70 anos da TV

Incêndios e espionagem: Nilton Travesso conta as histórias mais inusitadas da TV

Veterano de 86 anos participou da inauguração da Record e da criação do Fantástico

O diretor de TV Nilton Travesso (Foto: Reprodução/YouTube/Vamos Falar do Brasil)
Por Paulo Pacheco

Publicado em 18/09/2020 às 04:15:02

É praticamente impossível contar a história de sete décadas da televisão no Brasil sem mencionar Nilton Travesso. O diretor de 86 anos participou da fundação da Record, em 1953, e integrou a equipe de programas inesquecíveis, como Família Trapo e os Festivais da MPB. Na Globo, implantou Fantástico, TV Mulher e Balão Mágico, só para citar três exemplos.

O trabalho de Nilton Travesso na TV repercute até hoje. Pantanal, próximo remake da Globo, fez sucesso da Manchete quando o profissional era o diretor de programação da emissora, em 1990. Ele chegou a "espionar" a concorrente para saber quando a novela global terminaria e, assim, poder levar ao ar a história de Benedito Ruy Barbosa.

Éramos Seis estreou no SBT em 1994 com participação direta de Nilton, na época chefe do núcleo de dramaturgia reaberto por Silvio Santos. Em 2019, a Globo produziu a sua versão da novela. A emissora carioca também exibe a série biográfica Hebe com adaptações do programa dela na Record, dirigido por Travesso.

Ao NaTelinha, o diretor com 67 anos de carreira na televisão conta alguns bastidores inusitados da televisão, como os incêndios que quase extinguiram a Record, os trabalhos na Globo e na Manchete e a relação com Boni e Silvio Santos, dois de seus patrões mais famosos.

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Incêndios na Record 

"Infelizmente, tivemos um incêndio muito grande no auge da Record. O primeiro foi na sede da região do Aeroporto, pegou fogo às 6h30. Da noite para o dia, perdemos tudo, todo o equipamento técnico, o arquivo de VT, e fomos para o teatro da rua da Consolação com as três câmeras que tinham inaugurado a Record, em 1953. Criamos a Equipe A: Manoel Carlos, Tuta, Raul Duarte e eu.

Naquele teatro, com três câmeras e um poço para orquestra, tivemos de criar uma nova televisão. Lá tivemos o programa da Hebe, que tinha uma audiência incrível, Família Trapo, Esta Noite se Improvisa. A Federação Paulista de Futebol proibiu as transmissões de jogos do Campeonato Paulista, e as tardes de domingo ficaram sem programação. Aí nasceu a Jovem Guarda, com Roberto Carlos. Fizemos O Fino da Bossa, com Jair Rodrigues e Elis Regina. A Velha Guarda ficou enciumada porque dávamos atenção só à nova geração (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil). Com Elizeth Cardoso, fizemos o Bossaudade, com a participação de toda a Velha Guarda.

Fizemos o primeiro Festival da MPB em 1966, um empate de A Banda com Disparada. Quando estava tudo começando a embalar outra vez, tivemos um novo incêndio no teatro da Consolação e fomos para o teatro Paramount, e começamos tudo de novo com o Festival de 1967, o movimento Tropicalista com Caetano e Gil. Estava tudo começando a ir bem, quando um novo incêndio em um domingo no teatro Paramount acabou com tudo. Deixamos o teatro em cinzas e fomos para o teatro Augusta, mas todo mundo começou a partir para sua carreira solo e, aos poucos, a televisão foi deixando de respirar, começou a ter dificuldades de pagamento. Foi muito triste, mas ela deixou uma marca, uma história."

Pressão em Boni

"Boni e eu temos uma ligação, uma amizade muito grande. Chegamos a trabalhar juntos em 1957, quando ele deixou a Tupi. Havia uma acordo entre Tupi e Paulista que se um ator ou diretor deixasse uma emissora para ir trabalhar na outra teria que ficar um ano parado. Boni entrou nesse circuito e eu, por fora, pagava um cachê para ele roteirizar o programa. Temos uma amizade muito grande até hoje, ainda tomamos o nosso vinho e às vezes não deixo de comer a paella que ele faz genialmente bem.

Em 1974, Boni me chamou para participar do primeiro Fantástico colorido. Fui para o Rio, onde morei durante uns anos, mas eu dizia: 'Boni, vamos fazer algo em São Paulo? Vamos montar um núcleo?'. A minha vida toda foi em São Paulo. Ele respondeu: 'Se eu montar núcleo em São Paulo, fica meio distante para controlar tudo'. Eu insisti, até que um dia ele falou: 'Tudo bem, vamos montar um núcleo em São Paulo, o que você quer fazer?'. Foi aí que nasceu a TV Mulher.

Boni me deu essa oportunidade para criar a TV Mulher, o Balão Mágico e o Som Brasil com Rolando Boldrin, um autêntico programa caipira, só acústico. Fiquei 18 anos na Globo."

Espionagem na Manchete

"Quando saí da Globo, montei uma produtora, mas não deu certo porque o plano econômico da época acabou com o nosso dinheiro. A Manchete me convidou para ser diretor de programação em 19 de maio de 1989, e voltei para o Rio de Janeiro. No mesmo dia, convidei o Jayme Monjardim. Eu o conhecia desde criança, cuidei dele quando a mãe, Maysa, começou. A primeira apresentação dela, e isso não apareceu no especial da Globo, foi na rádio Record, na rua Quintino Bocaiúva.

