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Série da Globo sobre ditadura gerou mal-estar, diz Bete Mendes

Atriz, que foi presa e torturada no regime militar, relembra experiência em Anos Rebeldes, clássico que completa 30 anos neste mês

Em Anos Rebeldes, Bete Mendes interpretou Carmem, mãe da protagonista Maria Lúcia, vivida por Malu Mader - Foto: Reprodução/Acervo Globo
Por Walter Felix

Publicado em 20/07/2022 às 04:00:00,
atualizado em 20/07/2022 às 07:09:28

Bete Mendes viveu os Anos Rebeldes para além da clássica minissérie que completa 30 anos neste mês. Se, na trama da Globo, a atriz deu vida a uma dona de casa que pouco se envolvia na luta contra a ditadura militar, na vida real sua experiência se aproximou à dos protagonistas da história. Tanto que, na época das gravações, ela compartilhou com o elenco suas vivências, da militância de esquerda às sessões de tortura.

Nesta entrevista ao NaTelinha, Bete Mendes fala sobre a importância de Anos Rebeldes, exibida entre julho e agosto de 1992. Foi a primeira vez que a teledramaturgia tratou abertamente sobre as agruras do regime militar no Brasil, que perdurou de 1964 a 1985. Também marcou uma mudança de posicionamento da própria Globo, que, décadas antes da minissérie, havia apoiado a ditadura.

Parte do público favorável aos Anos de Chumbo já fazia barulho àquela época, segundo a atriz. “As pesquisas revelavam um certo mal-estar, como se aquele fosse um programa que não deveria ser levado ao ar. Era a resposta que vinha de um segmento mais conservador da população. Só que, de um modo geral, a recepção do público foi maravilhosa”, recorda.

Em 1992, os versos de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, tema de abertura da minissérie, foram entoados pelos caras-pintadas, que pediam o impeachment do então presidente Fernando Collor. No meio de um dos protestos, ficou famosa a imagem feita pela fotógrafa Luciana Whitaker com a inscrição “Anos Rebeldes, Próximo Capítulo: Fora Collor! Impeachment já!”.

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A trama de Gilberto Braga (1945-2021) era sobre o envolvimento de jovens estudantes, em meados dos anos 1960, no combate à repressão. A individualista Maria Lúcia (Malu Mader) vive em conflito com o idealista João Alfredo (Cássio Gabus Mendes), e as idas e vindas do casal é marcada pela militância política do rapaz. Outra personagem marcante é Heloísa (Cláudia Abreu), jovem da classe alta que adere à luta armada.

“Acho que é sempre importante a televisão contar a nossa história. A minissérie cumpriu esse papel de mostrar um período da história do Brasil que era omitido”, destaca Bete Mendes, cujas trajetórias artística e política se confundem. Em 1970, ela foi presa e torturada. Anos depois, tornou-se deputada federal e reconheceu como seu torturador o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que negou a acusação.

Hoje, a atriz faz críticas ao presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL (Partido Liberal), e apoia Lula, pré-candidato pelo PT (Partido dos Trabalhos), do qual a artista foi cofundadora. Aos 73 anos, ela não hesita em relembrar os traumas da juventude. “Hoje, falar disso é também sofrer, porque nós – e muitos de nós já se foram – lutamos por uma democracia que hoje está novamente sob ameaça.”

Leia a íntegra da entrevista com Bete Mendes

NT: O que Anos Rebeldes significou para o Brasil há 30 anos?

Bete Mendes: Acho que é sempre importante a televisão contar a nossa história. A minissérie cumpriu esse papel de mostrar um período da história do Brasil que era omitido. Como Anos Rebeldes, outros trabalhos na TV não mostram só a nossa riqueza cultural como também trazem informação para todos que assistem.

NT: A senhora estava entre os nomes do elenco que viveram na época da ditadura e lutaram contra o regime militar. Como foi a troca com os outros atores?

