Publicado em 09/04/2021 às 04:00:18
Início de 1923. No Recife, desde meados da década anterior, um grupo de entusiastas dedicava-se a montar estações para transmissão e recepção de mensagens de radiotelegrafia. Com fones de ouvido, iam enviando e captando sinais longos e curtos do Código Morse. Por exemplo: – Bip! Bip! Bip! Biiiiippp! Biiiiippp!Biiiiippp!Bip! Bip! Bip! – Quem recebesse essa sequência saberia que alguém estava pedindo socorro. É o S.O.S. já usado na época para um barco solicitar auxílio em caso de problemas.
Um garoto de apenas 15 anos chamado Oscar Dubeux Pinto era tão curioso que pegou uma lata de goiabada, fez uma série de furinhos e criou um microfone movido a carvão magnético, peça fundamental para transmitir voz usando ondas eletromagnéticas. Era a peça que faltava para converter um daqueles equipamentos de radiotelegrafia em algo próximo do rádio como se conhece hoje. Está certo que as mensagens precisavam ser berradas a quase cinco metros de distância do microfone, evitando assim um eco que atrapalhava tudo.
Há anos, a história é contada pelo radialista, professor e pesquisador pernambucano Luiz Maranhão Filho e altera a forma como se compreende o início do rádio no Brasil. Não se trata apenas de um fato isolado, mas de uma sequência de acontecimentos ocorridos em torno de uma associação: o Rádio Clube de Pernambuco, que, aos poucos, vai se transformar em “a” Rádio Clube, emissora ainda em atividade na cidade de Recife.
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De fato, durante muito tempo, prevaleceu a ideia de que esse meio de comunicação tem sua origem na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, entidade fundada em 20 de abril de 1923 por Edgard Roquette-Pinto na então capital federal, e que faz sua primeira transmissão no dia 1º de maio daquele ano. Portanto, alguns meses depois dos pernambucanos. Curiosamente, o primeiro relato detalhado sobre o Rádio Clube, que é de autoria de Luiz Maranhão Filho, foi reconhecido em 1983 ao ganhar o Concurso Roquette-Pinto de Monografias, organizado pela então Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa (Funtevê).
Mais recentemente, os principais pesquisadores de história do rádio reconheceram o papel pioneiro do Rádio Clube de Pernambuco em um documento, a Carta de Natal, produzido durante o XII Encontro Nacional da História da Mídia, ocorrido em 2019 no Rio Grande do Norte. Em paralelo, vários estudos confirmaram o protagonismo dos entusiastas de Recife, como os trabalhos dos professores Luiz Artur Ferraretto, coordenador do Núcleo de Estudos de Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pedro Vaz Filho, pós-doutorando na Universidade de São Paulo , ambos apresentados em dezembro de 2020 no 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
Conforme Ferraretto, “Recife já respirava rádio antes da Primeira Guerra Mundial, embora a palavra rádio significasse o mesmo que wireless, ou seja, sem fio, qualquer tipo de troca de mensagens por ondas eletromagnéticas”. Cidade litorânea e fundamental para a economia do Nordeste, a capital de Pernambuco dependia da comunicação de empresas de importação e exportação com os barcos que chegavam e saíam do porto. “Fora isso”, destaca o pesquisador, “os curiosos em relação às inovações tecnológicas tinham acesso a publicações especializadas sobre eletricidade, telegrafia e telefonia, temas também frequentes nos jornais da cidade”.
Os interessados não se contentavam apenas com a leitura de revistas ou de livros. Em 1914, os diários de Recife publicavam notas sobre as determinações do governo federal para que fossem desmontadas estações clandestinas de radiotelegrafia existentes na cidade. A preocupação era manter a neutralidade do Brasil em relação à guerra iniciada na Europa. Havia a suspeita de que algumas dessas estações serviam aos interesses da Alemanha.
No ano seguinte, já chama a atenção uma carta publicada no jornal A Província, de autoria de Augusto Pereira, entusiasta que vai liderar o grupo fundador, quatro anos depois, em 6 de abril de 1919, do Rádio Clube de Pernambuco. No texto, aparece a informação de que havia, então, pelo menos uma dezena de entusiastas, vários dos quais tendo montado e operado estações antes do conflito. De acordo com Ferraretto, “é a perseguição das autoridades que impede a divulgação das transmissões, não havendo o seu registro, obviamente, pela imprensa”.
Logo depois da fundação do Rádio Clube, Augusto Pereira entra em contato com a Radio League of America, que reúne os entusiastas norte-americanos. Um representante é enviado aos Estados Unidos e, nos anos seguintes, três cartas dos pernambucanos são publicadas na Radio Amateur News, órgão oficial da entidade. Assim, fica claro que o Rádio Clube é a primeira associação do seu gênero na América do Sul. Graças a essa troca de informações, acaba sendo preservada uma das únicas imagens existentes das estações amadoras de Recife, no caso, a do próprio Augusto Pereira.
Luiz Artur Ferraretto destaca que a estação de Pereira comprova “certa confusão entre o que se conhece, mais tarde, como rádio – o meio – e o que se conhece, também mais tarde, como radioamadorismo”. A partir de 1920, entre os pioneiros de Recife, a palavra “rádio” passa a identificar o meio de comunicação de massa, transmitindo de uma estação mensagens sonoras para serem recebidas em vários pontos ao mesmo tempo. O motivo disso é que, pela proximidade geográfica, os entusiastas de Pernambuco, naquele ano, começam a captar as transmissões da KDKA, estação montada pela Westinghouse Electric and Manufacturing Company, em Pittsburgh, nos Estados Unidos.
Na época, o Rádio Clube de Pernambuco enfrenta uma série de problemas para se manter. Seus recursos vêm de mensalidades nem sempre pagas assiduamente pelos associados. Em 1922, Oscar Moreira Pinto, um radiotelegrafista, deixava a Marinha Mercante por problemas de saúde e retornava a Recife. Trazia na bagagem alguns equipamentos, juntando-se aos que tentavam reorganizar a entidade. Em paralelo, esse grupo descobriu que, no bairro da Casa Amarela, ocorriam transmissões sonoras. O responsável era Tito Xavier, que, anos antes, tinha chefiado o Serviço de Eletricidade do porto. “Como o nome de Tito Xavier consta na lista dos reorganizadores do Rádio Clube publicada na imprensa em outubro de 1923, é de se supor que as transmissões realizadas por ele tenham ocorrido antes disso”, explica Ferraretto. “A partir da reorganização, as transmissões tornam-se mais frequentes e, como o ocorrido desde meados da década anterior não é tão conhecido assim, muita gente passa a achar que a – não mais o – Rádio Clube surgira naquele momento.”
O professor salienta que esse conjunto de indícios aponta para o pioneirismo dos pernambucanos. Lembra que, para além da tecnologia em si, o rádio é uma instituição social. “A tecnologia é a mesma da radiotelefonia, que une duas pessoas em uma conversa com ida e volta. O rádio une um ponto de transmissão único a vários de recepção. Quem pensou em fazer isso antes no Brasil? Sem dúvida, foram os pernambucanos do Rádio Clube.”
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