Fernanda Torres detalha adaptação de Fim e diz que série do Globoplay é "um milagre"
Autora conta que o fortalecimento do feminismo foi o que mais implicou mudanças do livro de 2013 para o seriado que estreou nesta semana
Publicado em 27/10/2023 às 04:44
Há 10 anos, Fernanda Torres estreou na literatura com Fim, romance sobre a trajetória e os momentos derradeiros da vida de cinco amigos. A história virou série, que chegou nesta semana ao Globoplay. As gravações começaram em 2020 e foram interrompidas pela pandemia da Covid-19, elevando os custos da produção. "É mesmo um milagre que o Fim tenha chegado ao fim", brinca a criadora, nesta entrevista exclusiva ao NaTelinha.
Ambientada no Rio de Janeiro entre 1968 e 2012, Fim acompanha Ciro (Fábio Assunção), Ribeiro (Emilio Dantas), Sílvio (Bruno Mazzeo), Álvaro (Thelmo Fernandes) e Neto (David Júnior), amigos atropelados por amores, desamores e pela revolução de costumes dos anos 1970. As trajetórias se refletem, ou se contrastam, na hora da morte de cada um.
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Fernanda Torres adaptou, com supervisão de Maria Camargo, o próprio livro para a série em 10 episódios, divulgados de dois em dois às quartas-feiras. O mote desenvolvido em 2013 foi mantido. "A morte continua a mesma, mesmo depois da pandemia", acredita a autora. "A maior mudança que senti foi a do fortalecimento do novo movimento feminista, nesses últimos anos. Algo que estava engatinhando, quando publiquei o Fim.”
Nas páginas, definidas pela autora como um “epitáfio da geração de machos alfa” dos anos 1950, os homens conduzem a narrativa. Na tela, ganham destaque Irene (Débora Falabella), Ruth (Marjorie Estiano) e outras mulheres. "Foi preciso incluir o lado delas, a experiência feminina, como contraponto ao machismo", explica Fernanda.
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A escrita para personagens masculinos foi uma consequência, segundo ela. "Quando arrisquei escrever ficção, todas as vezes que eu falava na pele de uma mulher, não conseguia fugir do fato de que era eu mesma falando", aponta. O público que a acompanha pela TV fatalmente a reconheceria nas linhas. "Quando me pus na pele de um homem, me senti livre para ser outro. A voz masculina me libertou de mim mesma."
A série, dirigida pelo marido Andrucha Waddington, também se tornou um encontro entre amigos. É "TV de grupo", aos moldes do teatro. "Esse é o trabalho de uma geração de amigos, nisso, o Fim da tela reflete o Fim por trás das câmeras". E Fernanda Torres também está no elenco: "Faço uma participação pequena, e nem sei se estou muito bem. É muito estranho fazer o que se escreve", compartilha.
Lá se vão seis anos de seu segundo romance, A Glória e Seu Cortejo de Horrores. Recentemente, a literatura ficou em segundo plano na vida da artista. "Eu não sei se foi o combo da pandemia com o último desgoverno, mas minha sensação era a de que nada do que eu intuía chegava nem aos pés do assombro da realidade", diz. "O país também saiu daquela depressão, acho que, com o tempo, volto a morder um livro, mas não creio que seja agora."
Leia, na íntegra, a entrevista com Fernanda Torres
NaTelinha: Quando escreveu e lançou Fim, há 10 anos, já imaginava que o livro poderia chegar ao audiovisual?
Fernanda Torres: Eu, na verdade, escrevi o Fim como alternativa à minha vida de atriz. Comecei a escrever na Piauí, na Folha e na Veja Rio, crônicas e artigos, quando veio o convite de criar um conto sobre a terceira idade, para um projeto do Fernando Meirelles, em parceria com a Cia das Letras. Era um projeto de reunir diferentes autores em torno do tema, em histórias que, mais tarde, seriam adaptadas para uma série de televisão. Mas jamais pensei na série, tentei mesmo dar conta da escrita, que acabou vingando no livro. Só imaginei em transpô-la para a televisão uns cinco anos depois da obra vingar nas livrarias.
Apresentei a ideia para o José Luiz Villamarim, antes dele assumir a dramaturgia na TV Globo, e foi dado o greenlight para o desenvolvimento. Nesse meio tempo, o José virou executivo e a Globo me sugeriu o Andrucha, por conta da parceria no Sob Pressão. Dez anos se passaram, entre a publicação do Fim e a estreia da série, e devo muito ao Erick Bretas, do Globoplay, o empenho de pô-lo no ar pois, com dez dias de filmagem, interrompemos os trabalhos por causa da pandemia, o que elevou os custos e quase fez o Fim ir para as cucuias, depois da volta à normalidade. É mesmo um milagre que o Fim tenha chegado ao fim.
