70 anos da TV

Incêndios e espionagem: Nilton Travesso conta as histórias mais inusitadas da TV

Veterano de 86 anos participou da inauguração da Record e da criação do Fantástico


O diretor de TV Nilton Travesso
O diretor de TV Nilton Travesso (Foto: Reprodução/YouTube/Vamos Falar do Brasil)

É praticamente impossível contar a história de sete décadas da televisão no Brasil sem mencionar Nilton Travesso. O diretor de 86 anos participou da fundação da Record, em 1953, e integrou a equipe de programas inesquecíveis, como Família Trapo e os Festivais da MPB. Na Globo, implantou Fantástico, TV Mulher e Balão Mágico, só para citar três exemplos.

O trabalho de Nilton Travesso na TV repercute até hoje. Pantanal, próximo remake da Globo, fez sucesso da Manchete quando o profissional era o diretor de programação da emissora, em 1990. Ele chegou a "espionar" a concorrente para saber quando a novela global terminaria e, assim, poder levar ao ar a história de Benedito Ruy Barbosa.

Éramos Seis estreou no SBT em 1994 com participação direta de Nilton, na época chefe do núcleo de dramaturgia reaberto por Silvio Santos. Em 2019, a Globo produziu a sua versão da novela. A emissora carioca também exibe a série biográfica Hebe com adaptações do programa dela na Record, dirigido por Travesso.

Ao NaTelinha, o diretor com 67 anos de carreira na televisão conta alguns bastidores inusitados da televisão, como os incêndios que quase extinguiram a Record, os trabalhos na Globo e na Manchete e a relação com Boni e Silvio Santos, dois de seus patrões mais famosos.

Incêndios na Record 

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Elenco de A Família Trapo, sitcom da Record na década d 1960 (Foto: Reprodução/Record) 

"Infelizmente, tivemos um incêndio muito grande no auge da Record. O primeiro foi na sede da região do Aeroporto, pegou fogo às 6h30. Da noite para o dia, perdemos tudo, todo o equipamento técnico, o arquivo de VT, e fomos para o teatro da rua da Consolação com as três câmeras que tinham inaugurado a Record, em 1953. Criamos a Equipe A: Manoel Carlos, Tuta, Raul Duarte e eu.

Naquele teatro, com três câmeras e um poço para orquestra, tivemos de criar uma nova televisão. Lá tivemos o programa da Hebe, que tinha uma audiência incrível, Família Trapo, Esta Noite se Improvisa. A Federação Paulista de Futebol proibiu as transmissões de jogos do Campeonato Paulista, e as tardes de domingo ficaram sem programação. Aí nasceu a Jovem Guarda, com Roberto Carlos. Fizemos O Fino da Bossa, com Jair Rodrigues e Elis Regina. A Velha Guarda ficou enciumada porque dávamos atenção só à nova geração (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil). Com Elizeth Cardoso, fizemos o Bossaudade, com a participação de toda a Velha Guarda.

Fizemos o primeiro Festival da MPB em 1966, um empate de A Banda com Disparada. Quando estava tudo começando a embalar outra vez, tivemos um novo incêndio no teatro da Consolação e fomos para o teatro Paramount, e começamos tudo de novo com o Festival de 1967, o movimento Tropicalista com Caetano e Gil. Estava tudo começando a ir bem, quando um novo incêndio em um domingo no teatro Paramount acabou com tudo. Deixamos o teatro em cinzas e fomos para o teatro Augusta, mas todo mundo começou a partir para sua carreira solo e, aos poucos, a televisão foi deixando de respirar, começou a ter dificuldades de pagamento. Foi muito triste, mas ela deixou uma marca, uma história."

Pressão em Boni

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Boni, ex-superintendente de operações da Globo, em entrevista ao Roda Viva (Foto: Reprodução/TV Cultura)

"Boni e eu temos uma ligação, uma amizade muito grande. Chegamos a trabalhar juntos em 1957, quando ele deixou a Tupi. Havia uma acordo entre Tupi e Paulista que se um ator ou diretor deixasse uma emissora para ir trabalhar na outra teria que ficar um ano parado. Boni entrou nesse circuito e eu, por fora, pagava um cachê para ele roteirizar o programa. Temos uma amizade muito grande até hoje, ainda tomamos o nosso vinho e às vezes não deixo de comer a paella que ele faz genialmente bem.

Em 1974, Boni me chamou para participar do primeiro Fantástico colorido. Fui para o Rio, onde morei durante uns anos, mas eu dizia: 'Boni, vamos fazer algo em São Paulo? Vamos montar um núcleo?'. A minha vida toda foi em São Paulo. Ele respondeu: 'Se eu montar núcleo em São Paulo, fica meio distante para controlar tudo'. Eu insisti, até que um dia ele falou: 'Tudo bem, vamos montar um núcleo em São Paulo, o que você quer fazer?'. Foi aí que nasceu a TV Mulher.

Boni me deu essa oportunidade para criar a TV Mulher, o Balão Mágico e o Som Brasil com Rolando Boldrin, um autêntico programa caipira, só acústico. Fiquei 18 anos na Globo."

Espionagem na Manchete

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Juma Marruá (Cristiana Oliveira) na novela Pantanal (Foto: Reprodução/Manchete)

"Quando saí da Globo, montei uma produtora, mas não deu certo porque o plano econômico da época acabou com o nosso dinheiro. A Manchete me convidou para ser diretor de programação em 19 de maio de 1989, e voltei para o Rio de Janeiro. No mesmo dia, convidei o Jayme Monjardim. Eu o conhecia desde criança, cuidei dele quando a mãe, Maysa, começou. A primeira apresentação dela, e isso não apareceu no especial da Globo, foi na rádio Record, na rua Quintino Bocaiúva.

