Publicado em 01/07/2021 às 05:54:00
Cynthia Martins apresenta diariamente o Band Notícias e ainda comanda o podcast Preto Teca. Uma das poucas âncoras negras do jornalismo nacional brasileiro, a apresentadora faz questão de levantar bandeiras em defesa das minorias e uma das formas de reafirmar seu compromisso com a comunidade afrodescendente é discutindo questões raciais, tendo o cabelo como uma forma de debate, tanto que ela é a primeira jornalista a usar diferentes tipos de tranças na TV. Apesar do crescimento de colegas negros no país, a comunicadora confessa que ainda há um longo caminho para percorrer sobre igualdade.
“Essa questão do cabelo é uma questão muito clara pra mim, muito valiosa. Eu uso meu cabelo hoje de forma natural, mas foi todo um processo. O meu cabelo faz parte de um processo da aceitação da minha negritude e foi um processo demorado, né? É um absurdo eu tá aqui contando hoje que fui descobrir como meu cabelo era, a textura dele, a cor, em 2005, com 20 anos de idade. Eu passei a vida inteira alisando meu cabelo, não alisando exatamente, mas usando todo o tipo de produto para que ele não fosse, de fato, o que ele é. Eu comecei a usar tranças no jornalismo em 2016. Eu era repórter do SporTV e eu já vinha pensando nisso, mas a gente sempre fica adiando em fusões dos padrões", diz ela em entrevista exclusiva ao NaTelinha.
E completa: "Eu nunca tinha visto uma repórter de trança. A aceitação foi super tranquila, meu chefe era o Fábio Seixas na época e ele disse: ‘Fala lá com o departamento de figurino. Pra mim, tá tudo bem’. E aceitaram. Foi até engraçado porque, quando eu fiz e apareci na TV com as tranças, uma das pessoas responsável pela imagem veio me dizer: ‘Ah, ficou ótimo. Era exatamente assim que eu queria’. Eu entendi na fala dela que ela queria daquele jeito porque se assemelha aos cabelos padrões, que não tem volume. Aquilo me chateou, porque eu pensei: ‘Isso aqui também é uma possibilidade de usar o meu cabelo, mas não é o meu cabelo natural. Meu cabelo natural é volumoso’. Já cheguei a ouvir em alguns momentos também que, nossa, ‘muito volume’. Aí a militância já vinha a flor da pele em dizer: ‘Obviamente você vai achar que tenho muito cabelo, porque você não lida com outras pessoas que tenham esse tipo de cabelo. Os outros repórteres são brancos do cabelo liso, então é diferente ter essa imagem’”.
“Então é uma coisa que brigo muito, porque se nós somos mais de 50% da população e, nos nossos guetos, de onde eu venho, da periferia, a maioria da população é negra, e até o Yuri Maçal brinca: namorar uma mulher preta é uma maravilha, porque você sai de casa, ela tá de black, você volta e ela tá de trança. No dia seguinte, a mulher tá de dread, essa mudança é comum, natural na comunidade negra. Se a gente fala de diversidade e você tem uma apresentadora negra numa bancada de Jornal Nacional, você tem que pensar na importância desta representatividade e não apenas na cor da pele dela ali sentada. Isso também passa pelo cabelo, isso passa pela transformação deste padrão, ele passa pelo cabelo. A trança que eu coloco de vez em quando eu mudo sim a todo momento, porque é isso que a gente faz. Tira, porque o cabelo precisa respirar, daqui a pouco coloca de novo. A Band foi muito aberta com essa minha mudança quando eu sugeri que queria mudar de cabelo”, acrescenta ela.
As mudanças no cabelo não são apenas por questões políticas. Ela confessa que é um pouco preguiçosa e gosta de variar na forma de mexer no visual. “Além da questão política, às vezes, isso passa pela estética, porque sou muito preguiçosa. Às vezes eu penso: ‘Ah, meu Deus, não quero mais pentear o cabelo. Tô cansada de pentear, seca, tem o tratamento’. As tranças são uma forma de me preocupar com esse cuidado. Então é isso, é bastante político”, detalha.
“Já ouvi algumas pessoas disserem que não, mas quem mandava de fato, tanto no SporTV, da Globo, quanto aqui na Band sempre foram muito abertos. Uma vez conversando com um grande amigo, repórter da Globo, a gente falava sobre isso e eu já tava de trança antes da fusão Globo e SporTV, e ele falou pra mim: ‘Com esse cabelo? Você nunca vai entrar na Globo’. E também é negro. O importante foi a percepção que a gente teve naquele momento, de não achar que a gente não teria essa porta aberta. E, de fato, isso aconteceu. Consegui entrar algumas vezes na Globo usando tranças e fico feliz com o número grande de outras pessoas e colegas que ascenderam na profissão. De ver esse meu amigo e tantos outros de black power e dread aparecendo na televisão, porque essa pluralidade somos nós”, destaca.
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Cynthia não esconde sua satisfação em comandar o Band Notícias, já que aparece diariamente em um telejornal nacional. Ela também embarcou no mundo do podcast, formando parceria com Milena Teixeira.
“Muito bacana participar, tá trabalhando do Band Notícia. A gente tem uma equipe muito jovem, uma equipe que tá sempre participando, fazendo o jornal acontecer. Eu faço questão de chegar mais cedo, porque tenho outras atribuições. Eu apresento o BandNews das 5h às 6h e também assumir o podcast Preto Teca, na rádio BandNews FM, ao lado da Milena Teixeira, então a gente chega cedo pra fazer um monte de coisa. Essa rotina já começa em casa, já acordo ligando nos canais de notícias, abrindo os jornais pra saber o que vem acontecendo, porque faz parte da nossa obrigação nunca desliga. Além de saber o que está acontecendo, eu participo das reuniões antes do jornal pra gente decidir o que vai entrar e o que não vai”, comenta.
