Novela não é ciência exata, não tem fórmulas
Publicado em 31/03/2019 às 07:00:41
Quem acompanha dramaturgia televisiva, sabe o quanto que Ricardo Linhares é resiliente. O autor, que no próximo dia 30 completa 57 anos, já fez de tudo: temporada de "Malhação", novela das 18h, 19h, 21h, 23h, série, minissérie, humorísticos, produtos especiais, deu aquela mãozinha aos colegas na hora que mais precisaram e ajudou a revelar novos talentos. "Não há problema que não possa ser resolvido com calma e respeito", diz ele.
Prestes a voltar ao ar com a minissérie "Se eu Fechar os Olhos Agora", o escritor aceitou o convite do NaTelinha para relembrar alguns pontos de sua trajetória. Especialmente "Porto dos Milagres" (2001, 21h), em reprise no Canal Viva. "Revendo hoje a novela, sinto que foi um trabalho mais forte e mais bonito do que a percepção que todos tiveram na época em que foi exibida originalmente. Ela ganhou com a perspectiva do tempo, amadureceu e hoje encanta mais", avalia.
"Porto" ficou marcada por ter sido a última trama da faixa nobre da Globo a abordar o realismo mágico, com lendas urbanas, cidadezinhas cheias de mistério e situações surreais – algo que só foi retomado anos depois, com "O Sétimo Guardião".
Ricardo aproveita para esclarecer a história de que teria sido, de certa forma, conduzida "no piloto automático": "Aguinaldo e eu sentimos que já tínhamos feito muitos trabalhos no gênero fantástico. Não que nós rejeitássemos o estilo, mas achávamos que já tínhamos usando bastante a linguagem. Mas nunca disse que escrevi no piloto automático", afirma.
"Eu não acredito nesse tipo de trabalho (no automático). Já tive sucessos e fracassos, mas sempre escrevi com o coração e a intuição. Mesmo nos momentos em que eu errei, eu estava inteiro no trabalho, acreditando no que fazia", observa.
Novela não é ciência exata, não tem fórmulas
Ricardo Linhares sentenciacontinua depois da publicidade
A novela foi um sucesso – fechou com 45 pontos de média geral na Grande São Paulo, o mesmo que "Laços de Família" (2000) e um ponto a mais que "Terra Nostra" (1999), antecessoras diretas – mas de certa forma demorou a "pegar" o público.
"Entramos no ar com mais de 40 capítulos escritos, sendo que havia a primeira fase que durou por volta de uma semana. A partir da estreia, passamos a escrever em função do resultado que víamos no ar, e foi aí que engrenou", explica.
"Nem sempre é necessário ter esse feedback. Mas novela não é ciência exata, não tem fórmulas. Nesse caso específico, o retorno da direção, do elenco e da produção no ar foi fundamental para a trama ganhar mais corpo", acrescenta.
O ponto de partida de "Porto dos Milagres" veio dos livros "Mar Morto" e "A Descoberta da América pelos Turcos", ambas obras de Jorge Amado. Mas dos escritos do baiano, ficou pouca coisa: afinal, foi uma livre adaptação.
"Inicialmente, 'Mar Morto' seria uma minissérie de época. Mas Marluce (Dias, diretora-geral da Globo entre 1997 e 2002) pediu que fosse feita uma novela. O livro do Jorge Amado nem teria fôlego para uma minissérie, que dirá para uma novela. E não queríamos fazer uma novela das 21h passada nos anos 30", analisa.
"Do livro, ficou só a ambientação na Bahia, importância da religiosidade afro-brasileira e os nomes de Guma e Lívia. O resto foi totalmente inventado por nós, com mais influência de 'Macbeth', de Shakespeare, do que de Jorge Amado", aponta. E de fato foi assim. Em 1995, foi apresentada à emissora a sinopse de "Mar Morto". Notícias da época apontavam que Maurício Mattar seria escalado para viver Guma. Mas comparando o projeto da minissérie de 1995 com a novela das 21h veiculada em 2001, são obras praticamente distintas.
