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Betty Faria opina sobre obras fechadas: "A telenovela se faz com a cumplicidade do povo"

Atriz fala de Um Lugar ao Sol, comenta volta de Pecado Capital no Globoplay e revela que recusou convite recente para cinema por cenas de nudez e sexo


Aos 80 anos, Betty Faria posa para foto postada no Instagram
"As grandes novelas sempre foram feitas ouvindo o público”, afirma Betty Faria, aos 80 anos - Foto: Reprodução/Instagram
Por Walter Felix

Publicado em 31/01/2022 às 06:00,
atualizado em 31/01/2022 às 09:44

“Noveleira das antigas”, como ela mesma se define, Betty Faria esteve em algumas das produções que consolidaram o gênero no Brasil – entre elas, Pecado Capital (1975), que chega ao Globoplay nesta segunda-feira (31). A veterana relembra esse trabalho com o mesmo entusiasmo que comenta a atual trama das nove, Um Lugar ao Sol. Fã da história de Lícia Manzo, a atriz só lamenta que a atração seja uma obra fechada (ou seja, já está toda gravada enquanto vai ao ar). "A telenovela tradicional se faz com a cumplicidade do povo", defende, em entrevista exclusiva ao NaTelinha.

Em Pecado Capital, na pele da protagonista Lucinha, Betty Faria viu a autora Janete Clair (1925-1983) atender a um pedido do público. Na trama, a moça fica dividida entre o taxista Carlão (Francisco Cuoco) e o milionário Salviano Lisboa (Lima Duarte). “O povo preferia o Salviano, e foi com ele que a Lucinha ficou no final. Porque Janete escutava a opinião do povo! As grandes novelas sempre foram feitas ouvindo o público”, recorda a atriz.

Sucesso de audiência, Pecado Capital foi produzida às pressas porque a Censura Federal vetou a exibição de Roque Santeiro, de Dias Gomes – esta só seria levada ao ar em 1985, com o fim da ditadura militar. Todo o elenco da novela censurada foi reaproveitado na nova atração: Betty viveria a Viúva Porcina na sátira política e, escalada para dar vida a Lucinha no drama social assinado por Janete Clair, teve que compor um tipo totalmente diferente.

A atriz já afirmou que odiava Viúva Porcina, papel que coube a Regina Duarte na versão que foi ao ar 10 anos depois. “Eu sabia que era uma personagem que ia fazer sucesso, mas eu não tinha prazer nem orgulho de apresentar para o povo aquele tipo de mulher”, resume. Ela não esconde sua preferência por Lucinha, jovem honesta que, descoberta por um olheiro, torna-se modelo e ascende socialmente. Enquanto isso, seu namorado, Carlão, encontra uma mala de dinheiro em seu táxi e hesita em devolver a grana – evocando uma discussão sobre ética e honestidade.

Longe das novelas desde A Dona do Pedaço (2019), Betty tem recebido mais convites para o cinema. Estará em Sexa, dirigido e protagonizado pela amiga Glória Pires, e no próximo filme do cineasta Marco Dutra. Aos 80 anos, desistiu de outro projeto porque a diretora incluiu, de última hora, cenas de nudez, masturbação e sexo no roteiro. “Disseram que seria em nome da libertação da mulher. Ora, libertação foi o que eu fiz a vida inteira, brigando contra o machismo e não querendo dinheiro de homem.”

Leia a íntegra da entrevista com Betty Faria

NaTelinha: Que lugar a Lucinha de Pecado Capital ocupa entre tantas mulheres fortes a que você já deu vida?

Eu já tinha feito algumas novelas, mas a Lucinha foi minha primeira protagonista de grande sucesso. Era uma personagem que eu tinha prazer de mostrar para o público. Sempre adorei fazer mulheres do povo. Ela era do subúrbio, queria melhorar de vida pelo próprio merecimento. Achei que era uma personagem que poderia dar um bom exemplo de valores para as pessoas.

Hoje, enaltecem muito as vilãs, que são charmosas, engraçadas, mas são péssimas pessoas. As atrizes podem até gostar de fazer, mas como valor humano e moral, as vilãs são horrorosas.