“Faço questão de participar da execução mesmo do jornal, da edição de uma matéria, de mexer no texto, de dizer o que tá bom e o que não tá, então tem que ter um cuidado muito grande com as coisas que vão entrar, especialmente quando a gente, às vezes, tem um olhar viciado neste olhar em notícias sobre a morte de pessoas pretas em operações policiais, a gente tem que trazer esse olhar da diversidade da minha presença negra para o jornalismo possa sair melhor da abordagem dessas notícias”, explica ela.
Atualmente, o jornalismo tem mais negros à frente do vídeo, mas ainda é um número bem baixo comparado ao número de brancos. A apresentadora concorda com essa afirmação, mas garante que a evolução tem acontecido pouco a pouco e com o apoio de muitas pessoas.
“A gente vê sim um número maior de negros trabalhando hoje, mas ainda acho muito pouco. Eu acho que me ter à frente de um jornal nacional é extremamente importante, ter a Maju à frente de um jornal nacional é extremamente relevante, é uma mudança realmente de padrões que a gente vem acompanhando. Mas a gente até viralizou numa foto da Maju quando estreou no Jornal Hoje em que a equipe por trás era toda branca. Aqui não é diferente, isso não é uma acusação de nada a nossa profissão, é só uma constatação mesmo porque, no geral, o jornalismo quando vai buscar alguém pra trabalhar vai sempre buscar o currículo na mesma urna. Vira ali a urna da PUC, a urna da USP, a urna da UFRJ, que geralmente, quem teve acesso, são as pessoas que têm uma condição financeira muito melhor, que estudaram fora, que fizeram intercâmbio, que começaram a estudar idiomas desde muito cedo, e são pessoas brancas que têm essa denominação de sair na frente na questão educacional”, opina.
“Eu vejo sim hoje um número maior, tem até um movimento grande da importância da representatividade vinda da chefia, vindo de cima. ‘Olha, a gente precisa formentar isso, a gente precisa movimentar isso’. Eu fico feliz de ver hoje estagiários, produtores, um número bem maior de pessoas circulando por aqui nos corredores da Band, mas a gente quer mais. A nossa vontade é que essa mudança seja agressiva, com o pé na porta, mas precisamos lidar com um sistema estrutural, um racismo estrutural muito duro, muito enraizado que vai ser difícil a gente mudar rapidamente, como a gente gostaria. Costumo dizer que escolhi o jornalismo pra mudar o mundo e a gente tem aquela coisa juvenil de dentro da gente quando a gente entra na faculdade de mudar o mundo, os status e as coisas, mas você percebe que vai crescendo e não é tão fácil de mudar o mundo como Nelson Mandela. Mas a partir do momento que alguém olha pra você e você a impacta de alguma forma você muda a vida dela de pensar e dela entender todas as questões que estamos trazendo aqui, isso já é mudar o mundo, nem que seja de uma pessoa, porque sempre estamos impactando as outras, é um efeito dominó”, acrescenta.
Cynthia usa pouco as redes sociais para falar da vida pessoal, mas adora publicar informações sobre seu trabalho e questões de combate ao preconceito. Ela diz que o retorno é muito positivo e que sente que vem inspirando muitas pessoas por conta da sua luta.
“Essa mudança de mundo passa muito por esse contato com as pessoas que outros jornalismo não tiveram desse contato com o público, de compartilhamento com o público. Eu sou muito discreta nas minhas redes sociais, o que aparece mais mesmo é sobre o trabalho. Eu consigo aqui sentir esse termômetro de quem são as pessoas que tão ali acompanhando minha vida. Tenho certeza que a maioria, esse público, é majoritariamente negro, homens e mulheres. É um retorno que chega a emocionar, porque eu apareço na TV e vem uma menina, estudante de jornalismo, muitas estudantes aparecem, e também mulheres e donas de casa, dizendo: ‘Que importância ter você na bancada. Você me faz companhia todo dia com meu marido no sofá’. Ou a outra que diz: ‘Nossa, curso jornalismo por sua causa’. Ou homens que são educados, mas tem muita gente sem noção, principalmente homem, mas tem muito homem educado, que falam da importância de ter uma preta sentada ali naquela bancada. Até recentemente, quando eu tava com a trança, eu respondi uma mensagem em que a menina disse: ‘Nossa, obrigada por responder’. Ela tinha me mandando antes que adorava as minhas mudanças de cabelo, porque eu adorei que ela tinha copiado a última e agora ia copiar de novo. Então fiquei bastante emocionada, porque isso é comum nas comunidades, como eu falei”, relata.
“Então levar isso pra bancada de jornal é fundamental pra que a gente mude a cabeça das pessoas. Viralizou outro dia um jornalista português de dread. Foi incrível, foi maravilhoso. Por quê a gente não tem essa visão aqui no Brasil com os poucos negros que têm? Quem quer mudar não tem o direito de fazer outros penteados que são tão representativas para nossa comunidade? E a gente não tem que ser refém de nada. A pluralidade do nosso cabelo permite que ele possa ser liso, escovado, black power, dread, ser trança e todas as possibilidades dele”, conclui.
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