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Roda de Fogo faz 35 anos; para autor, novela foi "escondida" pela Globo

De volta no Globoplay, clássico de 1986 tinha ex-guerrilheira torturada na ditadura, vilão gay e Tarcísio Meira como protagonista corrupto

Em Roda de Fogo, a incorruptível juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi) vive caso de amor com o empresário ladrão Renato Villar (Tarcísio Meira) - Foto: Reprodução/Globo
Por Walter Felix

Publicado em 25/08/2021 às 06:29:00

Roda de Fogo completa 35 anos de estreia nesta quarta-feira, 25 de agosto. A novela fez história, entre 1986 e 1987, com vários personagens marcantes; entre eles, o protagonista Renato Villar, um dos melhores papéis de Tarcísio Meira (1935-2021) na TV, um empresário corrupto que revê sua conduta ao descobrir uma doença fatal. Em entrevista exclusiva ao NaTelinha, Marcílio Moraes, um dos autores, revela que precisou resistir à insistência da própria Globo e dos telespectadores, que queriam o mocinho redimido e vivo no fim da trama.

“Houve seguramente uma pressão nesse sentido, mas ficaria uma coisa muita fajuta, depois de seis meses dizendo que ele iria morrer”, comenta. A solução encontrada foi "amenizar" a morte do personagem: no último capítulo, na praia com sua amada juíza Lúcia Brandão (Bruna Lombardi), o protagonista desmaia e a trama chega ao fim. “A rigor, o telespectador não o vê morto. Para quem quiser entender dessa forma, ele não morreu”, explica o novelista.

Na visão de Marcílio – que escreveu em parceria com Lauro César Muniz –, Roda de Fogo fugiu de um padrão da emissora por não ter um estilo tão popular, o que a fez ser “escondida” pela Globo por 35 anos. O retorno ocorreu há quatro meses, no Globoplay. “Os personagens estão sempre de terno, tomando uísque, falando sobriamente. Era uma novela mais sofisticada em sua dramaturgia, mas acho que a direção da emissora não valorizava esse lado.”

Ambientada na Nova República, a produção tinha forte cunho político e falava de resquícios da ditadura militar no Brasil: a ex-guerrilheira Maura Garcez (Eva Wilma), paixão do passado de Renato, volta ao país após anos exilada na Europa, traumatizada pelas torturas sofridas nos anos de chumbo. Marcílio pontua que a ditadura já não era uma ferida tão aberta àquela época. “Hoje, é mais. Se a novela fosse feita em 2021, teríamos mais dificuldade em levá-la ao ar do que tivemos em 1986”, avalia.

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A Censura Federal, que vigorou até 1988, não implicou com a verve política do folhetim, mas vetou as menções à sexualidade do vilão Mário Liberato (Cecil Thiré). O mau-caráter tinha um caso com o mordomo Jacinto (Cláudio Curi) e nutria uma paixão platônica por Renato, mas tudo ficava nas entrelinhas. “Não houve uma reação do público, mas tivemos cenas cortadas. Para a Censura Federal, esse era um ponto mais sensível do que o político.”

Sequências da fase em que o conquistador Tabaco (Osmar Prado) se torna impotente sexual também foram barradas. “Eles se preocupavam com essas besteiras”, recorda o escritor. O personagem, um divertido e mulherengo motorista, responsável pelo alívio cômico da história, nasceu em uma viagem do autor ao Maranhão, quando conheceu uma mulher cujo namorado se chamava Tabaco e era famoso por ter tido três mulheres.

Passados 35 anos, Marcílio Moraes se orgulha de ter feito uma novela sem concessões – tanto em termos políticos, quanto em dramaturgia. O veterano lembra que a trama não foi um estouro de audiência na exibição original, mas cativou a crítica, o que a manteve como um clássico. Disponível na íntegra pelo Globoplay desde abril, tem conquistado um público mais jovem. “O streaming talvez seja mais o lugar de Roda de Fogo que a TV aberta.”

Leia a íntegra da entrevista com Marcílio Moraes, coautor de Roda de Fogo

Roda de Fogo falava de política, corrupção e heranças da ditadura militar. Foi ao ar apenas um ano após o fim do regime e ainda sob a Censura Federal. Considera que tenha sido uma novela corajosa?

