era vista como uma autora de oposição, porque fazia críticas e denunciava uma série de injustiças da época em novelas como Irmãos Coragem (1970).”

Já havia naquela época, contudo, uma expressiva parcela conservadora da sociedade atenta ao que se passava na teledramaturgia. “A censura não era algo indesejado pelo público, especialmente nos aspectos que se diziam ‘da moral e dos bons costumes’. A censura é sempre política, mesmo nesses casos, porque traz à tona os costumes da base política do momento e busca vetar a moral da oposição.”

A pesquisadora cita que o departamento da Censura Federal recebia cartas do público com denúncias sobre cenas e temáticas exibidas nas novelas. Tanto que o órgão foi extinto apenas em 1988, três anos após a saída dos militares, e tem reflexos até hoje. Para ela, um ponto significativo na trajetória do autor foi Mandala (1987), que completou 35 anos de estreia na semana passada.

“Em 1987, o Brasil vivia a euforia da volta da democracia e da liberdade de expressão. Mandala era inspirada em Édipo Rei, tragédia de Sófocles em que o protagonista mata o pai e se casa com a mãe. Imagina se hoje alguém ousaria fazer hoje uma novela sobre o incesto entre mãe e filho? Nesse aspecto, o Brasil daquele fim dos anos 1980 era mais aberto e menos conservador que o Brasil de hoje.”

Laura Mattos

Histórias sobre corrupção, intolerância e falsos mitos seguem atuais 50 anos depois

O Bem-Amado
Odorico Paraguaçu e as irmãs Cajazeiras na novela O Bem-Amado, de 1973 - Foto: Acervo Globo

A atualidade da obra de Dias Gomes é sempre ressaltada. Ao falar sobre as histórias que dialogam diretamente com o Brasil de 2022, Laura Mattos cita três: O Bem-Amado, peça dos anos 1960 que virou novela em 1973 e série em 1980; O Berço do Herói, espetáculo censurado em 1965 que ganhou a TV como Roque Santeiro em 1985; e O Pagador de Promessas, montagem adaptada para filme em 1962 e minissérie em 1988.

“Lembramos sempre de Odorico Paraguaçu [protagonista de O Bem-Amado, vivido na TV por Paulo Gracindo (1911-1995)]. Ficou no imaginário popular esse prefeito que era corrupto, inescrupuloso e, ao mesmo tempo, charmoso e encantador. Esses políticos criados por Dias Gomes encantavam o público ao mesmo tempo que geram essa revolta. Eram personagens não maniqueístas e figuras muito brasileiras.”

A conexão entre o Brasil e a fictícia cidade de Sucupira persiste há mais de 50 anos. Na pandemia da Covid-19, viralizaram comparações entre o prefeito e o presidente Jair Bolsonaro. “Há ali o autoritarismo, a corrupção e os interesses eleitoreiros. A história fala inclusive do desdém do Poder Executivo pelo Judiciário quando as decisões não são de seu interesse. Parece que a peça foi escrita há 50 anos com base nas notícias do jornal de hoje.”

O Pagador de Promessas segue atual pela abordagem da intolerância. “A princípio, a história parece falar da intolerância religiosa do padre que não deixa o fiel entrar na igreja pela ligação com o candomblé, mas, no fim, está falando da intolerância em geral, do poder constituído, das instituições e da sociedade. Quer coisa mais atual?”

Em Roque Santeiro, havia o retrato de como a política explora a religião e o fanatismo dos fiéis com a história de um militar que virou mito. “É uma história sobre como os poderosos exploram os milagres de um falso santo e de como essa crença é importante para aquela sociedade carente. É de arrepiar que uma peça dos anos 1960 traga questionamentos tão atuais.”

“Que bom que estejamos celebrando essa lucidez de Dias Gomes neste Brasil de 2022. Que ele possa estar vivo para nos apontar como aquele país das injustiças, das mazelas sociais e da política inescrupulosa que era o Brasil de ontem infelizmente também é o Brasil de hoje.”

Laura Mattos
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