Entrevista exclusiva

Marcílio Moraes revela sinopse recusada pela Globo e não vê futuro na TV: "Acho difícil que alguém me chame"

Veterano autor opina sobre crise de audiência, onda de remakes e futuro das novelas no Brasil


Marcílio Moraes
"Resisto à pressão para baixar as armas. Ainda me sinto plenamente em forma", diz Marcílio Moraes, que segue na ativa e completa 80 anos em 2024 - Foto: Reprodução
Por Walter Felix

Publicado em 12/12/2023 às 04:30,
atualizado em 12/12/2023 às 14:24

Veterano autor de novelas, Marcílio Moraes está longe da TV há quase 10 anos. O currículo de sucesso – foi colaborador em Roque Santeiro (1985) e titular em Roda de Fogo (1986) e Vidas Opostas (2006), entre outras tramas vitoriosas – não garante ao roteirista a permanência no ar. Recentemente, teve uma sinopse recusada pela Globo, cujos detalhes são revelados nesta entrevista exclusiva ao NaTelinha.

"Cá entre nós, acho difícil que alguém me chame. O tipo de novela que eu faço não me parece caber nas tendências ou nos modismos atuais. Meu texto é crítico, não sou bom para passar mensagens edificantes", reflete Marcílio Moraes. "Escrevo com uma perspectiva irônica, ou seja, tentando provocar um certo distanciamento, para que o espectador tenha condições de minimamente pensar sobre o que assiste. Não sei se isto pega bem nos dias atuais."

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Para o veterano, as novelas atuais vivem "uma baita crise", que começa na criação, aliada aos valores que as emissoras desejam transmitir ao público, por vezes comprometendo a ficção. A desvalorização dos novelistas, que sempre tiveram sua importância reconhecida pelas emissoras, também é citada. Para ele, há desprestígio dos autores veteranos. "Não sei aonde isso vai dar. Só pergunto se as audiências têm crescido", provoca.

A Globo, em especial, encara a polarização do Brasil. Ao vetar beijos gays ou a diversidade religiosa em suas novelas, a emissora quer agradar os conservadores, mas enfurece os progressistas. "É bom lembrar que o modelo de negócios da Globo – produzir e exibir novelas – se construiu contando com uma certa uniformidade do público. Se esta já não existe, o modelo pode estar mesmo no fim", aponta Marcílio.

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A crise de audiência se estende às histórias infantis do SBT e às produções bíblicas da Record – nesta emissora, o autor fez seus últimos trabalhos na TV, a novela Ribeirão do Tempo (2010) e a série Plano Alto (2014). “Uma primeira medida saudável pode ser contratar profissionais para dirigir a área artística da empresa e não familiares dos donos”, sugere ele.

Para 2024, quando completa 80 anos, há projetos de séries, filmes e peças de teatro. "Talvez eu devesse simplesmente dar-me por aposentado, acreditando que meu tempo já passou, que minha ficção ficou datada, que um novo e brilhante mundo se anuncia, o qual não reserva lugar para mim. Mas resisto à pressão para baixar as armas. Ainda me sinto plenamente em forma."

Leia a íntegra da entrevista com Marcílio Moraes

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NaTelinha: Recentemente, você apresentou à Globo a sinopse de uma novela intitulada Júlia. Pode nos contar sobre o que era a história?

Marcílio Moraes: Júlia é uma excelente sinopse, que escrevi com meu amigo Flávio Campos, e que guardava na gaveta há muito tempo, uma história de época, passada na transição do Império para a República. A personagem principal, Júlia, é uma modista “avant la lettre”, como dizem os franceses, ou seja, adiante do seu tempo.

Na imprensa saiu que era uma trama rural, passada numa fazenda. De fato, o primeiro capítulo acontece numa fazenda, mas a ação logo se transfere para a Corte no Rio de Janeiro e depois para Petrópolis, que era a capital de verão. Quer dizer, uma trama urbana, essencialmente.

A informação que a Globo deu para a imprensa – não fui eu que divulguei que tinha apresentado a proposta – foi bem precária. Talvez a melhor forma de contar o que é a história seja reproduzir o story line, quem sabe não aparece um freguês (risos)... Aí vai:

“Corre o ano de 1882. Júlia, uma jovem encantadora, vive com o pai numa fazenda no interior da província do Rio de Janeiro. Numa mesma noite, é estuprada pelo filho do barão, dono da fazenda, e seu pai é assassinado. Julia foge para o Rio de Janeiro na companhia de um escravo, chamado Tibúrcio. Quatro anos mais tarde, depois de muitas peripécias, ela está na aristocrática cidade de Petrópolis e apaixona-se por Demétrio, sem saber que o amado é irmão do filho do fazendeiro que a havia estuprado. Demétrio tinha voltado ao Brasil para desvendar um grande mistério: que acontecera com sua mãe, desaparecida há 20 anos. Uma série de circunstâncias e intrigas, inclusive do estuprador, afastam os dois amantes, até que Demétrio se casa com a filha de um nobre e Júlia, exímia desenhista e costureira (na verdade uma modista “avant la lettre”), monta uma casa de modas. Para se impor diante da mentalidade colonizada da Corte, ela utiliza-se de uma ex-prostituta francesa como testa de ferro dos negócios e obtém grande sucesso, embora sem o reconhecimento do seu valor. Júlia mantém-se fiel ao amor impossível e, por diversas vezes, sem que ninguém saiba, ajuda o amado a superar dificuldades na emergente indústria de tecidos. No final, Júlia é acusada do assassinato do pai de Demétrio e o processo põe a nu toda a farsa que montara. O desfecho coloca o casal romântico no dilema entre o amor e a realização profissional de Julia. A trama folhetinesca, além da Monarquia e da vida na Corte, envolve também a história dos colonos alemães que povoaram a cidade de Petrópolis e dos escravos em luta pela liberdade, especialmente Tibúrcio, cujos dotes musicais o levarão a participar dos primórdios da criação do samba.”

NaTelinha: Você ainda pretende emplacar a novela em alguma emissora ou, quem sabe, no streaming?

Marcílio Moraes: Nos últimos tempos, fiz algumas poucas tentativas com sinopses que eu tinha guardadas, sem obter resultados. Pensar uma nova trama só se houver encomenda prévia, devidamente paga, seja por parte de alguma emissora ou do streaming.

E, cá entre nós, acho difícil que alguém me chame. O tipo de novela que eu faço não me parece caber nas tendências ou nos modismos atuais. Meu texto é crítico, não sou bom para passar mensagens edificantes. Escrevo com uma perspectiva irônica, ou seja, tentando provocar um certo distanciamento, para que o espectador tenha condições de minimamente pensar sobre o que assiste. Não sei se isto pega bem nos dias atuais.

“Tenho a impressão de que as novelas vivem uma baita crise, o que certamente se deve a várias razões, mas eu destacaria a maneira como as novelas tentam lidar com as exigências ESG [conjunto de padrões e boas práticas que visa definir se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e corretamente gerenciada]. A inclusão racial, por exemplo.”

É muito bom ver tantos atores vivendo personagens pretos, pardos e índios. Eu, que estou na estrada há muitas décadas, lembro o quanto sempre foi difícil para mim emplacar personagens ou atores e atrizes pretos ou pretas numa novela. Poderia listar vários exemplos, tanto na Globo quanto na Record, mas prefiro não suscitar melindres. Não porque houvesse um racismo disseminado, mas porque não era a imagem que queriam, não era a imagem que se enquadrava no que as agências de publicidade exigiam para os anúncios.

Mas se a inclusão racial (não gosto da palavra) avançou, permanece uma questão que me parece mal resolvida. Em 2006/07, escrevi a novela Vidas Opostas [na Record], em que metade dos personagens vivia numa comunidade carente, entre eles muitos pretos, porque a nossa realidade social é essa. Na outra metade tinha negros também, claro – fiz questão disso porque nem todos os negros brasileiros pertencem às classes baixas. Vidas Opostas foi uma novela que marcou época por muitas razões, inclusive por esta, por mostrar a cara do nosso povo, o que, com raríssimas exceções, nunca tinha acontecido nas novelas.

Lembrei deste fato porque, no momento atual, se veem muitos negros e pardos nas novelas, o que é maravilhoso, mas com um detalhe incômodo. Em Vidas Opostas, a real condição social da maior parte dos negros estava lá. Na dramaturgia de hoje – posso estar enganado, porque não acompanho diuturnamente as novelas – me parece que os personagens negros são todos de classe média, o que pode soar um pouco falso. Quer dizer, como a gravíssima questão das classes sociais não é enfrentada, como o real e conflituoso problema social brasileiro não pode ser abordado, pelas características das novelas que se fazem, cria-se uma situação ficcional um tanto estranha.

NaTelinha: A Globo tem recusado sinopses de vários autores com boas novelas no currículo. Além de você, houve o caso recente da Lícia Manzo. Qual a sua opinião a respeito? Há uma desvalorização dos roteiristas veteranos?

Marcílio Moraes: O roteirista, tradicionalmente, tem sido desvalorizado no Brasil. Denuncio esta situação há muito tempo, seja pessoalmente como profissional, seja quando era presidente de associações de roteiristas, como a ABRA [Associação Brasileira de Autores Roteiristas] e a GEDAR [Gestão de Direitos de Autores Roteiristas].

