Publicado em 31/08/2020 às 05:00:00
Sérgio Mamberti foi casado com a judia Vivien Mahr (1942-1980), mãe de seus três filhos, Carlos, Duda e Fabrício Mamberti. Ao longo da carreira, ele recebeu homenagens da comunidade ortodoxa pela quantidade de personagens judeus vividos no teatro. Os fatores acirraram o desafio encarado pelo ator em Flor do Caribe: defender o vilão Dionísio Albuquerque, que escondia ser Klaus Wagner, um oficial nazista escondido na fictícia Vila dos Ventos, no litoral brasileiro.
A novela de Walther Negrão, exibida originalmente em 2013, será reprisada a partir desta segunda-feira (31), na faixa das 18h da Globo. O convite feito a Sérgio Mamberti, há sete anos, partiu do diretor Jayme Monjardim, que também escalou o filho do veterano, Duda Mamberti, para dar vida ao vilão nos flashbacks em que Dionísio aparecia servindo ao Holocausto.
“Fazer um personagem como esse é fascinante do ponto de vista da criação. Como ator, foi um exercício de encontrar em mim algo que repudio tanto. Eu tinha cenas muito difíceis, de muita crueldade. Dionísio era um homem preconceituoso, prepotente e manipulador”, define Sérgio Mamberti, em entrevista exclusiva ao NaTelinha.
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Aos 81 anos, ele se prepara para lançar sua autobiografia, intitulada Senhor do Tempo, no fim do ano. Com mais de 60 anos dedicados à arte, o ator insere o recente vilão entre seus grandes personagens na TV, ao lado do mordomo Eugênio de Vale Tudo (1988-89) e do Tio Victor de Castelo Rá-Tim-Bum (1994-97), tipos totalmente diferentes do mau-caráter de Flor do Caribe.
Na trama, Dionísio comanda o neto Alberto (Igor Rickli) e antagoniza com o judeu Samuel (Juca de Oliveira), que perdeu a família pelas mãos do algoz na Segunda Guerra Mundial. O ator se diz curioso para ver como a história será recepcionada em 2020, já que temas como fascismo e nazismo voltaram à discussão. “O mundo está passando um momento de governos autoritários, com o ressurgimento desse viés totalitário. Parece que a humanidade não aprende”, diz.
Como recebeu o convite para viver o Dionísio, um vilão tão cruel em Flor do Caribe?
Foi a oportunidade de fazer um personagem diferente de tudo aquilo que eu tinha feito na TV, já que geralmente sou chamado para papéis mais simpáticos. Já tinha vivido um mais arrogante em Anjo Mau (1997-98) e um senador perverso em Agosto (1993), mas nenhum deles como o Dionísio, um nazista extremamente cruel que até participou de ações do Terceiro Reich.
O trabalho marcou sua volta às novelas após mais de 10 anos no Ministério da Cultura. Como foi esse retorno à TV?
Era um trabalho que, de certa maneira, me testava. Após tanto tempo ausente, apareceu a dúvida se iria me reacostumar com o ritmo das gravações, a memorização do texto. Logo de início, eu plantava todas as premissas do que iria acontecer na história. Fazia cenas imensas, de até quatro páginas, com muito texto logo de cara e “bifes” enormes. A primeira semana foi de terror, pelo medo de não dar conta. Felizmente, consegui alcançar certa segurança, que me deu o prazer de fazer um personagem tão rico.
Foi desafiador interpretar um nazista?
Nasci em 1939. Como meus pais eram muito politizados, o fantasma de Adolf Hitler (1889-1945) era assustador na minha infância. Isso marcou muito minha formação e também meu engajamento político, de sempre participar de processos libertários, fiel aos princípios socialistas e democráticos, por uma sociedade mais justa.
Por isso, fazer um personagem como esse é fascinante do ponto de vista da criação. Como ator, foi um exercício de encontrar em mim algo que repudio tanto. Eu tinha cenas muito difíceis, de muita crueldade. Dionísio era um homem preconceituoso, prepotente e manipulador. Tudo o que eu nunca gostaria de ser, mas que abracei e fiz, e se tornou um grande personagem.
É possível defender, dar um grau de humanidade a um personagem como esse?
Como todo cara cruel, Dionísio tinha nuances, não era uma tônica só. O maior erro que um ator pode cometer quando faz um personagem com esse viés é dar a ele uma nota só. Procurei dar um caráter mais rico ao Dionísio. Ele tinha adoração pelo neto, havia descaminhos, onde se revelavam lados mais ou menos humanos, que criavam contrastes interessantes.
Seu filho Duda Mamberti foi escalado para viver o Dionísio em flashbacks. Como foi essa experiência?
Meus filhos são judeus e, apesar de não serem tão religiosos nem terem feito o bar mitzvá [cerimônia de inserção na comunidade judaica], têm apreço pela descendência. Em uma das gravações, Duda teve que se vestir de oficial nazista para uma cena em que colocava os judeus dentro de vagões para serem mortos nas câmaras de gás. Naquele dia, ele veio até mim e me mostrou que usava debaixo do figurino uma camisa com a Estrela da Davi. Foi a forma que ele encontrou de “exorcizar” toda aquela barra pesada.
Nos sete anos que nos separam da novela, falou-se muito em nazismo e fascismo, temas que pareciam adormecidos na época de Flor do Caribe.
A gente vê o que acontece no Brasil, com um governo tão autoritário, assim como em vários países… O mundo está passando um momento de governos assim, com o ressurgimento desse viés totalitário. Fico muito impressionado de como o Trump recria esse universo cruel sendo extremamente autoritário, elitista. Parece que a humanidade não aprende. Mesmo na Alemanha, em que as pessoas renegam esse passado, há um forte movimento neonazista.
Estou feliz porque vou poder rever, agora na quarentena, os capítulos [de Flor do Caribe] com mais calma, porque sempre há uma nova avaliação. E também estou curioso para saber como essa história vai repercutir nos dias de hoje. Nesses sete anos, o mundo mudou, especialmente depois da pandemia. Vamos ver como será o reencontro com esse personagem no contexto desse governo [de Jair Bolsonaro] tão assustador.
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