Eu acreditava que uma personagem feito a Lucinha podia passar uma boa imagem e influenciar positivamente o povo brasileiro. Principalmente porque naquela época não tínhamos TV a cabo, e nossa audiência era absurda, de 80%. Hoje em dia, briga-se para ter 25 [no Ibope].

NT: Então você prefere as mocinhas, personagens mais éticas?

Não são nem as mocinhas… Tenho encantamento por pessoas bacanas. Não tenho encantamento por pessoas pérfidas. Também gosto de comunicar coisas boas para o povo. Hoje em dia, então, é o que mais o povo está precisando: de pessoas com valores morais, direitas… Porque está tudo tão feio!

NT: Pecado Capital foi produzida às pressas para substituir a primeira versão de Roque Santeiro, que foi vetada pela Censura Federal.

Nesse ponto, a gente deve muito ao Daniel Filho. Ele pegou uma história antiga da Janete Clair, foi para a casa dela e os dois modernizaram a trama. Em um mês, puseram para a gente gravar. Foi incrível, porque ele reaproveitou o elenco daquela novela que não pôde ir ao ar, com o objetivo de não deixar ninguém desempregado. E nos dirigiu muito bem, botou verdade, um tom popular… Tínhamos a cara do povo brasileiro. Fizemos um trabalho maravilhoso, com uma procura pelo gestual, o jeito de falar... Lucinha não acordava de batom nem cílio postiço.

Betty Faria opina sobre obras fechadas: \"A telenovela se faz com a cumplicidade do povo\"Betty Faria e Lima Duarte na versão de Roque Santeiro que não foi ao ar - Foto: Acervo Globo

NT: Em Roque Santeiro, você seria a Viúva Porcina, uma personagem igualmente forte, mas com personalidade bem diferente da Lucinha…

Fiz a Viúva Porcina por 30 capítulos. A Lucinha era uma moça de família, do povo, trabalhadora. A outra, não. Eram outros valores.

NT: No Conversa com Bial, você disse que odiava a Porcina. Acha que foi mais feliz fazendo a Lucinha?

Claro! (risos) Eu sabia que a Porcina era uma personagem que ia fazer sucesso, mas eu não tinha prazer nem orgulho de apresentar para o povo aquele tipo de mulher. E pior: eu estava com filho pequeno, de meses, então eu ia para a gravação sofrendo de deixar meu filho em casa para fazer aquela mulher. Você não vai entender como é isso nunca, porque você não pare (risos).

NT: A Lucinha vivia um triângulo amoroso com Carlão (Francisco Cuoco) e Salviano (Lima Duarte). Você torcia para que ela ficasse com algum deles?

Eu preferia o Carlão, claro! Com ele, era paixão, tesão. Tínhamos cenas muito engraçadas, cenas de amor fantásticas. Só que também foi nascendo um amor dedicado, companheiro, protetor do Salviano que ela nunca tinha experimentado na vida, enquanto o Carlão foi metendo os pés pelas mãos.

NT: O Carlão também era o preferido do público?

A novela foi um grande sucesso, então eu encontrava de tudo nas ruas. Um dia, eu estava na Praia de Ipanema, a novela já tinha acabado, e chegou uma moça do Sul que me disse: “Betty, eu também tive o meu Salviano na vida. Você me deu força!”. Lembro que fiquei frustrada, porque eu tinha medo que pensassem que aquele casamento teria sido por interesse, um golpe do baú. Mas o povo preferia o Salviano, e foi com ele que a Lucinha ficou no final. Porque Janete escutava a opinião do povo! As grandes novelas sempre foram feitas ouvindo o público.

NT: Neste ano, estamos vendo exatamente o oposto: as três novelas atualmente exibidas na Globo são obras fechadas, vão ao ar inteiramente gravadas, por conta da pandemia. Acredita que esse formato tem futuro na TV?

Estou assistindo a Um Lugar ao Sol. Acho a novela maravilhosa, mas tenho certeza que, se tivesse ido ao ar em uma época “normal”, sem pandemia, seria melhor ainda, com a possibilidade de ouvir o povo desde o início. É uma opinião minha, que sou noveleira das antigas. Você pode dizer “mas o streaming está aí”. Ok, mas a telenovela tradicional se faz com a cumplicidade do povo.