Bete Mendes: Achei muito importante poder participar da minissérie. O Dennis Carvalho [diretor] pediu que eu fizesse reuniões com o elenco para passar um pouco da minha experiência e do que eu vivenciei naqueles anos terríveis. Afora Geraldo Del Rey (1930-1993), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e alguns atores que tinham mais idade, os mais jovens não tinham ideia do que foram os anos 1970 na época mais terrível que havíamos vivido.

Na época, conversei muito com esses atores e percebi o quanto havia falta de informações não apenas literárias, mas jornalísticas e de pesquisa para aqueles jovens.

NT: Acredita que essa desinformação sobre o período tenha mudado nos últimos 30 anos?

Bete Mendes: Não sei te dizer. Temos falhas graves na nossa liberdade democrática. Nossa educação sofreu muitas mudanças em vários períodos, inclusive na época tratada pela minissérie. Acho que tudo isso criou graves problemas de conhecimento e de identificação da nossa história, da realidade brasileira e da nossa identidade propriamente.

De lá para cá, houve muitas evoluções, mas estamos lamentavelmente em um outro período absolutamente autoritário, em que está se proibindo difundir, debater, conversar e colocar as ideais. Não sei se as gerações desses 30 anos tiveram a oportunidade de conhecer melhor a nossa história ou se continuam a ter uma informação fragmentada ou, muitas vezes, nenhuma informação.

Tenho visto, claro, e acho maravilhoso, manifestações de jovens, que estão com a intenção de conhecer melhor as coisas, de estar mais presentes e rebater o autoritarismo que está dominando o país. Acho isso muito positivo. Mas, propriamente na questão do que nós vivemos nesses chamados “anos rebeldes”, ainda tenho dúvidas se há uma informação mais difundida e conhecida por toda a população.

NT: Carmem, a sua personagem, tinha uma postura bem diferente da sua. Ela era casada com um militante de esquerda, mas não chegava a participar da luta contra a ditadura. Como a senhora encarava esse papel?

Bete Mendes: Quando compomos um personagem, construímos física, espiritual, afetiva e inteligentemente. De fato, a personagem era uma dona de casa que não tinha um envolvimento direto [com a luta armada]. Era apenas uma pessoa maternal, amorosa. Foi ótimo para mim, como atriz, justamente porque aquela não era a minha vivência.

NT: Anos Rebeldes também marcou uma mudança de posicionamento da Globo. Anos antes, o Grupo Globo havia apoiado a ditadura, como inclusive já assumiu publicamente. A minissérie redimiu a emissora, de alguma forma?

Bete Mendes: Não acho que seja uma questão de redenção, mas de objetividade empresarial. A Globo é uma empresa fortíssima, com qualidades técnicas, de produção e equipamento humano maravilhosos, e que precisa estar atenta à realidade e a como ela traduz essa realidade.

Aliás, falta em todas as emissoras, que são concessões públicas, mostrar melhor, tanto no jornalismo como na ficção, aquilo que a gente vive.

NT: Em 2017, a Globo fez Os Dias Eram Assim, outra série sobre a ditadura militar no Brasil, e houve ataques por parte de pessoas que defendem o golpe de 1964. Na época de Anos Rebeldes, já havia esse movimento de revisionismo do regime militar?

Bete Mendes: Tenho visto que a formação da nossa sociedade brasileira é conservadora, racista, discriminatória e homofóbica. Temos toda uma realidade proposta e formada que não vem só da educação, mas também dos próprios meios de comunicação. Acho interessante a Globo ter colocado essas duas séries no ar porque a televisão tem a função de informar e também fazer espetáculos para a cultura do país. Temos uma posição da mídia que é consoante com esse conservadorismo.

Com Anos Rebeldes, houve um mal-estar em algumas situações. Mesmo eu não tendo tido exemplos concretos de resistência ou de grupos formados contra, sei que havia um ressentimento quanto à minissérie. Com Os Dias Eram Assim, houve mais uma prova disso, com uma reação violenta.

Isso é algo muito ruim, porque todo país deve ter sua história contada no melhor e no pior dela, até para a própria identidade e conhecimento da nossa realidade. Por meio da arte, podemos fazer muitas reflexões sobre a nossa identidade e a nossa história. Aqui, infelizmente, ainda existe uma resistência quanto a isso.

NT: O ressentimento citado pela senhora era percebido nos bastidores da Globo ou com o público?

Bete Mendes: Com o público. As pesquisas revelavam um certo mal-estar, como se aquele fosse um programa que não deveria ser levado ao ar. Era a resposta que vinha de um segmento mais conservador da população. Só que, de um modo geral, a recepção do público foi maravilhosa. Na época, fui a alguns debates no Colégio Pedro II [tradicional no Rio de Janeiro e onde a história dos protagonistas tem início] para falar sobre a minissérie.

NT: Como avalia os defensores da ditadura militar em 2022?

Bete Mendes: Esses valores conservadores são muito mais aprofundados no segmento populacional brasileiro do que a gente imagina. Não temos uma formação com aquela ideia de que “somos todos iguais”. Nossa realidade não é assim. É um movimento que está recrudescendo, em muito estimulado pelo governo atual [de Jair Bolsonaro].

Em vez de termos um governo que estimula a educação, a pesquisa, a ciência e a tecnologia, a cultura e a saúde, há a propaganda e a disseminação de sentimentos violentos de uns contra os outros. Não quero dizer também que o governo seja o único responsável. Existe esse sedimento conservador da nossa sociedade, mas ele vem sendo muito estimulado por esse governo.

NT: Estamos falando sobre um período difícil da história do Brasil e também da sua história de vida. É doloroso acessar essas memórias e reviver esses traumas?

Bete Mendes: O trauma sempre fica, mas acho da maior importância falar sobre esse assunto, até para esclarecer e contribuir para o conhecimento das pessoas sobre uma época que foi terrível. Aquele foi um período muito duro para mim e para milhões de brasileiros.

Hoje, falar disso é também sofrer, porque nós – e muitos de nós já se foram – lutamos por uma democracia que hoje está novamente sob ameaça.

Quero deixar claro o que muitos livros, matérias jornalísticas e pessoas que sofreram como eu já revelaram: nós tivemos um dos piores momentos das nossas vidas e é por isso que hoje queremos que a democracia, tão duramente conquistada, volte a ser matéria principal da sociedade brasileira. Estamos em um período autoritário, de negação da democracia.

NT: Qual a sua expectativa para as eleições em outubro?

Bete Mendes: Quero que a democracia vença. Que vença o meu candidato à presidência da República, que é o campeão nas pesquisas [Lula, pré-candidato pelo PT], e que os progressistas sejam eleitos em maioria como deputados federais, estaduais, senadores e governadores em todos os estados.

É muito difícil esse embate, até porque estamos vendo uma instrumentalização, pelo governo, de setores que são absolutamente fora da alçada da presidência – como as próprias eleições e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Torço muito e tenho esperança para que a gente saia desse momento e volte à democracia.

NT: Conte como tem sido seus dias atualmente. Há projetos na TV, teatro ou cinema?

Bete Mendes: Tive uma experiência adorável há 15 dias, convidada por um jovem diretor e roteirista, Diego dos Anjos, para fazer um curta-metragem, Esta Noite Seremos Felizes. Contraceno com o Othon Bastos com muita alegria, porque nunca tinha trabalhado com ele. Era uma equipe jovem, com muitas ideias, disciplina e organização. Também tenho uma proposta de um longa-metragem que ainda está em andamento. Por enquanto, nada na TV ou no teatro.

Atualmente, tenho militado como cidadã, indo a todos os encontros, comícios e reuniões que posso para defender a cultura, a democracia e o nosso direito democrático, presente na Constituição Brasileira. Participo de vários grupos, mas o principal deles é o Movimento Humanos Direitos, em companhia da Dira Paes, do Padre Ricardo Rezende, e de outros amigos e companheiros na defesa dos direitos humanos.

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