NaTelinha: Acredita que a história adquiriu um novo significado após uma década? Falar da vida e da finitude tem outro sentido depois de uma pandemia?
Fernanda Torres: A maior mudança que senti foi a do fortalecimento do novo movimento feminista, nesses últimos anos. Algo que estava engatinhando, quando publiquei o Fim. O livro é o epitáfio da geração de machos alfa que caminhou sobre a Terra entre os anos 1950 e 2000. A morte continua a mesma, mesmo depois da pandemia, mas a necessidade que tive de desenvolver os personagens femininos na adaptação para a televisão é fruto da mudança do tempo. Foi preciso incluir o lado delas, a experiência feminina, como contraponto ao machismo descrito no livro.
O Fim, filmado e escrito, é uma reflexão afetiva sobre a tragédia do machismo nessa geração, sobre o nascimento das mudanças numa sociedade que, pela primeira vez, teve direito ao divórcio, e que viu os papéis de marido, pai, mãe e esposa serem postos em xeque. Foi uma geração atravessada pela revolução de costumes, uma geração que foi agente e vítima dessas mudanças. Do dia para a noite, o casamento e os filhos já não eram suficientes para dar sentido aos casais. Na adaptação para a TV, com as mulheres mais presentes, isso ficou ainda mais claro, acho.
NaTelinha: Quais foram as adaptações necessárias para transpor os personagens do livro para os episódios da série? Houve alguma mudança significativa?
Fernanda Torres: Eu gostava muito da estrutura do livro e achava que ela caberia na adaptação para a TV, mas a Maria Camargo, que supervisionou a série, me sugeriu a estrutura em dois tempos, passado e presente, caminhando juntos. Isso trouxe a riqueza de ver o casal ideal, no passado, rompido, no futuro; o casal improvável do passado, ainda unido no futuro, criando uma curiosidade no espectador, que se pergunta como uma coisa deu na outra.
A Maria também me sugeriu a falha trágica do personagem do Ciro, vivido pelo Fábio Assunção. No livro, a crise dele no casamento era subjetiva, não havia um fato concreto, mas o folhetim rodrigueano exigia concretude, e acatei a sugestão da minha supervisora.
No mais, foi um “embaralha e dá de novo”, com as reflexões pessoais do livro se transformando em diálogos. O Fim da literatura trata dos cinco minutos finais da vida de cinco amigos e o pensamento, em primeira pessoa, de cada um deles, antes de partir desta para a melhor. Na série, esse mundo interior virou diálogo, que eu acho que é um dos pontos altos da série, a riqueza dos diálogos, o humor, a ferocidade.
“O Fim filmado é fiel ao livro, no sentido de que manteve os acontecimentos, a melancolia e o humor da literatura, mas tem um caráter bem mais folhetinesco do que a obra impressa. O meio muda a mensagem.”
Fernanda Torres
NaTelinha: Você também faz uma participação na série.
Fernanda Torres: Faço uma participação pequena, e nem sei se estou muito bem. É muito estranho fazer o que se escreve. A bola não está comigo, é mais uma participação afetiva. Faço a Celeste, a irmã do Ribeiro, vivido pelo Emílio Dantas. Um homem que, na definição precisa dele, é uma desgraça de personagem [um solteirão convicto apaixonado pela esposa de um dos amigos].
NaTelinha: A série é dirigida pelo seu marido, Andrucha Waddington, e essa não foi a primeira vez que vocês trabalharam juntos. Como foi a parceria desta vez?
Fernanda Torres: Mais do que um trabalho com o Andrucha, esse é o trabalho de uma geração de amigos, nisso, o Fim da tela reflete o Fim por trás das câmeras. Além do Andrucha, tem a Daniela Thomas, minha parceira de teatro e de cinema, a quem conheço desde a infância. E tem o Bruno Mazzeo, meu irmão de profissão, nós dois filhos de dois monstros de atores; o Bruno, a quem eu devo a Maria Teresa do Filhos da Pátria [seriado criado pelo humorista e exibido entre 2017 e 2018] e que um dia me chamou para um café, queria desenvolver algo comigo e acabamos numa parceria mais do que profícua.
E tem a Marjorie, que trabalhou com o Andrucha durante cinco anos de Sob Pressão e que virou uma parceira de vida dele; a Heloisa Jorge, a mesma coisa. E tem o Fabio, meu companheiro de Tapas e Beijos, e o Thelmo, e a Laila, e o Davi, o Emílio e a Débora que, depois do Fim, viraram família. E o Ary Fontoura, com quem fiz Rei Lear, na minha estreia em teatro.
