Publicado em 23/06/2019 às 10:00:00
O apresentador do programa policial mais famoso da cidade suspeito de mandar matar para abastecer de pauta o próprio programa. Esse é o enredo da série documental “Bandidos na TV”, disponibilizada na Netflix desde 1º de junho. Pode até parecer ficção, mas os sete episódios retratam uma história real, a de Wallace Souza, que entre 1996 e 2008 apresentou o programa "Canal Livre" na extinta TV Rio Negro, hoje Band Amazonas.
Famoso em Manaus, o ex-policial e então deputado estadual acabou ganhando notoriedade nacional e até internacional após a polícia revelar suspeitas de ligação dele com o crime organizado. Toda essa trama foi objeto de pesquisa da equipe do britânico Daniel Bogado, diretor geral da série, que conversou com o NaTelinha essa semana.
“Muitas vezes, nossa equipe tinha que descobrir maneiras criativas para encontrar muitas destas coisas que tinham sido perdidas anos atrás”, conta Bogado. A reportagem também ouviu dois jornalistas que atuaram na cobertura do caso Wallace. “Muita coisa importante ficou de fora”, diz Clayton Pascarelli, da Record Manaus, e à época repórter da Rede Amazônica, afiliada da Globo.
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Outro jornalista também personagem do documentário é Mario Marinho, atualmente diretor do portal M2 e à época repórter da TV Em Tempo (SBT). No dia em que Wallace teve seu mandato cassado pela Assembleia Legislativa do Amazonas, a irmã dele, Marlúcia Souza, tomou o microfone e criticou a atuação da mídia no processo, aos gritos e palavrões: “A imprensa simplesmente tá acabando com uma família. Que imprensa é essa?”
Wallace Souza tornou-se um apresentador famoso a partir de 1996, no comando do “Canal Livre”, atração da antiga afiliada da Band no estado. O programa mostravam mortes chocantes e acompanhava operações policiais na periferia de Manaus. Como ex-policial, o então apresentador acumulava fontes na polícia e conseguia acompanhar de perto casos de tráfico, assassinatos e agressões. O programa foi crescendo ao longo dos anos e o catapultou para a carreira política.
Mas em 2008, a prisão de Moacir Jorge Pereira da Costa, o Moa, virou completamente o jogo para Wallace. Moa foi o responsável por acusar o ex-deputado de se associar ao crime organizado e matar rivais para render pautas ao seu próprio programa. Apesar do apresentador dizer que não conhecia Moa, a revelação de uma foto em que aparecem os dois na piscina, em um momento de descontração, caiu como uma bomba.
A imprensa ficou no meio da confusão entre o ex-deputado e seus defensores e a Polícia Civil do Amazonas. Mas, para quem participou da cobertura, a atuação da mídia foi correta. “Não houve nenhum tipo de pré-julgamento, como alegado por familiares. As emissoras trabalhavam com informações oficiais, disponibilizadas pela força-tarefa. E a foto do Moa surgiu e foi noticiada pela imprensa”, defende Mário Marinho.
Clayton Pascarelli concorda com Mário e lembra que ainda teve coisa importante que ficou de fora do documentário. “Eu conhecia advogados, por exemplo, que tiveram contatos com o Moa no dia da prisão dele e nem foram citados. Muita coisa importante ficou de fora. No direito, por exemplo, existe a prova testemunhal e isso existiu bastante. Fora a prova material. E fotos comprometedoras falam por si, né?”, avalia.
Curiosamente, apesar de abordar um programa televisivo, “Bandidos na TV” não coloca profissionais da televisão para compartilhar suas impressões. Com exceção da equipe do “Canal Livre”, a figura do repórter televisivo só é vista em trechos reportagens sobre o caso. O diretor Daniel Bogado explicou que foi uma decisão necessária para editar o produto.
“Nós estávamos tentando reduzir o número de pessoas que apareciam na série para evitar confusão. E descobrimos que muitos jornalistas de TV cobriram apenas parte do caso. Mas, pessoas como Paula (Litaiff, repórter de jornal impresso) cobriram todo o caso do começo ao fim. Por isso, foi interessante experimentar a jornada que ela percorreu pelos olhos dela”, comenta.
Como já mencionado no início da reportagem, um dos momentos mais tensos para a imprensa foi vivido por Mário Marinho. A irmã de Wallace, no dia em que ele foi cassado do Legislativo amazonense, tomou o microfone do jornalista, à época da TV Em Tempo, e criticou a imprensa. “Lembro que aquela foi a única vez que a vi. Foi um momento muito complicado para família e assessores, acredito que todos estavam muito tensos. Sou jornalista, a mim cabe apenas noticiar os fatos. De modo algum quis expor ela ou os outros”, pondera.
