Publicado em 23/10/2020 às 14:14:00
A Globo escalou Manuela Dias como autora responsável da faixa especial para o Dia da Consciência Negra e revoltou roteiristas negros pela falta de representatividade. A emissora carioca aceitou o projeto criado pela autora de Amor de Mãe em parceria com Lázaro Ramos, que vai dirigir o especial, e causou mal estar entre profissionais da área, que enxergaram até racismo estrutural. A produção está em estúdios e vai ao ar no próximo dia 20 de novembro com elenco de peso, como Taís Araújo, que interpretará Marielle Franco. Procurada, a Globo explicou que trata-se de um projeto especial e que a autora não vai escrever roteiros para a produção (leia a nota na íntegra ao final da reportagem).
Assim que o especial da emissora foi confirmado para o Dia da Consciência Negra, iniciou-se um burburinho entre os roteiristas negros sobre a decisão do canal de entregar o horário para uma autora branca. O NaTelinha entrou em contato com diversos autores negros, alguns funcionários da Globo, para ouvir a opinião de cada um deles sobre o assunto. A maioria considerou de mau tom a postura da emissora e lembrou que é preciso dar voz e espaço aos negros, não apenas em especiais, mas na dramaturgia de modo geral.
O especial será uma espécie de colagem do discurso de diversas autoridades negras para relembrar um pouco da importância da luta para a Consciência Negra no Brasil. Para o ativista Michael Paula, a Globo já errou na escolha da autora. "Se a ideia é fazer uma colagem no discurso dos negros, por que uma branca vai fazer essa seleção? Não existe no cast da emissora um autor negro capaz disso? São dois pontos fundamentais aí: ou a Globo foi racista por ignorar seus roteiristas negros no projeto ou é racista ao não ter roteirista negro entre seus contratados", afirma.
Paula lembra que pode parece bobagem um projeto ser assinado por um negro, mas não é. "Representatividade só é bobagem para quem se vê representado todos os dias. Os negros tiveram suas histórias contadas por brancos durante toda a história do Brasil e a Globo perdeu a oportunidade de ajudar a mudar essa história. Uma pena", reclama ele.
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Em conversa com alguns roteiristas da área, o NaTelinha percebeu um cuidado em tratar o tema, evidentemente por conta de possível represálias. Um colaborador negro, que pediu para não ser identificado por trabalhar na Globo, discordou da decisão. "A Manuela Dias é plenamente capaz, não é disso que se trata. Mas a mania de entregar para um branco contar nossa história incomoda. A emissora tem alguns roteiristas que poderiam fazer este trabalho, além de ganhar a oportunidade de crescer", lembra ele, que já está escalado para uma novela que ainda não entrou em produção.
Outro roteirista contratado da Globo não concorda totalmente. "Nos estamos fazendo um trabalho de construção. Vivemos num país onde o racismo estrutural é a regra. Diferente é ser diverso. Acho que estamos bem representados por Lazaro Ramos e por um elenco incrível. E pelo que eu soube não há roteiro, é apenas uma pesquisa de trechos de discursos originais. Então a reclamação é justa sempre, mas a luta é muito maior", garante.
Roteirista e diretora, Mariana Jaspe foi além na análise. "Quando vocês me pediram aspas sobre o assunto, fui entender do que se tratava o especial, uma vez que não faço parte do projeto e sempre evito cair no abismo das opiniões sem conhecimento sobre um tema. Pelas informações que obtive junto ao departamento responsável e a criativos envolvidos na produção - e que neste momento já se tornaram públicas - Falas Negras foi apresentando por Manuela e Lázaro juntos, a partir de uma proposta feita por ela. O texto ipsis litteris não é dela, são de autores negros mundiais, mas o recorte e a organização, sim. Dito isso, pondero: poderia ter sido proposto por uma autora negra? Obviamente, sim. Poderia ter tido a colaboração de uma autora negra? Obviamente, sim. Correria-se aqui o risco de incorrer no tokenismo? Possivelmente, sim", explica.
E ela vai além. "Por isso, creio ser coerente deixar como está e ser transparente sobre o processo. No meu ponto de vista, uma vez que Falas Negras tem o olhar de um homem negro na direção, de uma pesquisadora negra e de uma equipe composta majoritariamente por artistas negros, não sou contra a produção e guardo quaisquer objeções para depois que assistir - por enquanto apenas lanço questionamentos. Como roteirista, a questão que me toca e que acredito que precise ser colocada sempre em pauta - até que cheguemos a um ponto de equidade - é a necessidade de produzirmos narrativas audiovisuais (seja na Globo, na TV aberta e a cabo como um todo, streaming, cinema, etc) com um recorte de mundo feito por autores negros. Que no dia da consciência negra, por exemplo, tenhamos este especial, mas também outros muitos projetos de autoras e autores negros, afinal, segundo dados do IBGE de novembro de 2019, 56,10% da população brasileira se declara negra no Brasil, e isso precisa estar refletido na frente e por trás das telas também", encerra.
Já Vinícius Roberto Sylvestre deu uma opinião mais contundente. "Na era do novo século, vestir a camisa antirracista passou a ser a via de regra da maioria. Parte da branquitude brasileira, que outrora jamais pensou sobre seus privilégios raciais, passou a 'militar' em prol da causa. Perfis no Instagram de celebridades, artistas, pensadores e influenciadores brancos brasileiros - abarrotados com milhões de seguidores - passaram a ser 'ocupados' por pessoas negras, num ato de 'empatia' para com a causa, com o objetivo de esclarecer seus seguidores sobre as sequelas racistas sofridas durante o longo e tortuoso processo iniciado há mais de 500 anos com a colonização europeia", lembra ele, que é pós-Graduado em Literatura Comparada em História pela Universidade Castelo Branco.
