Publicado em 18/04/2022 às 04:00:00, atualizado em 19/04/2022 às 16:54:34
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O escritor e jornalista João Ximenes Braga, vencedor do 41º Emmy Internacional pela novela Lado a Lado (2012-2013), exibida na Globo na faixa das 18h, conta que o mercado de trabalho para roteiristas enfrenta uma crise e deve entrar em colapso com o novo modelo de produção que vem sendo adotado pela indústria audiovisual, com o intuito de economizar custos de mão de obra. João explica que o setor passa por um processo de “uberização” e que, em algum momento, o problema deve chegar à justiça e até numa greve.
“Se as coisas continuarem como estão, esse mercado vai entrar em colapso, e não vai demorar, pois não é só o fim do contrato longo. Isso vem junto com uma nova visão de produção em que o roteirista é apenas um técnico e não mais pode almejar a posição de autor/criador. Tudo ao mesmo tempo, e de propósito, para baratear a mão de obra”, diz o novelista em depoimento enviado ao NaTelinha.
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Esse novo modelo de produção, citado por João Ximenes Braga, ganhou força no país com a chegada das empresas americanas de streaming. O formato vem sendo adotado também por companhias nacionais, como a Globo, referência no mercado e a maior produtora de conteúdo audiovisual em português no mundo. Atualmente, o grupo passa por uma transição entre dois tipos de contrato – de fixo para por projeto - entre seus roteiristas.
João Ximenes Braga foi contratado pela TV Globo por nove anos e deixou a emissora em 2016. No canal, escreveu Lado a Lado junto com Claudia Lage e a história venceu o Emmy na categoria Melhor Novela disputando com a badalada Avenida Brasil (2012). Além disso, foi coautor de Babilônia (2015) e colaborador de Insensato Coração (2011) e Paraíso Tropical (2007).
“Hoje sei que a ideia da obliteração da autoria não é apenas para evitar que um autor exponha sua visão de mundo, é um projeto financeiro: acabando com a autoria, acaba-se com os direitos do autor por sua obra. Inclusive, os contratos vêm da matriz americana e são assinados sem respeitar as leis brasileiras de direitos autorais. É mais uma forma de uberizar o roteirista ao máximo, mas que mais cedo ou mais tarde chegará na Justiça."
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João Ximenes Braga
Aos 52 anos, o premiado autor possui cinco livros publicados: Porra, Juízo, A mulher que transou com o cavalo, A Dominatrix Gorda e Necrochorume. À reportagem, João Ximenes diz que não está todo pessimista com o mercado porque acredita que o próximo governo não será inimigo da cultura e o cinema brasileiro voltará a abrigar essas mentes criativas.
“Em breve os jovens que hoje estão abarrotando as salas de roteiro vão entender que, como roteiristas nesse sistema uberizado, não terão direito à ambição de conquistar nem a independência financeira, nem a realização artística. Previsão essa que não vem de bola de cristal, mas da História: quando o descontentamento é generalizado, se resolve ou na guilhotina, ou na greve."
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Confira na íntegra o depoimento de João Ximenes Braga sobre a situação no mercado de roteiristas
"Se as coisas continuarem como estão, esse mercado vai entrar em colapso, e não vai demorar, pois não é só o fim do contrato longo. Isso vem junto com uma nova visão de produção em que o roteirista é apenas um técnico e não mais pode almejar a posição de autor/criador. Tudo ao mesmo tempo, e de propósito, para baratear a mão de obra.
Quando terminou meu último contrato com a Globo, botei no papel alguns projetos de seriado, uma produtora grande se interessou por um deles, mas se recusou a me garantir em contrato que eu faria a redação final, alegando que “as plataformas podem querer dar o seu projeto pra algum roteirista da turma deles”. Perguntei: “e o que eu ganho com isso?”. Ela se omitiu da única resposta possível – “nada” – e não seguimos adiante. Por que diabos alguém vai criar uma história original se, além de toda a dificuldade em emplacá-la, pode ter seu produto roubado na mão grande? É uma ignomínia! Entender isso logo de cara foi um livramento, saí dessa corrida de malucos e voltei a dedicar minha escrita à literatura.
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Conto esse episódio pra exemplificar que ser roteirista se transformou numa profissão sem atrativos e que não permite grandes ambições. Os veteranos estão, até onde me chega, descontentes. Já os jovens estão animados, surfando no hype. Mas ganhando mal, empilhados às dezenas em salas de roteiro em que até o chefe tem pouca ou nenhuma autonomia para conduzir a história, num sistema em que hoje os pareceristas que decoraram regras de manual de roteiro têm mais poder sobre o produto final que as mentes criativas.
Hoje sei que a ideia da obliteração da autoria não é apenas para evitar que um autor exponha sua visão de mundo, é um projeto financeiro: acabando com a autoria, acaba-se com os direitos do autor por sua obra. Inclusive, os contratos vêm da matriz americana e são assinados sem respeitar as leis brasileiras de direitos autorais. É mais uma forma de uberizar o roteirista ao máximo, mas que mais cedo ou mais tarde chegará na Justiça.
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Não estou de todo pessimista porque acredito que o próximo governo não será inimigo da cultura e o cinema brasileiro voltará a abrigar essas mentes criativas. Um jovem roteirista terá oportunidade de ganhar um edital e decidir “esse ano não vou precisar entrar numa sala qualquer pra pagar boleto, vou fazer o filme da minha vida”. Se isso acontecer, vai ser bom pra todo mundo, inclusive para as plataformas de streaming, que terão produtos de audiovisual mais diversificados e criativos para licenciar e exibir.
Caso não, aí prevejo mesmo o colapso. Pois em breve os jovens que hoje estão abarrotando as salas de roteiro vão entender que, como roteiristas nesse sistema uberizado, não terão direito à ambição de conquistar nem a independência financeira, nem a realização artística. Previsão essa que não vem de bola de cristal, mas da História: quando o descontentamento é generalizado, se resolve ou na guilhotina, ou na greve." - João Ximenes Braga
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