Nunca na história do audiovisual norte-americano houve um impasse tão complicado como este que vivemos agora. O sindicato que representa os roteiristas decretou greve há mais de 130 dias, enquanto o dos atores paralisou as atividades da categoria há quase dois meses. Não se sabe ainda como ou quando essa situação será solucionada, mas uma coisa é certa: este final de 2023 e, principalmente, 2024 serão anos "esquisitos" em termos de filmes e séries, para dizer o mínimo.
É bom você, nobre leitor, se preparar – e baixar as expectativas. Trata-se de um efeito cascata que já começou, e que pode levar quase uma década para se dissipar.
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Além daqueles que atuam em produções de grandes estúdios estarem impedidos de aparecer no set, eles também não podem divulgar esse trabalho. Ou seja, não estão liberados para dar entrevistas, desfilarem em tapetes vermelhos e nem podem postar nas redes sociais. Tudo isso será considerado como "fura-greve".
Ao furar o movimento, o profissional sindicalizado se sujeita a uma série de sanções, que vão de uma reprimenda a suspensão ou até a expulsão. Isso é sério: se não for membro de um sindicato, o ator ou atriz simplesmente não pode trabalhar no país. Em um caso extremo, significa o fim da carreira, ao menos nos Estados Unidos.
Os grupos de mídia estão com um problema nas mãos. Afinal, o "star system" existe. Quer dizer: é a imagem desses famosos que chama atenção para suas obras. Sem a estrela dando entrevistas, fica difícil fazer com que as pessoas comentem sobre a produção – e, com menos conhecimento por parte do público, fica menor a audiência.
É por isso que filmes já prontos e praticamente finalizados, que não precisavam mais dos atores no set, estão sendo adiados. Um exemplo é o grandioso Duna: Parte 2. Provavelmente sem Timothée Chalamet, Zendaya e companhia, a Warner Bros. Discovery preferiu desistir do lançamento em novembro e jogá-lo para março de 2024.
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Há diversos outros casos do tipo. Também protagonizado por Zendaya e dirigido por Luca Guadagnino (de Me Chame Pelo Seu Nome), Rivais (ou Challengers, em inglês) foi de setembro agora para abril do próximo ano. Em uma conta rápida, há outros 16 longas-metragens que perderam a data em 2023 e foram para 2024.
Entre o que está mantido para este final de 2023, ficaram aquelas produções que não dependem tanto assim das estrelas para serem divulgadas ou que os estúdios simplesmente querem se livrar logo e despejar nos cinemas – torcendo para que a falta de outros produtos em cartaz efetivamente ajude, de alguma forma. É o caso da Warner Bros., que mantém Wonka e Aquaman 2 firmes e fortes no calendário, ambos em dezembro. Duas prováveis bombas.
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Entre as séries, a lista de afetadas também é longa. Por mais que o streaming tenha mudado um pouco as regras do jogo, setembro ainda marca o começo da chamada "fall season", quando as emissoras norte-americanas (especialmente as abertas) lançam as novas temporadas. Títulos como The Good Doctor, NCIS e Law & Order, entre outros, tiveram os novos episódios adiados, em alguns casos indefinidamente.
Uma coisa é certa: quando sair, a temporada 2023-24 será mais curta – e, em alguns casos, com a qualidade afetada, principalmente se houver uma "corrida" para compensar o tempo perdido. Quem viveu a greve de 2007-08 lembra bem como é isso.
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Se você é do "time Netflix", os efeitos também serão sentidos – ainda que as estreias não sejam assim tão sincronizadas. As filmagens da quinta temporada de Stranger Things estão adiadas indefinidamente, por exemplo.
Até aqui falamos no curto prazo, mas este impacto será sentido por muitos anos.
No cinema, o processo de produção é muito mais longo. Enquanto na telinha se grava para ir ao ar poucos meses (ou até semanas) depois, na tela grande as filmagens ocorrem cerca de um ano ou mais antes da estreia. Isso falando de Hollywood.
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Ou seja, quando a greve dos atores começou, Deadpool 3 já estava sendo rodado no set – e foi, claro, tudo paralisado. O mesmo ocorreu com Beetlejuice 2 e até com o trabalho de voz da continuação de Spider-Man: Beyond the Spider-Verse, terceira parte da trilogia Aranhaverso. Originalmente previstos para 2024, fica cada vez mais difícil que esses três longas saiam na data. Em outra hipótese, podem manter o calendário e sofrerem com outros problemas, como efeitos especiais ruins. Quando falamos dos roteiristas, o trabalho deles ocorre com uma antecipação muito maior. Considerando a fase de pré-produção, podemos estar falando de longas que chegarão na tela grande daqui três, quatro ou até cinco anos. Blade, baseado no herói da Marvel e estrelado por Mahershala Ali, é um dos títulos afetados. Superman: Legacy também teve a redação do roteiro paralisada.
Isso sem falar no efeito cascata. Os títulos de 2023 indo para 2024 fazem com que aqueles do próximo ano fujam para 2025, com medo da concorrência ou por readequação do estúdio – e assim vai.
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O fenômeno é ainda pior em universos compartilhados: a Marvel Studios e a Disney já adiaram o quinto e sexto capítulos da franquia Vingadores, que terão os Maiores Heróis da Terra enfrentando o vilão Kang. Programados inicialmente para 2025 e 2026, eles já foram postergados em um ano.
