No regime militar

Há 45 anos, travesti foi cortada de novela e acusada de enganar a direção da Globo

Claudia Celeste interpretava uma corista em Espelho Mágico (1977)


Claudia Celeste de vestido branco, usando faixa dourada, de cabelos soltos, sentada em cadeira
Claudia Celeste quando foi eleita Miss Brasil Gay, em 1976 - Divulgação
Por Jéssica Alexandrino

Publicado em 14/06/2022 às 04:00,
atualizado em 14/06/2022 às 08:28

Em 14 de junho de 1977, Espelho Mágico, trama de Lauro César Muniz, estreou na Globo. A novela abordava o cotidiano de profissionais da área de Comunicação, como atores, diretores e jornalistas, e as histórias eram contadas por meio dos bastidores de Coquetel de Amor, uma produção inserida no folhetim. A novela não caiu nas graças do público e uma polêmica com uma das atrizes do elenco rendeu mais do que os conflitos apresentados na TV.

Claudia Celeste (1952-2018) foi eleita Miss Brasil Trans, na época chamado de Miss Brasil Gay, em 1976. No mesmo ano, participou da peça O Mundo É das Bonecas e chamou a atenção de Daniel Filho, diretor de Espelho Mágico, que gostou do número e a chamou para participar da trama sem saber que ela era travesti. Na história, a atriz interpretava uma corista do teatro de revista de Carijó (Lima Duarte) e ensinava coreografias para a personagem de Sônia Braga.

Aos olhos da emissora e dos telespectadores, tudo ia bem, mas o regime militar proibia a aparição de travestis e transexuais na televisão. Quando a informação de que Claudia era uma travesti veio à tona, a artista estampou diversas capas de jornais por, supostamente, ter enganado a direção da Globo, e deixou o elenco da trama. "Claudia, (ou melhor Claudio), o travesti que enganou todo mundo", dizia a Manchete do Gazeta de Notícias, em edição de 8 de agosto de 1977.

"A maioria das pessoas que trabalha na Rede Globo não sabia de nada. Nem sequer se podia imaginar que aquela mulher interpretando, na novela Espelho Mágico, a corista que ensinava Sônia Braga os primeiros passos no palco, fosse travesti. Ninguém sabia, nem deveria saber, porque existe uma proibição da Censura Federal", noticiava a reportagem, que ainda destacava o fato de Claudia não saber como tudo havia sido descoberto.

Já em 2013, em entrevista à revista Geni, a atriz contou melhor a história e disse que, gravados alguns capítulos, o jornal Correio de Copacabana publicou uma matéria na coluna "Guei" e a polêmica foi instaurada. No dia seguinte, a imprensa foi para a porta do teatro no qual Claudia se apresentava. "Por que a Rogéria, a Valéria, não podem fazer televisão, e a Claudia Celeste pode? Qual foi o critério que a censura usou pra deixar a Claudia Celeste, e não a Rogéria? Porque a Rogéria já era famosa na época. Aí saiu em tudo quanto era revista. Antes, ninguém sabia que eu era travesti, nem Daniel Filho. Ninguém nunca me perguntou! E, como ficou muito ti-ti-ti, tiraram os capítulos que eu já tinha feito", lembrou ela.

Claudia Celeste foi a primeira travesti a participar de uma novela completa

Há 45 anos, travesti foi cortada de novela e acusada de enganar a direção da Globo
Claudia Celeste quando trabalhou como modelo - Reprodução

Na época do ocorrido com Espelho Mágico, Claudia Celeste disse que não se deixou abater pelo que aconteceu, recebeu o cachê pelos dias trabalhados e encarou tudo de forma profissional. Anos depois, com o fim da ditadura, ela integrou o elenco de Olho por Olho (1988-1989), da extinta TV Manchete, e se tornou a primeira travesti a participar de uma novela inteira. A equipe da produção queria uma atriz travesti para o papel de Dinorá e a carioca levou a melhor em uma disputa com outras 150 artistas.

"Foram 130 e poucos capítulos e fiz a novela praticamente de cabo a rabo. Todos os dias tinha uma cena comigo, com texto e até musical. Como o José [Louzeiro (1932-2017), autor da trama] sabia que eu tinha um trabalho nos palcos, aproveitou muito bem na novela. Aliás, ele sempre perguntava a opinião sobre o texto, se estava muito longe da realidade, se estava em disparate com a Dinorá. Trabalhei com Beth Goulart, Mario Gomes e todos foram legais, me trataram sempre com respeito. Depois da Dinorá, nunca mais fizeram nada parecido como este papel. Até hoje travesti só faz ponta na tevê", pontuou, em entrevista ao O Fuxico, em 2013.

Depois de Olho por Olho, Claudia foi morar na Europa com o marido e fez diversos espetáculos na França, Alemanha e Espanha. De acordo com a atriz, quando voltou ao Brasil, já haviam se passado muitos anos e ela perdeu o contato de todos que podiam fazer uma ponte para seu retorno à TV. A atriz morreu no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 2018, por complicações de uma pneumonia.


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