Publicado em 20/05/2022 às 04:50:00,
atualizado em 20/05/2022 às 10:44:59
Há pouco tempo, uma novela de sucesso na Globo representava uma mina de ouro para o seu autor. Hoje, o trabalho de um novelista – responsável pelo produto audiovisual mais consumido do país – segue altamente remunerado na emissora carioca, mas com uma queda surpreendente. Se, há três anos, uma trama das nove poderia render até R$ 3 milhões por mês ao escritor, atualmente o salário para esse ofício não passa de R$ 400 mil, de acordo com apuração feita pelo NaTelinha.
No modelo antigo de contratação da Globo, há cerca de cinco anos, os autores de novela tinham um rendimento na casa dos seis dígitos. Dependendo da faixa de horário, os valores chegavam a R$ 800 mil, quando estavam fora do ar, e a R$ 1 milhão durante os meses em que as tramas eram exibidas. Em 2019, por exemplo, Walcyr Carrasco embolsou R$ 3 milhões por mês no período em que a bem-sucedida A Dona do Pedaço foi ao ar.
Hoje, na Globo, os contratos variam de R$ 150 mil, fora do ar, e chegam ao máximo de R$ 400 mil quando as histórias estão em exibição. Nas plataformas de streaming, a negociação é por contrato por obra, fenômeno que já vem sendo adotado pela emissora brasileira e em breve deve atingir também os "medalhões", contratados do canal de longa data. É um modelo padrão nas TVs norte-americanas, cada vez mais presente na realidade por aqui.
Em abril, o escritor João Ximenes Braga apontou, em entrevista ao NaTelinha, que o mercado de trabalho para roteiristas enfrenta uma crise e deve entrar em colapso com o novo modelo de produção que vem sendo adotado pela indústria audiovisual. O objetivo das empresas, segundo ele, é economizar nos custos de mão de obra. Na ocasião, ele explicou que o setor passa por um processo de “uberização” e que, em algum momento, o problema deve chegar à justiça ou culminar em uma greve.
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Representante de uma nova geração de roteiristas, Silvio Cerceau lembra que essa modalidade de contratação já é um padrão há anos no exterior. “O modelo que temos/tínhamos aqui foi criado por uma emissora [a Globo] e copiado pelas outras. A era de ouro infelizmente acabou, e a intenção de um roteirista de ficar milionário apenas com um contrato ou uma produção não existe mais.”
O movimento garante um aumento da concorrência, segundo Cerceau. “Se não houver ‘panelinhas’ formadas pelas produtoras e plataformas de streaming, poderá, sim, ter chance para aqueles que de fato tiverem um bom produto. O importante é que os direitos autorais e morais sejam respeitados e não ocorra uma desvalorização da profissão, afinal o roteiro é o começo de tudo.”
“Eu continuo tentando, afinal para um roteirista escrever está no sangue, mas alguns roteiristas profissionais que conheço já têm um plano B, ou seja, outra área profissional”, revela Silvio, envolvido atualmente com uma sinopse de novela e projetos de séries, um filme e peças de teatros. “Enfim, espero que seja levada em conta a meritocracia”, defende.
Veterano autor de novelas, responsável por sucessos como Roda de Fogo (1986) e Vidas Opostas (2006), Marcílio Moraes sempre trabalhou com contratos de longo prazo. “Foram 19 anos na Globo e 15 na Record. Fiz poucos contratos por obra. Quando a emissora de TV aberta contrata por longo prazo, o diretor de dramaturgia sabe o que quer, baseado na tradição da empresa. No contrato por obra, a coisa é diferente.”
“Na verdade, o contrato por obra põe mais em xeque o contratante que o contratado, porque o contratante tem que ter capacidade de avaliação do profissional que contrata e do projeto que apoia. Não vejo esta competência na maior parte do pessoal que toma decisões nas produtoras e nas plataformas atualmente no Brasil”, opina Marcílio. Para ele, a nova tendência tem sido prejudicial ao audiovisual brasileiro. “Basta consultar os catálogos. Misturou-se o joio com o trigo, perdeu-se a noção da qualidade e excelência”, critica.
“A contratação por obra, ao mesmo tempo que deixa o profissional livre para trabalhar com quem quiser, traz insegurança, especialmente porque, como disse, o mercado hoje não tem um rumo definido, baseado na qualidade artística, na experiência, no conhecimento do público que o profissional adquiriu. As produtoras, frequentemente, dão preferência ao profissional de menor custo, como se todo mundo pudesse ser dramaturgo, bastando juntar uma turma numa sala para escrever. Arte não é quantidade, é qualidade.”
Segundo o veterano, novos roteiristas têm um grande desafio pela frente. “Devem lutar por contratos dignos, que preservem sua autoria e seus direitos. Sem isso, o audiovisual brasileiro vai para o buraco, arrastando, por consequência, a profissão de roteirista. Então, o conselho é: filiem-se às associações de roteiristas, a ABRA (Associação Brasileira de Arte) e a GEDAR (Gestão de Direitos de Autores Roteiristas) e lutem pela sua profissão.”
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