Sendo uma obra aberta, poderiam ser feitas diversas correções, como em figurinos, cabelos, o que não é possível em uma obra fechada. Quanto mais em uma pandemia, com mil testes para poder entrar no estúdio… O que as equipes dessas novelas têm feito é uma coisa heroica!

NT: Assim como Um Lugar ao Sol, Pecado Capital falava de temas como ética e honestidade. A abordagem dada em 1975 sobrevive na atualidade?

Esses valores de Pecado Capital, os valores de Janete Clair, são valores que o povo precisa e quer ver. O Brasil está muito machucado e quer ter o sonho e a esperança de que tudo vai melhorar. É também por isso que Shakespeare está aí até hoje: são coisas que ficam. A boa telenovela também fica, porque tem os valores morais, enaltecem o amor.

Nunca trabalhei com a Lícia Manzo [autora de Um Lugar ao Sol], mas acho o texto dela maravilhoso! E ela também é bem Janete Clair! A história do Santiago (José de Abreu) com a Érica (Fernanda de Freitas) tem tudo a ver com a do Salviano e da Lucinha. A personagem da Andreia Horta (Lara) é uma mocinha tradicional, porque é direita, tem valores morais... E a Andreia está fazendo muito bem!

Betty Faria opina sobre obras fechadas: \"A telenovela se faz com a cumplicidade do povo\"Betty Faria e Francisco Cuoco como Lucinha e Carlão em Pecado Capital - Foto: Acervo Globo

NT: O Brasil de 2022 ainda se enxergaria em Carlão e Lucinha?

Vamos pensar… O Carlão estaria hoje, na pandemia, em um Uber ou em um táxi amarelinho? E a Lucinha continuaria ralando nos trens, querendo melhorar de vida? Claro! Quantos deles ainda não existem por aí!? Quantas moças do subúrbio são descobertas por olheiros, vão desfilar na Chanel em Paris e encontram um Salviano...

NT: Consegue sugerir uma atriz que poderia dar vida a essa personagem que já foi sua?

Ah, tenho que pensar! É uma protagonista de cabo a rabo. Temos tantas jovens atrizes que estudaram teatro, têm um berço de estudo na arte da interpretação… Uma nova Lucinha precisaria ter o chamado physique du roule [físico necessário para o papel]. Deve saber fazer tanto a personagem popular quanto a rica, bonitona. Também não pode ficar chorando com essas lágrimas de crocodilo, porque mulher do povo grita, faz escândalo, pede justiça, mas não chora o tempo todo.

NT: Conte como têm sido seus dias. Está sendo possível tocar algum projeto com essa nova onda da Covid-19?

Estou querendo fazer uma velhinha, e ninguém me dá uma velhinha! Alguém me dá uma coroa engraçada! (risos)

Sabe o que eu fiz nessa pandemia? Era um projeto de vida, uma coisa que sempre quis: estudei espanhol on-line. Também tenho tido alguns convites para fazer cinema, mas por enquanto nada me bateu apaixonadamente. Estou assim: quero fazer coisas pelas quais eu me apaixone, senão eu fico esperando a pandemia passar para ir viajar, aproveitar a vida.

NT: O que pode nos contar sobre esses convites para o cinema?

Minha amiga Glória Pires vai dirigir um filme [“Sexa”, sobre uma mulher de 60 anos com vida sexual ativa e medo de envelhecer], e eu faço questão de fazer uma participação afetiva. Também aceitei o convite para o novo filme do Marco Dutra, diretor de As Boas Maneiras, que terá Marjorie Estiano e Selton Mello no elenco.

Teve outro filme que eu quase fiz, mas, uma semana antes de assinar o contrato, a diretora colocou três cenas de sexo, duas de masturbação e duas de nu frontal. Eu pensei: “Bom, ela quer fazer a pornô velha!”. Pulei fora! Era um filme bonitinho, mas resolveram apelar. Minha neta faz faculdade de cinema e entraria como segunda assistente de direção. Já pensou? “Espera aí que vovó vai fazer uma cena fodendo.”

Olha as coisas que a gente passa, a essa altura da vida! (risos) Disseram que seria em nome da libertação da mulher. Ora, libertação foi o que eu fiz a vida inteira, brigando contra o machismo e não querendo dinheiro de homem.

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