Olhando hoje, as pessoas se surpreendem, mas desenvolvemos esse lado sem nem nos darmos conta. Em 1986, a ideia da ditadura já estava um tanto desgastada com a volta da democracia, o retorno dos exilados e as eleições, ainda que indiretas. Aquele espírito sobrepujou. Os censores se preocupavam mais com questões sexuais, como homossexualidade, traições… Sobre o aspecto político, não houve nenhum corte.

Roda de Fogo tinha todo esse aspecto político, mas tinha muitos outros. O drama do personagem central é um drama existencial e ético, não era um drama político. A iminência da morte traz para o Renato Villar a exigência de encarar a vida com seriedade, com verdade. É o que segura a novela, efetivamente.

Mas a Maura Garcez, papel da Eva Wilma, tinha um drama político. Houve alguma dificuldade em levar essa personagem ao ar?

Não me lembro de nada nesse aspecto. Já havia um espírito dentro da emissora bem aberto, sem essa preocupação. A ditadura e a luta armada eram consideradas coisas antigas, superadas, embora tivesse passado pouco tempo. A Maura Garcez surgiu naturalmente, fazia sentido uma personagem assim naquela história.

Conseguimos explorar bem esse lado político, não fizemos concessões. E a ditadura já não era uma ferida aberta. Hoje, é mais. Se a novela fosse feita em 2021, teríamos mais dificuldade em levá-la ao ar do que tivemos em 1986.

Nas entrelinhas, o vilão Mário Liberato tinha um envolvimento com o mordomo Jacinto, um ex-torturador. Quais foram as reações a esses personagens?

A homossexualidade naquela época era tolerada e até mesmo aceita na TV desde que de forma sutil, sem nada escancarado. Não houve uma reação do público, mas tivemos cenas entre os dois cortadas. Para a Censura Federal, esse era um ponto mais sensível do que o político. A questão política não incomodava a censura, mas o comportamento sexual dos personagens, sim. Também foram censuradas algumas cenas do Tabaco, na fase da novela em que ele fica brocha. Eles se preocupavam com essas besteiras.

O núcleo do Tabaco fez muito sucesso. Vocês contavam com a popularidade do personagem?

Anos antes de apresentar a sinopse, eu tinha viajado para o Maranhão e conheci uma senhora que estava muito pesarosa porque o namorado tinha morrido. O nome dele era Tabaco, que é uma expressão usada em regiões do Nordeste para “xoxota”. Ele tinha a fama de ter três mulheres. Quando fiz a primeira sinopse, usei aquilo.

Não podia imaginar que o personagem fosse fazer tanto sucesso. O Osmar Prado me contou que foi ovacionado em um comício que participou com o Chico Buarque em Recife, naquela época. O Chico até pensou que toda a movimentação fosse por causa dele, mas as pessoas estavam gritando era pelo Tabaco (risos).

De certa forma, tinha uma simetria irônica entre a história do Tabaco e a do Renato Villar, que também estava envolvido com três mulheres [a antiga paixão, Maura Garcez/Eva Wilma; a esposa, Carolina/Renata Sorrah; e o novo amor, Lúcia/Bruna Lombardi]. Acredito que parte do sucesso do personagem é porque ele caía bem na cultura machista daquela época: o ideal do homem médio brasileiro era ter três mulheres.

Quanto ao destino do Renato Villar, imagino que tenha havido uma torcida do público para que ele se curasse, tivesse um final feliz… Esse fim chegou a ser cogitado?

Sim. Houve uma discussão, um dilema sério na reta final. O ponto de partida da história é que ele ia morrer. Antes, fizemos até uma pesquisa para escolher a doença que ele teria. O angioma foi o que calhou, porque não podia ser uma doença deformante ou incapacitante, para que o Tarcísio continuasse bonitão durante os seis meses de novela.

Acontece que o público se envolve, e o dramaturgo trabalha para isso: para envolver e gerar identificação com o personagem. A alta direção da emissora chegou a colocar essa questão de que talvez pegasse mal se ele morresse. O Umberto Eco (escritor e filósofo italiano, 1932-2016) dizia que a função do folhetim é consolar. Tem fundamento esse raciocínio, em termos industriais.