O Andrucha é uma das profundas parcerias dessa série, que misturam anos de trabalho e convivência. É TV de grupo, como existe teatro de grupo. É uma companhia teatral de atores, diretores e também fotógrafos, sonoplastas, cenógrafos, figurinistas, continuístas... diz aí. Amor e amizade, e quem há de negar que esta lhe é superior.
NaTelinha: Assim como em seu segundo romance, os homens são os protagonistas de Fim. Há uma predileção sua por personagens masculinos?
Fernanda Torres: Quando arrisquei escrever ficção, todas as vezes que eu falava na pele de uma mulher, não conseguia fugir do fato de que era eu mesma falando. E como sou conhecida como atriz, minha sensação era a de que o leitor jamais descolaria a imagem que tem de mim, da voz narrativa da literatura. Quando me pus na pele de um homem, me senti livre para ser outro. A voz masculina me libertou de mim mesma.
"Não foi um fato pensado, calculado, aconteceu assim. Um dos grandes prazeres da arte é experimentar estar na pele de alguém que não é você. Acho que vem daí a minha tendência a escrever com voz grossa. Mas isso cria algo interessante na série."
Fernanda Torres
Um amigo, depois de assistir aos dois primeiros capítulos, me disse que saiu com uma sensação estranha. Há um machismo declarado no Fim, e nesse livre machismo, uma reflexão sobre o quanto aquilo é insuportável. Esse amigo me disse que, se um homem tivesse escrito o Fim, a série e o livro seriam grosseiras, mas como se trata de uma autora mulher, esses homens são atravessados por um romantismo melancólico, por uma sensação de falência. É uma crítica afetiva ao macho declarado, não é denúncia, é uma reflexão afetiva sobre o quanto o machismo é trágico, tanto para a mulher, quanto para o homem.
NaTelinha: Você é cria da TV, está no veículo desde muito nova. Qual sua relação com as plataformas de streaming, como atriz e autora e como espectadora?
Fernanda Torres: O streaming abriu o mercado de audiovisual, e o fragmentou, também. É muito mais difícil atingir o público como um todo. Você chega a uma fatia ou outra da sociedade, mas é raro alguém dar 100% de audiência. Assim como não existe mais “O” jornal, “A” televisão, “A” opinião pública, é cada vez mais difícil atingir “O” público.
“Hoje, existem mais lugares para se desenvolver uma série, um podcast, um documentário, isso é muito benéfico, mas é cada vez mais difícil vencer a bolha da qual você faz parte.”
Fernanda Torres
É um sinal dos tempos, mas, para mim, que acabei existindo em muitas mídias – o streaming e os aplicativos de áudio, os memes das redes sociais, o teatro, a TV aberta, o cinema, a literatura, os jornais –, todas essas janelas se transformaram em oportunidades de fazer vingar ideias.
NaTelinha: Depois de Fim, você lançou A Glória e Seu Cortejo de Horrores, há 6 anos. Pode nos adiantar se há mais romances vindo por aí?
Fernanda Torres: Um romance leva 4 anos, em média, para chegar a ser publicado. Isso se você conseguir chegar lá. Eu não sei se foi o combo da pandemia com o último desgoverno, mas minha sensação era a de que nada do que eu intuía chegava nem aos pés do assombro da realidade. Tenho vários inícios de livros no computador, mas nenhum vingou, estão lá, um dia virarão alguma coisa. E como eu ataco em muitas frentes, uma acaba se sobressaindo às outras, sem que eu tenha muito controle.
Agora, por exemplo, estou há um ano envolvida com o filme do Walter Salles sobre a Eunice Paiva, baseado no livro do Marcelo Paiva, Ainda Estou Aqui. Há tempos não fazia um filme assim, um personagem como esse. A Eunice tomou minha vida de assalto nos últimos doze meses, parei de escrever colunas, parei de escrever, de ler, foi dedicação total. Eu nem me lembrava do quanto eu tinha saudade de estar num set de filmagem dessa maneira, achei que nunca mais me aconteceria.
Nos últimos dois anos, fora o filme, desenvolvi uma série que há muito queria escrever, e agora está sendo negociada pela Conspiração; ano passado, voltei a entrevistar, numa joia de um Podcast da Deezer, chamado A Playlist da Minha Vida, como havia feito num programa pouco visto, o Minha Estupidez; tenho um roteiro de cinema na gaveta para desenvolver, uma peça de teatro; tem muita gente que nem era nascida, quando eu estreei Os Budas [a peça A Casa dos Budas Ditosos], pedindo para eu voltar a fazer turnê. O país também saiu daquela depressão, acho que, com o tempo, volto a morder um livro, mas não creio que seja agora.