Mas a história da dramaturgia nacional mostra uma exceção. O autor de novelas, ao contrário de outros escritores do audiovisual, sempre desfrutou de um status de reconhecimento profissional diferenciado e muito bem remunerado. Só que hoje em dia isto está mudando. O modo de produção das novelas já não é o mesmo e isto pode ser muito ruim para o destino do gênero no Brasil

É bom não esquecer que a Globo deu certo e se tornou o gigante que conhecemos porque soube valorizar, prestigiar e investir nos autores roteiristas. Ao escolherem as novelas como base do seu modelo de negócio, no final dos anos 60 e começo dos 70, os dirigentes da Globo tiveram a percepção de que estas eram obras que dependiam fundamentalmente do autor que as escrevia. O autor era o dono, no sentido de ter o total controle, da novela, e é assim que tem que ser. Qualquer outro arranjo que se tente vai ter resultados duvidosos.

“Atualmente, a Globo mudou o crédito tradicional de 'novela de fulano', o chamado 'possessory credit', 'crédito de posse', para alguma coisa como 'novela criada e escrita por fulano'. É um procedimento claramente destinado a reduzir a importância da autoria. A novela já não é mais do autor, é de sei lá quem. Ao mesmo tempo, como você disse na pergunta, observa-se o desprestígio dos autores veteranos. Não sei aonde isso vai dar. Só pergunto se as audiências têm crescido.”

Letícia Sabatella e Marcos Palmeira no remake de Irmãos Coragem
Letícia Sabatella e Marcos Palmeira no remake de Irmãos Coragem, exibido em 1995 - Foto: Divulgação/Globo

NaTelinha: Ao mesmo tempo que ignora histórias originais, a Globo está investindo em remakes, feitos sob encomenda. Qual sua opinião sobre essas releituras?

Marcílio Moraes: Ignorar histórias originais me parece ser um dos sintomas da profunda crise por que passa a produção de novelas no momento atual. Fiz o remake de Irmãos Coragem [clássico de Janete Clair em 1970 que ganhou uma segunda versão, escrita por ele, em 1995]. Era uma novela icônica, um dos maiores sucessos da Globo. Mas o remake, mais de 20 anos depois, claudicou na audiência.

O que de mais importante aprendi naquele trabalho foi que o sucesso de um remake não depende tanto da qualidade da história, mas do “zeitgeist”, desculpe a palavra alemã. É um conceito tradicional que significa “espírito do tempo”.

Exemplifico com a própria Irmãos Coragem. Na época da primeira versão, 1969, os garimpeiros armados na montanha remetiam, no inconsciente do público, ao movimento guerrilheiro que se esboçava contra a ditadura. Mas em 1995, época do remake, quem estava armado nos morros lutando contra a polícia eram os traficantes. Quer dizer, o espírito do tempo era totalmente outro. Meu conselho para quem toma decisões sobre isto é que avalie o “zeitgeist”.

NaTelinha: Recentemente, a emissora também tem se mostrado resistente nas cenas de casais gays, o que já parecia ter sido superado, além de evitar temáticas espíritas, em uma aparente tentativa de não desagradar o público evangélico. Acha que há um retrocesso quanto a esses aspectos?

Marcílio Moraes: Para responder, temos que considerar a polarização que vive a sociedade, o que pode ser fatal para as novelas. As novelas da Globo se firmaram num panorama de unanimidade nacional. Roque Santeiro [exibida entre 1985 e 1986], por exemplo, que eu escrevi, chegava a dar 100 pontos de audiência.

“Hoje, a sociedade está dividida e intolerante. Se a novela tratar, como você disse, de um tema espírita, os evangélicos não vão assistir. Se o autor fizer piada com a cultura do cancelamento, se arrisca a perder parte do público. E por aí vai. Todo mundo cheio de certezas, cada qual na sua turma, achando que pensar pela própria cabeça é perda de tempo.”

É bom lembrar que o modelo de negócios da Globo – produzir e exibir novelas – se construiu contando com uma certa uniformidade do público. Se esta já não existe, o modelo pode estar mesmo no fim.

NaTelinha: Enquanto isso, a Record e o SBT também enfrentam uma crise de audiência com as novelas bíblicas e infantis. Quais têm sido os erros dessas emissoras, na sua opinião?

Marcílio Moraes: Não tenho acompanhado de perto o panorama das novelas e das emissoras. Logo não sei se posso responder com muita propriedade.