Houve seguramente uma pressão nesse sentido [por parte da Globo], porque podia haver uma frustração do grande público. Mas também ficaria uma coisa muita fajuta, depois de seis meses dizendo que ele iria morrer… A solução foi conciliadora: ele tem uma espécie de desmaio e a novela acaba. A rigor, o telespectador não o vê morto. Para quem quiser entender dessa forma, ele não morreu.

No Globoplay, Roda de Fogo tem atraído um novo público, que nem sequer era nascido quando ela foi ao ar.

Tenho notado que a novela agrada mesmo o pessoal mais jovem. O Brasil não mudou muito de lá para cá, e a trama vai fundo em alguns problemas reais da vida brasileira, como a corrupção. Há ainda a questão existencial, que é permanente, eterna. As novelas, especialmente as mais recentes, não pegam esse reio da realidade.

Na época, Roda de Fogo não foi um grande sucesso de público. Foi bem, mas não era difícil uma novela ir bem na Globo, porque a emissora tinha um público cativo. Por outro lado, fez muito sucesso de crítica. O pessoal mais antenado gostava muito, porque não tinha aquelas bobagens de novela. Não é uma novela fácil, com recursos manjados – como noiva fugindo no altar, gente ouvindo atrás das portas… É uma novela sóbria, uma dramaturgia boa, coerente e compromissada com seu momento, e por isso permanece.

A verdade é que Roda de Fogo ficou escondida esses 35 anos pela Globo. Teve uma reprise em 1990 [no Vale a Pena Ver de Novo, em 35 capítulos] que foi escandalosa. Cortaram tudo e só durou um mês. O streaming trouxe essa vantagem. Antigamente, você escrevia a novela, ia ao ar e acabava, nunca mais ninguém via, podendo contar apenas com uma reprise, eventualmente.

A que você atribui esse tratamento diferenciado da emissora?

Não era uma novela dentro do padrão habitual. Foi um ponto fora da curva. Os personagens estão sempre de terno, tomando uísque, falando sobriamente. Vendeu bem para países que a Globo rarissimamente conseguiu vender, como a Alemanha. Fez sucesso na França, chegou a ganhar um artigo no Le Monde.

Um ano antes, Roque Santeiro (1985) também teve alta qualidade, mas era muito mais popular. Roda de Fogo era mais sofisticada em sua dramaturgia, e acho que a direção da Globo não valorizava esse lado. Para eles, deu pouco dinheiro e pouco público. A surpresa tem sido agora... O streaming talvez seja mais o lugar de Roda de Fogo que a TV aberta.

Você tem assistido a Roda de Fogo na plataforma?

Sim, para rememorar. Tem muita coisa que a gente esquece. E a novela realmente é interessante. Não tinha tanta ideia do quanto ela inova, em certo aspecto, e tem uma dramaturgia eficaz. É uma novela basicamente interna, baseada no diálogo, com pouquíssimas cenas externas. Como eu e o Lauro viemos do teatro, o diálogo é o que sustenta a história.

Outra novela sua feita em parceria com o Lauro César Muniz foi Sonho Meu (1993), que está em reprise no Viva. Apesar de contar com os mesmos autores, é completamente diferente de Roda de Fogo. Consegue ver alguma aproximação entre elas?

Na época, a Globo me pediu para juntar duas novelas do Teixeira Filho, A Pequena Órfã (1969) e Ídolo de Pano (1974). Dessa mistura, surgiu uma novela inteiramente diferente. Sonho Meu foi fundo naquilo que se propunha, tratou aquela “pequena órfã” com seriedade. As crianças da história não são envoltas em probleminhas bobocas. Os problemas são reais: violência doméstica, abandono.

Teve a história da bigamia. Para conseguir ficar com a filha e não ser agredida pelo primeiro marido, a protagonista acaba enganando o mocinho. Isso estava muito bem colocado e tenho certeza que os telespectadores estavam do lado dela, entendiam o problema daquela mulher. Só que alguns babacas da Globo vieram com um papo de machista-corno de que era um mau exemplo a mulher mentir para o homem que ama. Houve essa interferência, alguns acontecimentos foram antecipados, o que atrapalhou um pouco a história.

Mas Sonho Meu fez grande sucesso de audiência, porque tinha todos os elementos dramáticos para isso. De fato, é bem diferente de Roda de Fogo, mas também é forte nesse sentido. Embora fosse uma novela das seis, os problemas dos personagens eram reais, como nas das oito.



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