Jayme falou: 'Estou saindo da Globo porque vou fazer comerciais. O Boni me liberou e eu não quero fechar as portas. Se você falar com ele e não houver problema, posso ir'. Boni falou: 'Não tem problema, pode levar o menino'. E o Jayme deslanchou o projeto com o Benedito Ruy Barbosa, que estava havia cinco anos na gaveta da Globo, tanto que o Benedito topou ir para a Manchete se fizesse Pantanal exatamente como estava na cabeça dele. O Jayme deu uma nova leitura para a dramaturgia. Foi um acontecimento. Começamos a ter audiência, a competir com a Globo, estávamos empatando.

Vou contar um negócio impressionante, meio moleque que fizemos na época. Nós entrávamos na frequência da Globo no Sumaré e ficávamos ouvindo a programação conversando quando a novela iria acabar. Nosso casal 20 do telejornal, Eliakim Araújo e Leila Cordeiro, ficavam com duas, três notícias frias em cima da mesa. Quando terminava a novela da Globo, o Eliakim dava o boa noite e começávamos Pantanal, era impressionante. Depois de uns dois meses, a Globo descobriu que nós estávamos entrando na frequência deles. Fazia parte. É um lado que não deixa de ser romântico.

Também fizemos Ana Raio e Zé Trovão, mas a Manchete se descontrolou. Nós perdemos a Manchete que, até hoje para mim, foi uma grande emissora.

Pantanal na Globo vai ser um grande acontecimento. Eu vi no Fantástico a reportagem apresentando o novo projeto. Acho que a Globo vai dar uma vida totalmente diferente da Manchete, que tinha a leitura do Jayme. Não sei se a Juma vai ter o mesmo encantamento, o elenco de Pantanal também era uma coisa inacreditável."

Silvio Santos, Éramos Seis e Adriane Galisteu

"Acabei aceitando o convite para cuidar da dramaturgia do SBT. Fiz uma novela paulista, um remake da história da Maria José Dupré que se passava nos anos 20, 30 e 40. Para fazer o elenco não foi fácil, a começar pela própria Irene Ravache. Eu ia ao teatro Faap, onde ela estava representando uma peça, para convencê-la. Na terceira semana, ela disse: 'Tudo bem, Nilton. Eu vou fazer essa novela como pessoa física, não jurídica, porque tenho medo de que o Silvio corte os capítulos, se ele não gostar vai tirar do ar'. Falei: 'Nada disso vai acontecer, tenho certeza'. Com a Irene Ravache, houve uma abertura grande para fazer o elenco com Othon Bastos, Tarcisio Filho, Denise Fraga, Marcos Caruso, Jandira Martini.

Fiz a primeira cidade cenográfica de São Paulo, mandei até fazer o bonde no Rio de Janeiro. O Silvio me dizia: 'Mas por que precisa de cidade cenográfica?'. Eu respondia: 'Porque estamos trabalhando em três décadas, em que não tinha helicóptero, motos, os ruídos que estragam a sonorização eram completamente diferentes nas décadas de 20, 30 e 40 em relação aos anos 90'. Ele disse: 'Realmente, hoje temos uma cidade barulhenta'. E assim ele foi me abrindo espaço, me deu liberdade.

Quando faltavam 15 dias para estrear a novela e tinha que começar a fazer as chamadas, o Silvio me chamou e disse: 'Anda estou indeciso quanto ao horário que vamos colocar a novela. O que você está pensando?'. Falei: ‘Gostaria de fazer exatamente o que fizemos na Manchete: terminava a novela da Globo, entrávamos em seguida para ficar com esse público de dramaturgia. Terminou a novela da Globo, nós entramos com Éramos Seis'. Ele falou: 'Não, não, eu quero botar às 8 da noite'. Falei: 'Nossa, Silvio, em cima do Jornal Nacional! O JN é uma potência!'. Ele disse que iria pensar. Dias depois, ele me chamou: 'Eu pensei, e nem você nem eu. Vou botar a novela às 8 e repriso o mesmo capítulo às 9h30. Dava sete, oito, nove, dez pontos à 8 e dava 18, 20, 22 às 9h30. E ele somava as duas audiências.

Ano passado teve o remake de Éramos Seis na Globo, incrível. Assisti, mas gostava da Dona Lola feita pela Irene Ravache. Ela deu uma nobreza, uma força tão grande para a Dona Lola. O empenho dela é inesquecível.

Em 2004, a Adriane Galisteu me chamou para trabalhar com ela no SBT: 'Nilton, você podia me ajudar, dirigir o programa para mim? Eu preciso criar e estou muito sozinha'. Acabei indo. Quando ele contratou a Galisteu, era para fazer o programa que ela fazia na Record, É Show, à noite, uma vez por semana. Depois que assinou o contrato, Silvio marcou uma reunião e quando entramos ele falou: 'Não vou mais fazer o seu programa à noite. Eu vou fazer o seu programa diário, às 4 da tarde, e vai ser um game em que você vai falar pelo telefone e vai brincar com o telespectador'. A Galisteu quase caiu desmaiada! O público tinha que adivinhar quantos grãos de feijão tinha dentro da panela de pressão. Não tinha nada a ver com ela. A Galisteu tem um bom preparo para palco, para improvisar, mas ela começou a bater de frente com o Silvio. Os dois estavam infelizes, o Silvio e a Galisteu. Eu saí, depois montei uma oficina de atores, e atualmente estou na Panflix, emissora de TV da rádio Jovem Pan."

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