E há o curioso caso de Avatar. Se a franquia do diretor James Cameron já sofreu inúmeros atrasos sem greve, imagine agora! Tudo foi adiado mais uma vez, com Avatar 5 agora previsto para dezembro de 2031. A data é 22 anos depois da estreia da primeira parte da série, no agora longínquo 2009.
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Teremos filmes e série, sim
Essa confusão toda não quer dizer que ficaremos sem nada para assistir nos próximos meses. É que nem tudo está parado em Hollywood.
Enquanto os roteiristas cruzaram os braços de vez, o sindicato dos atores tem uma abordagem diferente: ofereceu para produtores independentes e pequenos distribuidores uma espécie de "acordo interino". Basicamente, essas empresas concordaram com todas as demandas e puderam voltar ao trabalho. Quando houver um contrato mais amplo, com os grandões, valerá também para esse pessoal.
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Por isso, filmes e séries “indies” continuam sendo rodados e ainda podem ser promovidas por quem atua nelas. Entre as companhias beneficiadas temos queridinhas do público, como Neon e A24, responsáveis por sucessos de nicho nos últimos anos.
Há a chance de criar-se um cenário interessante – principalmente nos cinemas, que se variam um "oásis" para os pequenos, tendo em cartaz muitos daqueles longas com mais cara de Oscar, de festival. Títulos sul-americanos, europeus e brasileiros terão a oportunidade de conquistar um espaço maior.
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Isso quer dizer que essas produções não ficarão sufocadas entre os lançamentos arrasa-quarteirão, o que abre a porta para abocanhar um espaço ainda maior na temporada de premiações.
Agora, há uma possibilidade de haver o efeito inverso. Sem um Barbie, um Oppenheimer, um Top Gun ou um herói da Marvel para chamar os espectadores, os exibidores podem virar um enorme deserto. De nada adianta ter mais salas para os independentes se elas estão todas vazias, não é mesmo? Os cinemas vão sofrer.
Tudo isso deixa um gosto ruim na boca, mas é importante destacar que todos esses transtornos não são gratuitos.
É necessário dar nomes aos bois. As organizações envolvidas são a WGA (Writers Guild of America, que é o sindicato dos roteiristas), e SAG-AFTRA (Screen Actors Guild and American Federation of Television and Radio Artists, que representa os atores) e a AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers, a aliança dos grandes produtores e que é composta por corporações como Disney, Paramount e Netflix).
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O que existe entre a AMPTP e cada um dos sindicatos é um acordo geral (MBA, Minimum Basic Agreement), que rege o mínimo do que deve constar em um contrato entre um estúdio e um profissional. Envolve remuneração, direitos, benefícios e muito mais. São válidos por três anos e, quando estão próximos de vencer, ocorre uma negociação coletiva para manter ou mudar os termos.
O que aconteceu em 2023 é que os dois contratos mínimos venceram, não houve consenso e, sem nada assinado, os trabalhadores cruzaram os braços.
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De forma geral, atores e roteiristas lutam por remunerações melhores. Há particularidades nas reivindicações de cada sindicato, mas basicamente a disputa começou porque a revolução do streaming mudou também a forma como filmes e séries são produzidos, criando um cenário onde há mais incertezas, contratos mais curtos e pagamentos menores quando relacionados ao sucesso dos títulos.
Em meio a isso, há duas questões-chave. A primeira delas é sobre a transparência, com os serviços de vídeo online (como Netflix, HBO Max e Disney+) não divulgando números de audiência de forma ampla, consistente, auditada e padronizada. Isso impacta não só nas métricas de sucesso e fracasso, mas também na credibilidade do que se recebe no caso de um hit.
Existe também a polêmica da inteligência artificial. Os sindicatos vislumbram um futuro onde as máquinas podem substituir o trabalho humano, ou ao menos diminuir o número de pessoas envolvidas. Isso levanta diversas indagações, inclusive sobre direito autoral e de imagem. Por isso, demanda-se agora uma regulamentação desse uso.
Na visão de atores e roteiristas, trata-se de uma questão existencial. Se a indústria se tornar inóspita, principalmente para os do "baixo clero" e aos iniciantes, não serão mais criados novos talentos, novos sucessos. Ninguém mais vai querer atuar ou escrever, e o ciclo de renovação se quebra. A crise de criatividade que vemos hoje irá se perpetuar.
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Seja como for, não haverá vencedores. Uma paralisação tão longa quer dizer que os profissionais estão cortando na carne, sem ter dinheiro para colocar comida na mesa ou correndo o risco de perderem suas casas.
Os grandes grupos de mídia também sofrem. Se a greve os faz adiar pagamentos no presente, melhorando o fluxo de caixa, o futuro vai ficando incerto. Podem acabar sem produtos em suas prateleiras, em um setor que precisa continuar gerando interesse constante para continuar gerando dinheiro.
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Em meio a tudo isso, ainda não há uma perspectiva de quando esse impasse irá acabar. E mesmo quando um novo acordo for assinado, será necessário um tempo para colocar tudo em operação novamente.
Uma coisa é certa: 2023 era para ser com a TV vivendo o seu primeiro ano de normalidade desde o começo da pandemia, em 2020. E 2024 era para ser aquele em que o cinema teria a chance de ao menos se aproximar do que foi em 2019. “Era” do verbo “não será mais”.
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É um baque grande não só para nós, o público, mas para a indústria do entretenimento como um todo – e um momento pra lá de estranho para se viver.
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