“Bíblicas e infantis são obras de nicho. A Record e o SBT pareciam ter conquistado cada uma o seu e se mostravam satisfeitas. Se agora estão em crise, se o público ficou saturado de traminhas de criança e histórias da Bíblia, para essas emissoras não vejo solução senão buscar caminhos diferentes, não sei quais, mas uma primeira medida saudável pode ser contratar profissionais para dirigir a área artística da empresa e não familiares dos donos.”

Neste aspecto, a Globo talvez fique melhor, porque tem uma perspectiva ficcional mais ampla, mais aberta, mais universal. Mas se esta universalidade está em crise e possivelmente já não exista mais, como analisei acima, aí não sei.

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NaTelinha: No ano que vem, veremos um “boom” de novelas no streaming, com produções da Netflix e da HBO Max. Como avalia esse novo mercado?

Marcílio Moraes: O público é que vai dizer como irão as novelas no streaming. Pode não haver caminho fácil para elas nesta plataforma. Por quê? Para responder, é preciso analisar como as novelas se tornaram o produto mais lucrativo e exitoso do audiovisual no Brasil, o que se confunde com a história e com o modelo de negócios da Rede Globo, porque não se trata apenas de uma questão estética ou de gosto popular.

A empresa Globo foi montada e atua através das novelas. Não é apenas o entretenimento oferecido ao público. As novelas têm sido o centro do negócio dela, nestes últimos 50 anos. Tudo emana e volta às novelas. São os atores das novelas que fazem os anúncios publicitários, que participam dos programas de variedades, que dão entrevistas, etc.

São os assuntos das novelas que fornecem temas para debates ou para brincadeiras. Há algum tempo vi um quadro num programa matinal que girava em torno da culinária apresentada pelas novelas ao longo do tempo. Então, mostravam-se cenas dessas novelas em que os pratos tinham sido elaborados, ao tempo em que se davam as receitas e os convidados, geralmente atores, degustavam. E os anúncios eram de uma empresa alimentícia que havia criado produtos baseados nestas receitas e por aí ia. Comida de Novela, acho que se chamava assim. Quer dizer, as novelas impulsionam toda a programação.

Desde os anos 70, a máquina global se impôs à audiência, associada às agências de publicidade, dominando quase toda a mídia, num processo de retroalimentação: a novela ocupa a mídia, a qual em parte também pertence à Globo, que alimenta a publicidade, que sustenta e impulsiona a novela, e segue a roda.

“O sucesso acachapante das novelas globais, ao longo das décadas, além do talento dos escritores, atores, técnicos, etc. sempre teve esse esquema por trás. Já o streaming não dispõe desse aparato para garantir o sucesso ou pelo menos evitar um eventual fracasso catastrófico das novelas. Este o grande desafio do streaming. Será que as novelas irão despertar interesse suficiente nas diversas plataformas?”

Mesmo a Globo, que ainda mantém grande parte do seu poder, hoje em dia já não consegue a presença e a preponderância maciça que tinha na sociedade brasileira, quando fornecia assunto para as conversas e influenciava até mesmo a política, ou seja, sua programação fazia parte do dia-a-dia da nação. O esquema já não funciona como antes, o que certamente a tem obrigado a repensar seus procedimentos. Como tem um enorme acervo de novelas que pode reexibir, isto lhe dá vantagens no streaming sobre outras empresas. Mas serão estas vantagens suficientes no longo prazo?

NaTelinha: Conte-nos sobre os projetos em que você está envolvido atualmente e os planos para o ano que vem.

Marcílio Moraes: Talvez eu devesse simplesmente dar-me por aposentado, acreditando que meu tempo já passou, que minha ficção ficou datada, que um novo e brilhante mundo se anuncia, o qual não reserva lugar para mim. Mas resisto à pressão para baixar as armas. Ainda me sinto plenamente em forma.

“Tenho vários projetos de séries, filmes e peças teatrais. Cheguei à conclusão que, dado o tipo de ficção que eu faço, fundamentalmente irônica, só terei maiores chances se eu mesmo produzir as obras.”

Meu desafio, a esta altura da vida, é realizar os meus projetos através da minha produtora. Já fizemos um filme, O Crime da Gávea, baseado no meu romance, alguns anos atrás, e que está até hoje rodando mundo, em contratos com a Amazon, Telecine, Canal Sony, Air France, KLM, Canal Brasil, AXN Brasil, CIBN Oriental Network (Beijing) e outros.

No momento, estamos finalizando um documentário sobre o jurista e político San Tiago Dantas. E buscando financiamento e sociedade para projetos como a série policial Tocata e Fuga, a série cômica Fausta, o filme Jaguar, a peça de teatro Peito Aberto e outros. Sem falar no que está na gaveta, projetos escritos ao longo da minha carreira de mais de 40 anos. E ainda tem alguns livros que planejo publicar.

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