Por que os autores não gostam de "cacos" no texto das novelas
Improvisação quase nunca é vista com bons olhos pelos novelistas
Publicado em 15/06/2019 às 11:09
A semana de "Verão 90" foi marcada por uma gafe que ganhou o noticiário que cobre televisão. A personagem Lidiane, interpretada por Cláudia Raia, em determinada cena da novela referenciou "Fera Ferida", mas errou ao afirmar que a trama dos anos 90 foi escrita por Glória Perez.
Nas redes sociais, muita gente criticou o texto da novela enquanto outros saíram em defesa da situação julgando que tratava-se de um erro proposital da personagem. Acontece que, no dia seguinte ao equívoco foi noticiado pelo jornalista do UOL, Maurício Stycer, que o erro não estava previsto no texto e foi um "caco" da atriz.
Caco é quando um intérprete insere um texto que não consta no roteiro, a chamada improvisação de fala. O termo é comum e muito visto, principalmente em humorísticos e no teatro, mas não é bem visto em telenovelas. O NaTelinha investigou as razões que fazem os novelistas terem calafrios quando o assunto é o chamado caco.
Atual autor de "A Dona do Pedaço", Walcyr Carrasco é um dos defensores de que o caco não pode ser feito dentro das novelas. Em palestra realizada durante a Bienal do Livro em abril do ano passado, quando ainda estava no ar com "O Outro Lado do Paraíso", o novelista contou uma história engraçada.
"Na novela, o problema, é que você imagina um personagem de um jeito e podem fazer de outro. O que é possível na novela é quando o ator trai muito (o roteiro) e você se vinga. Eu tive uma atriz bem famosa que inventava falas, e então coloquei um problema na garganta (na personagem dela) e ela ficou muda por duas semanas”, comentou levando o público às gargalhadas.
O caso aconteceu em "Chocolate com Pimenta" (2003), quando a personagem vivida por Elizabeth Savalla desenvolveu um problema na garganta e apareceu em cena por alguns capítulos sem conseguir falar.
Walcyr viveu situação semelhante e mais séria em "Sete Pecados" (2007) e também com Cláudia Raia, personagem da gafe da semana. É que a atriz era acusada por ele de modificar demais o texto que constava no roteiro e, sem conseguir convencê-la a não criar frases para a vilã Agatha, o autor optou por matar a personagem.
A história de cacos que se transforma em gafes também não aconteceu pela primeira vez em "Verão 90". Em "Passione" (2010), numa cena de tensão, alguns palavrões foram ao ar. Na situação, o drogado Danilo (Cauã Reymond) estava comprando drogas de um traficante e uma série de palavrões teriam sido ditos.
"Relaxa, por*a, eu tenho uma parada que é fo*a", disse o traficante com a cena no ar. Porém, ao ser questionado sobre a necessidade do uso dessas palavras o dramaturgo responsável pela novela, o atual diretor de dramaturgia da Globo, Silvio de Abreu, afirmou que não tinha colocado os palavrões no texto. "Pode ter sido um caco do ator ou mesmo orientação da direção", explicou.
O novelista Carlos Lombardi concorda com a visão de Walcyr Carrasco. Para ele, o caco não é bem vindo quase nunca porque o ator está inserido apenas em sua história individual dentro da novela e pode acabar falando algo que atrapalhe o desenvolvimento de outros personagens. Ele comentou que apenas um ator teve autorização para utilizar caco em suas novelas, Lima Duarte.
A visão dos diretores
Mas alguns diretores discordam dessa rigidez de diálogos imposta pelos roteiristas. Luiz Fernando de Carvalho, enquanto conduzida "Velho Chico" (2016) participou de uma reportagem para o "Fantástico" em que explicava seu método de trabalho na composição das cenas da novela. "Eu incentivo os atores e atrizes a criarem em cima dos personagens".
O exemplo mais emblemático aconteceu em "Avenida Brasil" (2012). A novela de João Emanuel Carneiro fez sucesso também por conta dos muitos cacos criados pelo elenco. A diretora Amora Mautner chegou a explicar à época que tinha um acordo com o autor. "Ele me dava uns 10 segundos antes da cena começar de fato e eu liberava o elenco para o caco. Até que um personagem específico dizia uma marca e a cena começava, como propunha o roteiro", justificou.
Algumas cenas de caco da novela acabaram se tornando icônicas para o público, como o caso de Zezé (Cacau Protásio) dançando e cantando sua própria versão de uma música. "Eu quero ver, tu me chamar de amendoim", cantarolava a empregada de Carminha (Adriana Esteves) em cena para delírio do público.
Novela de época e os cacos
O sucesso do folhetim foi tanto que Amora tentou repetir a dose em sua novela seguinte. Em "Joia Rara" (2013), a diretora permitiu que o núcleo do teatro também praticasse cacos, mas as situações acabaram não surtindo o mesmo efeito positivo. Palavras com gírias atuais foram ditas por mais de uma ocasião e surpreendiam até as autoras Duca Rachid e Thelma Guedes quando iam para o ar.
O erro de Cláudia Raia em "Verão 90" acabou por levantar um novo debate sobre um tema que é recorrente. A eterna guerra pelo tom autoral dos personagens: de um lado os novelistas que querem ser os proprietários intelectuais da obra, do outro diretores e elenco que querem dar uma pitada de visão própria para o texto e que, em alguns casos, acabam gerando gafes incríveis. A propósito, quem escreveu "Fera Ferida" (1993) foram Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzshon.