Há 30 anos, série sobre HIV/Aids enfrentou resistência na Globo e recusa de atores
Jayme Periard deu vida a Léo, personagem que se descobre soropositivo em O Portador, uma das primeiras produções no mundo a falar do tema
Publicado em 01/12/2021 às 05:05
O Dia Mundial de Combate à Aids, celebrado nesta quarta-feira, 1º de dezembro, busca propagar informações sobre uma doença que ainda é tabu. Há 30 anos, a Globo inovou ao levar ao ar a minissérie O Portador, com um protagonista que descobre ser HIV positivo. Intérprete do personagem, o ator Jayme Periard revela que houve um medo, nos bastidores da emissora, em abordar o assunto. Ele lembra ainda da recusa de outros atores ao serem convidados para o trabalho.
“Foi uma minissérie muito difícil, que sofreu resistência dentro da própria Globo e acabou engavetada por um bom tempo”, revela Jayme Periard, em entrevista exclusiva ao NaTelinha. O artista acredita que O Portador tenha sido a primeira obra audiovisual sobre HIV/Aids em todo o mundo, bem antes de Tom Hanks dar vida a um advogado soropositivo no filme Filadélfia (1993), papel que lhe rendeu o Oscar.
A história era sobre Léo, um boa-praça que contrai HIV ao passar por uma transfusão de sangue após acidente aéreo. Com a descoberta, precisa lidar com o preconceito de amigos e colegas de trabalho, os conflitos com a ex-namorada Marlene (Dedina Bernadelli) e também com novos interesses amorosos. Também inicia uma jornada para descobrir qual dos outros passageiros do avião, sem saber, também está com o vírus.
“Era uma série de 24 capítulos, mas foi reduzida. A Globo queria com quatro, mas o Herval [Rossano, diretor], que desenvolveu a minissérie junto com o José Antônio de Souza [roteirista], conseguiu fazer em oito. Foi uma briga grande, porque era um tema muito difícil de ser abordado na época, com pouquíssima informação. Também vivíamos um momento de muita dor, com muitas pessoas morrendo e sendo infectadas.”
A produção começou em meados de 1990, mas O Portador só foi ao ar em setembro do ano seguinte. O tema de abertura, O Tempo Não Para, era uma homenagem ao cantor, compositor e poeta Cazuza (1958-1990), um dos vários talentos perdidos no Brasil em decorrência da doença naquela época. A canção foi regravada por Arnaldo Brandão, do grupo Hanoi Hanoi, outro criador da letra.
Por medo de estigma, atores recusaram papel que foi de Jayme Periard em O Portador
Jayme Periard conta que foi convidado pelo diretor Herval Rossano (1935-2007) assim que este teve a ideia da minissérie. “Aceitei na mesma hora. Sabia da responsabilidade, mas não podia imaginar o tanto de emoção e dificuldade que enfrentaríamos na realização”, recorda. Antes de conseguir dar vida ao personagem central de O Portador, houve um percalço.
“Logo depois do convite, a Globo disse que queria outro ator, que estivesse mais em evidência e fosse mais experiente. O Herval me avisou e aceitei, obviamente, não tinha o que contestar, mas disse a ele que aquele personagem seria meu. Pouco depois, ele me ligou novamente informando que alguns atores haviam recusado, com medo do estigma, e o Léo retornou para mim.”
O ator diz que a minissérie inovou não só pelo tema, mas pela abordagem. “A ideia era muito importante, porque tirava aquele erro brutal de colocar a Aids como uma doença gay, um problema de um grupo de pessoas”, pontua.
Uma trama paralela mostrava o drama de Aurélio (Edwin Luisi), cujo namorado estava em estágio terminal. Mas, ao final do enredo, quem doou sangue para o protagonista foi Alfredão (Jonas Mello), que contraiu HIV em uma relação heterossexual. No desfecho, a mensagem era de esperança: Léo fica com Marlene e faz um discurso exaltando a vida.
“Lamento que, na época e até hoje, O Portador tenha sido renegada pela Globo”, diz ator
Periard conta que, pelo momento delicado que se vivia no início dos anos 1990, havia uma equipe de psicólogos acompanhando de longe as filmagens. O artista relata a comoção de dar vida a um drama que amigos e conhecidos vivenciavam: descobrir uma doença para a qual não havia cura nem um tratamento eficaz como desenvolvido anos depois.
“Nunca houve nenhuma resposta negativa ou reação de preconceito do público como se eu tivesse HIV. Nada disso. Pelo contrário, até hoje recebo mensagens falando de uma série que não tem cópias nem foi reprisada ou veiculada em nenhum outro lugar. Lamento que, na época e até hoje, O Portador tenha sido renegada pela Globo.”
“Tínhamos uma equipe fantástica, com grandes atores, mas todos tocavam em algo desconhecido. Foi um desafio imenso como ator. Eu me sinto muito honrado, até hoje, de ter feito parte desse projeto”, afirma. O grande feito, segundo ele, foi colocar na TV, para um público amplo, uma discussão que ainda era restrita. “A ficção é sempre um bom caminho para isso, por poder abranger um grande número de pessoas”, reflete.
Nos anos posteriores a O Portador, a problemática HIV/Aids apareceu outras vezes em novelas, filmes e séries. Na Globo, Malhação tratou do assunto com a personagem Érica (Samara Felippo), entre 1999 e 2000. Periard também deu vida a outro soropositivo na novela Vidas Cruzadas (2000), na Record, como um homem que transmitia o vírus à esposa.
Passados 30 anos, o ator lamenta que o tema não seja mais frequente na mídia. “Se há desinformação sobre uma pandemia como esta que estamos vivendo, imagine sobre HIV, que não já não é mais falado em nenhum lugar. Não poderíamos ter parado de fazer campanhas e alertas. Houve uma transformação, um desenvolvimento da medicina, mas os casos continuam.”
Tire suas dúvidas sobre HIV/Aids em www.aids.gov.br, site do Ministério da Saúde.