“Cheguei a falar algo sobre liberdade de imprensa, depois deixei ela falar e olhei para o cinegrafista para saber se ele estava gravando. Na edição resolvemos colocar no ar e tirar a parte que ela gritava palavrões. O caso tinha impacto nacional, foi uma sessão muito extensa. Acredito que foi a primeira vez que vi um plenário de uma casa legislativa totalmente em silêncio”, conta Marinho.
Wallace morreu em 2010, dois anos após o início das investigações, em decorrência de diversas doenças. Pascarelli, que acompanhou o caso de perto, lembra o quanto as revelações atingiram o apresentador. “Não só no Brasil, mas no mundo inteiro se você quer ver um político morto ou destruído, tire o seu poder. A ausência de poder faz as pessoas adoecerem, perderem a cabeça, se desequilibraram, entre outras coisas”, afirma.
O “Canal Livre” foi um fenômeno com as camadas populares de Manaus, até as denúncias contra Wallace surgirem. “Talvez pela situação situação econômica da época, muitas pessoas viam nos programas populares uma oportunidade de ajuda, ou financeira ou social. Para nós jornalistas, que cobríamos o cotidiano da cidade, era quase impossível não levar furo do programa. Eles tinham bastante fontes e a população via neles uma ‘solução’. Algo do tipo: o Estado não resolve, vamos ao ‘Canal Livre’ mostrar, que quando for ao ar eles solucionam”, relembra Mario.
Já Clayton contemporiza a situação. “Sinceramente, o ‘Canal Livre’ não era tudo isso. Era sim um programa que atingia bastante a periferia, mas àquela época a Rede Amazônica comprava pesquisas de audiência que mostravam a TV na liderança (em vez da atração de Wallace), por exemplo”, aponta.
“A televisão amazonense continua sobrevivendo tranquilamente mesmo após tudo isso. Foi só mais um caso que assusta e depois acaba esquecido pelo judiciário”, reflete Pascarelli. Marinho tem ponto de vista semelhante: “Foi marcante para TV amazonense, mas outros programas surgiram, veio a popularidade da internet, novos apresentadores etc. Penso que como tudo em TV, satura”.
O diretor do documentário, Daniel Bogado, acredita ter dado sorte para produzir “Bandidos na TV”. “Basicamente, tínhamos pesquisadores de arquivos procurando por todo o material e também muitas das pessoas que entrevistamos mencionaram outras equipes que vieram antes. Então, rastreamos, contatamos e garantimos os direitos de usar o material para nossa série”, discorre.
Por razões óbvias, Wallace não gravou depoimento, mas há VTs com ele explicando seu lado; assim como comentários de Raphael, filho dele que foi preso. “O material filmado com Wallace e Thomaz (Vasconcelos, à época Secretário de Inteligência do Amazonas) em 2009 foi feito por uma equipe de filmagem francesa que passou algum tempo em Manaus no meio do escândalo. Eles usaram o que filmaram para produzir um relatório de 15 minutos sobre a situação, mas, felizmente, guardaram todas as fitas originais. O material filmado com Raphael foi feito um pouco mais tarde por outra produtora que esperava produzir um documentário que nunca aconteceu”, conta.
A busca por imagens do “Canal Livre” (em boas condições, por sinal) também foi um trabalho braçal enorme, segundo Bogado. “Wallace havia fornecido alguns episódios para a equipe francesa que mencionei. Mas não foi o suficiente. Então, enviamos a nossa equipe para pesquisar em toda Manaus. Na época do Canal Livre, havia uma lei que dizia que tudo que saísse no ar tinha que ser registrado e mantido em uma produtora por pelo menos um mês, por razões legais. Descobrimos que muitas empresas de produção nunca excluíram as fitas e, assim, conseguimos encontrar mais de 100 episódios”.
Quanto a uma nova temporada, Bogado desconversa. “Disseram no Twitter que há um grande número de casos semelhantes que podem funcionar para a segunda temporada. Tenho certeza de que vamos analisá-los cuidadosamente antes de tomar qualquer decisão. No entanto, se houver uma segunda temporada, a história precisa ser muito chocante, ter grandes personagens, ser repleta de surpresas e também tem que haver um monte de arquivo de vídeo. Se a história tem algum desses elementos faltando, então, provavelmente não funcionaria”, condiciona.
“Eu acho que o Brasil está cheio de histórias extraordinárias esperando para serem contadas. Se houver ou não uma sequência, espero que ‘Bandidos na TV’ abra a porta para documentários mais longos, para poderemos ver muito mais obras extraordinárias neste país único e fascinante”, conclui o diretor.
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