Jayme falou: 'Estou saindo da Globo porque vou fazer comerciais. O Boni me liberou e eu não quero fechar as portas. Se você falar com ele e não houver problema, posso ir'. Boni falou: 'Não tem problema, pode levar o menino'. E o Jayme deslanchou o projeto com o Benedito Ruy Barbosa, que estava havia cinco anos na gaveta da Globo, tanto que o Benedito topou ir para a Manchete se fizesse Pantanal exatamente como estava na cabeça dele. O Jayme deu uma nova leitura para a dramaturgia. Foi um acontecimento. Começamos a ter audiência, a competir com a Globo, estávamos empatando.

Vou contar um negócio impressionante, meio moleque que fizemos na época. Nós entrávamos na frequência da Globo no Sumaré e ficávamos ouvindo a programação conversando quando a novela iria acabar. Nosso casal 20 do telejornal, Eliakim Araújo e Leila Cordeiro, ficavam com duas, três notícias frias em cima da mesa. Quando terminava a novela da Globo, o Eliakim dava o boa noite e começávamos Pantanal, era impressionante. Depois de uns dois meses, a Globo descobriu que nós estávamos entrando na frequência deles. Fazia parte. É um lado que não deixa de ser romântico.

Também fizemos Ana Raio e Zé Trovão, mas a Manchete se descontrolou. Nós perdemos a Manchete que, até hoje para mim, foi uma grande emissora.

Pantanal na Globo vai ser um grande acontecimento. Eu vi no Fantástico a reportagem apresentando o novo projeto. Acho que a Globo vai dar uma vida totalmente diferente da Manchete, que tinha a leitura do Jayme. Não sei se a Juma vai ter o mesmo encantamento, o elenco de Pantanal também era uma coisa inacreditável."

Silvio Santos, Éramos Seis e Adriane Galisteu

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Silvio Santos, apresentador e dono do SBT (Foto: Divulgação/SBT)

"Acabei aceitando o convite para cuidar da dramaturgia do SBT. Fiz uma novela paulista, um remake da história da Maria José Dupré que se passava nos anos 20, 30 e 40. Para fazer o elenco não foi fácil, a começar pela própria Irene Ravache. Eu ia ao teatro Faap, onde ela estava representando uma peça, para convencê-la. Na terceira semana, ela disse: 'Tudo bem, Nilton. Eu vou fazer essa novela como pessoa física, não jurídica, porque tenho medo de que o Silvio corte os capítulos, se ele não gostar vai tirar do ar'. Falei: 'Nada disso vai acontecer, tenho certeza'. Com a Irene Ravache, houve uma abertura grande para fazer o elenco com Othon Bastos, Tarcisio Filho, Denise Fraga, Marcos Caruso, Jandira Martini.

Fiz a primeira cidade cenográfica de São Paulo, mandei até fazer o bonde no Rio de Janeiro. O Silvio me dizia: 'Mas por que precisa de cidade cenográfica?'. Eu respondia: 'Porque estamos trabalhando em três décadas, em que não tinha helicóptero, motos, os ruídos que estragam a sonorização eram completamente diferentes nas décadas de 20, 30 e 40 em relação aos anos 90'. Ele disse: 'Realmente, hoje temos uma cidade barulhenta'. E assim ele foi me abrindo espaço, me deu liberdade.

Quando faltavam 15 dias para estrear a novela e tinha que começar a fazer as chamadas, o Silvio me chamou e disse: 'Anda estou indeciso quanto ao horário que vamos colocar a novela. O que você está pensando?'. Falei: ‘Gostaria de fazer exatamente o que fizemos na Manchete: terminava a novela da Globo, entrávamos em seguida para ficar com esse público de dramaturgia. Terminou a novela da Globo, nós entramos com Éramos Seis'. Ele falou: 'Não, não, eu quero botar às 8 da noite'. Falei: 'Nossa, Silvio, em cima do Jornal Nacional! O JN é uma potência!'. Ele disse que iria pensar. Dias depois, ele me chamou: 'Eu pensei, e nem você nem eu. Vou botar a novela às 8 e repriso o mesmo capítulo às 9h30. Dava sete, oito, nove, dez pontos à 8 e dava 18, 20, 22 às 9h30. E ele somava as duas audiências.

Ano passado teve o remake de Éramos Seis na Globo, incrível. Assisti, mas gostava da Dona Lola feita pela Irene Ravache. Ela deu uma nobreza, uma força tão grande para a Dona Lola. O empenho dela é inesquecível.

Em 2004, a Adriane Galisteu me chamou para trabalhar com ela no SBT: 'Nilton, você podia me ajudar, dirigir o programa para mim? Eu preciso criar e estou muito sozinha'. Acabei indo. Quando ele contratou a Galisteu, era para fazer o programa que ela fazia na Record, É Show, à noite, uma vez por semana. Depois que assinou o contrato, Silvio marcou uma reunião e quando entramos ele falou: 'Não vou mais fazer o seu programa à noite. Eu vou fazer o seu programa diário, às 4 da tarde, e vai ser um game em que você vai falar pelo telefone e vai brincar com o telespectador'. A Galisteu quase caiu desmaiada! O público tinha que adivinhar quantos grãos de feijão tinha dentro da panela de pressão. Não tinha nada a ver com ela. A Galisteu tem um bom preparo para palco, para improvisar, mas ela começou a bater de frente com o Silvio. Os dois estavam infelizes, o Silvio e a Galisteu. Eu saí, depois montei uma oficina de atores, e atualmente estou na Panflix, emissora de TV da rádio Jovem Pan."

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