"Como é possível num ano como 2020 formalizarem o anúncio de Manuela Dias - uma mulher branca e autora da novela interrompida pela Covid-19, Amor de Mãe - como autora de um especial em comemoração ao Dia da Consciência Negra? Como ainda é possível a Globo não contratar roteiristas e diretores negros para o primeiro escalão de seus projetos? A resposta é: o racismo estrutural. Não existem motivos que justifiquem tal escolha. Não após os diversos acontecimentos que suscitaram tantos debates, discussões e reflexões tanto na esfera pública como privada", garante.
Este episódio que gerou revolta entre roteiristas nos bastidores aconteceu pouco tempo depois de outra situação incômoda para a Globo. A emissora foi acusada de racismo estrutural ao embranquecer a Bahia na novela Segundo Sol. A trama se passava no estado nordestino, mas utilizou um casting basicamente branco com Emílio Dantas, Giovanna Antonelli, Adriana Esteves e Deborah Secco como protagonistas.
Autor do projeto, João Emanuel Carneiro falou na semana passada no Conversa com Bial sobre o tema, que chegou a ter interferência do Ministério Público. "A gente aprende com os episódios e nessa situação eu aprendi", garantiu o autor. A Globo, entretanto, deu sinais diferentes sobre aprendizado, ao menos é o que reclama o ativista Michael Paula. "Nem bem recebeu críticas e até queixa do MP sobre possível racismo estrutural, o canal colocou uma branca para escrever a história negra sob a perspectiva do branco".
Michael foi além e lembrou como o canal ignora os negros na criação. "Quantos negros você conhece entre os principais autores da Globo? Quantos negros escreveram para o horário das nove?", questionou. O NaTelinha fez uma pesquisa com todos os autores do horário das nove e não encontrou registro de nenhum negro assinando uma novela em qualquer dos horários.
Esta não é a primeira vez nesta década que a Globo conta a história do negro por meio de olhos brancos. Em 2012, foi ao ar a novela Lado a Lado na faixa das 18h, assinada por dois brancos, Claudia Lage e João Ximenes Braga. Foram seis os colaboradores da obra e em pesquisa pelos nomes, não aparece registro de nenhum negro. A supervisão da trama foi de outro branco, o autor Gilberto Braga, assim como a direção, do branco Dênis Carvalho.
O caso do especial da Consciência Negra chamou a atenção por ter acontecido pouco mais de um ano da Globo dar destaque no Jornal Nacional para a participação da emissora para o Laboratório de Narrativas Negras, que aconteceu no Audiovisual em sua terceira edição em 2019. Foram ao todo 35 roteiristas participando do evento patrocinado pelo canal, pelo Museu de Arte do Rio e pela Festa Literária das Periferias.
“A gente fica muito satisfeito em ver que essas pessoas estão saindo das oficinas e entrando no mercado, tanto na Globo como fora da Globo, e estão conseguindo entrar em projetos e construindo histórias”, afirmou Gabriela Máximo, gerente de Obras Literárias e Pesquisa da Globo, durante entrevista para o JN. “Ter mãos pretas escrevendo também enriquece muito as histórias de tudo o que a gente está conquistando aos poucos, é muito importante que o mercado esteja aberto também para essa diversidade, e a gente está aqui”, concordou à época a roteirista Priscilla Maria.
Procurada, a Comunicação da Globo enviou a seguinte manifestação:
"Manuela Dias tinha um projeto para o cinema, que não avançou. Como ela tinha uma boa e vasta pesquisa, apresentou para a TV Globo como um especial para o Dia da Consciência Negra. Lázaro Ramos se juntou ao projeto, que foi aprovado pela TV Globo.
O programa vai trazer textos históricos de 22 grandes personagens negros que, de 1600 aos dias de hoje, lutaram contra a escravidão, a segregação racial, o racismo e a intolerância. Os diálogos, estruturados de forma temporal, serão interpretados por atores como Fabricio Boliveira, Guilherme Silva, Ivy Souza, Babu Santana e Naruna Costa, que darão vida a Olaudah Equiano, Martin Luther King, Nina Simone, Muhammad Ali, Angela Davis, entre outros.
Manuela, portanto, não escreveu os textos, ela teve a ideia do projeto e apresentou a proposta, que foi muito bem recebida pela Globo. Manuela, com a ajuda da consultora e antropóloga Aline Maia, organizou os textos, que reproduzem depoimentos reais. O figurino, assinado por Tereza Nabuco, e a cenografia, assinada por Mauro Vicente, também estão sendo essenciais para ajudar a contar essa história. Assim como a trilha musical, que está sendo feita por Simoninha. Ao lado de Lázaro, a assistente de direção, Mayara Pacífico, e o editor José Carlos Monteiro, formam parte da equipe que está colaborando durante as gravações e finalização do especial.
Sobre o Laboratório de Narrativas Negras, acho que você não está com todas as informações. A Globo tem uma parceria com a Flup desde 2017 para a formação de novos roteiristas negros. Nestes três anos, mais de 100 alunos passaram pelo Laboratório e muitos já estão atuando em projetos de audiovisual, sendo que cerca de 20 estiveram em diferentes projetos na Globo, entre eles Cleissa Martins, autora do especial de Natal de 2019, “Juntos a Magia Acontece”, que acaba de ganhar o Prêmio Sim à Igualdade Racial 2020."
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