Na vida de Ricardo Linhares, "Porto dos Milagres" tem um sabor especial. "Profissionalmente, foi mais uma feliz parceria com Aguinaldo. E ainda teve o entrosamento com meu querido Marcos Paulo, que mais do que um ótimo diretor, era um grande amigo. Estreitei os laços de amizade com o elenco, também. No âmbito pessoal, eu estava comemorando 10 anos de união com meu companheiro (com quem estou junto até hoje, completando 28 anos de relacionamento)", revela. "Na minha opinião, essas 'duas vidas', pessoal e profissional, precisam estar entrelaçadas, caminhando juntas". A forma de trabalho utilizada foi a mesma de obras anteriores. "Tínhamos reunião semanal ou quinzenal, dependendo das necessidades da trama, com toda a equipe. Aguinaldo fazia as escaletas, eu distribuía as cenas entre os companheiros e também escrevia cenas; Aguinaldo fazia a primeira revisão do capítulo montado e eu fazia a redação final", elenca. "E funcionou muito bem. Nossa equipe de escritores era excelente: Maria Elisa Berredo, Filipe Miguez, Nelson Nadotti e Glória Barreto. Só tinha craque!", elogia. O primeiro capítulo era excelente. Quem se dispuser a revê-lo hoje há de concordar comigo. Uma coisa que o autor testemunhou na sua carreira foi o preconceito do telespectador com determinadas abordagens. "Em 'Porto', a religiosidade baiana, o candomblé e a influência de Iemanjá no dia a dia dos pescadores do Recôncavo foram os caminhos utilizados para misturar o realismo mágico. Mas inicialmente foi algo rejeitado por parte do público, que achava que havia 'excesso' de reverência à Iemanjá", rememora. Apesar de Aguinaldo Silva e Ricardo discordarem, isso ficou claro com o grupo de discussão da novela, as notas na imprensa e, principalmente, com pequenos gestos de pessoas próximas. "Meu porteiro, por exemplo, parou de assistir por orientação do seu pastor, alegando que havia excesso de culto à Iemanjá e muitas cenas no terreiro de Mãe Ricardina (Zezé Motta). Nós tivemos que diminuir as tramas envolvendo o candomblé e deixamos a personagem alguns blocos sem aparecer", lembra. Uma reportagem da Folha de S. Paulo, datada de 25 de março de 2001, mostra que alguns movimentos religiosos estavam condenando as tramas que estavam no ar, por causa da aura mística. Eram elas: "Estrela-Guia" (18h), "Um Anjo Caiu do Céu" (19h) e "Porto dos Milagres". Um manifesto assinado por bispos da Igreja Metodista orientava os fiéis a não verem essas tramas por ferirem "a formação cristã do povo brasileiro".
Mas o revide veio após a consolidação da plateia. "voltamos a abordar o tema. E ainda usamos a personagem da Arlete Salles (Augusta Eugênia) para antagonizar com Mãe Ricardina. Botamos nas falas de Augusta as críticas dos conservadores. Era uma vilã preconceituosa. Usamos a personagem para criticar os intolerantes", contou Linhares. Anos depois, um ataque mais forte foi lançado contra "Babilônia" (2015, 21h). "O primeiro capítulo era excelente. Quem se dispuser a revê-lo hoje há de concordar comigo. Havia emoção, romantismo, clareza de intenções na trama, apresentava bem os personagens e a história. Mas havia o beijo gay de duas senhoras, o que gerou reações imediatas de homofobia e gerontofobia", lamenta. "A temática da novela estava à frente do seu tempo. Uma das protagonistas era negra e o núcleo negro tinha uma importância inédita numa trama das 21h. Nós defendemos o sistema de cota nas universidades, com a personagem da Sheron Menezzes; mostramos um político evangélico corrupto e incompetente (Marcos Palmeira); expomos a corrupção das empreiteiras (Glória Pires e Cássio Gabus Mendes) com o Governo muito antes da Lava Jato. Enfim. Ela começou a ser atacada ideologicamente, por todos os lados. Houve críticas justas. Mas teve basicamente ataques conservadores e intolerantes", pontua.
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Convidado a fazer uma autoavaliação de si entre "Porto dos Milagres" e "Se eu Fechar os Olhos Agora", Ricardo é direto: "Estou bem mais velho. Mas aprendi muito com minha trajetória. De 2001 para cá, já supervisionei diversos trabalhos e já ajudei colegas em momentos complicados usando a experiência que adquiri. Portanto, olhando para trás o saldo é positivo. Mas eu não sou saudosista nem nostálgico. Eu gosto de olhar é para frente. Ainda tenho muito que aprender e que compartilhar", discorre.
"Os desafios que ainda estão por vir me motivam a seguir em frente. Tive a sorte de trabalhar e conviver com três grandes mestres: Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Silvio de Abreu. Aprendi muito com eles. E continuo aprendendo sempre, com todos os escritores com quem eu trabalho e convivo. Não tenho limitações de gênero e não escrevo sobre mim mesmo. Sou um contador de histórias", conclui.
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