De Irmãos Coragem a Marília Mendonça: Livro revela histórias surpreendentes da Som Livre
Hugo Sukman resgata bastidores das trilhas de novelas e das trajetórias de grandes nomes da música brasileira
Publicado em 26/06/2024 às 04:01,
atualizado em 26/06/2024 às 10:52
O que a novela Irmãos Coragem, clássico da TV nos anos 1970, e a cantora Marília Mendonça (1995-2021) têm em comum? A resposta abre Som Livre: Uma Biografia do Ouvido Brasileiro, escrito pelo jornalista Hugo Sukman e lançado neste mês pela Globo Livros.
Hugo Sukman conta ao NaTelinha que, quando recebeu a encomenda do projeto, em 2019, buscou uma aproximação entre a gravadora fundada para produção e lançamento das trilhas de novela àquela que, 50 anos depois, passou a reunir os grandes nomes da música sertaneja.
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Ele então se lembrou da entrevista que fez em 2004 com Nonato Buzar (1932-2014). Compositor do tema de abertura de Irmãos Coragem, o artista contou ter ouvido, certa noite, sua canção ecoar das janelas de praticamente todos os apartamentos de uma rua em Copacabana.
“Foi quando me toquei que a Marília Mendonça tinha justamente esse objetivo, de ser ouvida por todos os brasileiros e cantar em cada capital brasileira”, lembra o jornalista. Foi esse desejo que deu origem ao projeto Todos os Cantos, capitaneado pela cantora em 2019.
“Quando conversei com a Marília, ela me disse: ‘Essa história desses shows pelo Brasil é a minha novela’. Achei curioso, porque novela é a grande expressão brasileira, é onde os brasileiros se encontraram nesses últimos 50 anos.”
Hugo Sukman
A partir desse paralelo improvável, o livro resgata histórias surpreendentes dos bastidores da Som Livre desde sua criação por João Araújo (1935-2013) em 1969 – o primeiro disco saiu em 1971, com a trilha da novela O Cafona –, até a venda para a Sony, entre 2020 e 2022.
Trilha de novela parou de fazer sentido como produto
O livro destaca trilhas que marcaram época, como as de Gabriela (1975), Dancin’ Days (1978) e Roque Santeiro (1985). Entre as mais recentes, Avenida Brasil (2012). “Acho que foi a última novela com uma trilha importante naquele sentido desenvolvido entre a Globo e a Som Livre”, aponta Hugo Sukman.
A relação das novelas com a música mudou, especialmente com a desvinculação da emissora com a gravadora. As seleções pararam de ser comercializadas em 2022 – as últimas lançadas em CD foram as de Nos Tempos do Imperador e Um Lugar ao Sol.
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“Não sai mais um produto dali. Hoje, as trilhas dependem muito mais das necessidades da novela do que da própria música”, pontua Sukman. Por muitos anos, essa foi uma relação mútua: muitas canções entravam nas tramas para impulsionar a venda dos CDs ou LPs.
Foi esse o contexto que motivou a criação da Som Livre. “A partir do sucesso de Beto Rockfeller, em 1968 na Tupi, a Globo passa a fazer novelas verdadeiramente brasileiras, sobre o Brasil contemporâneo. Por isso, necessitava de música brasileira nas histórias.”
“Assim como houve uma revolução no fim dos anos 1960, houve uma revolução agora. Mudou tudo. A trilha sonora de novela, como produto, para de fazer sentido.”
Hugo Sukman
Livro reúne “histórias surpreendentes” da música brasileira
A partir dos anos 1970, os temas da TV passaram a dividir espaço na Som Livre com artistas mais importantes do país, como Djavan e os Novos Baianos. Entre eles, Cazuza (1958-1990), que fez sua trajetória na gravadora comandada pelo pai João Araújo a contragosto deste.
A biografia também resgata passagens curiosas: como do samba Deixa Eu te Amar, de Agepê (1943-1995), lançado no auge do rock nos anos 1980 e impulsionado nas rádios como favor a um divulgador da empresa que estava prestes a perder o emprego.
“Todas as histórias são surpreendentes. Passamos a vida ouvindo as músicas, mas não sabemos o que há por trás delas. A partir do recorte de gravadora, é possível contar um pouco da história da música brasileira.”
Hugo Sukman
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Para a empreitada, além da pesquisa e de entrevistas complementares, Sukman usou seu repertório como jornalista cultural. “Como crítico de música, escrevi muito sobre trilhas de novelas e sobre vários daqueles artistas, então já havia muita pesquisa adiantada.”
Parte do repertório era também como ouvinte. O disco do Sítio do Picapau Amarelo, lançado em 1977, marcou a infância do autor. “Por isso, demos o título ‘Biografia do Ouvido Brasileiro’. Pode parecer uma coisa pretensiosa, mas é algo muito simples”, diz ele, que acrescenta:
“Quis contar a história das músicas que nos formaram. Um dos pressupostos do livro é que todo brasileiro acompanhou, ao longo da vida, as produções da Som Livre. Foi uma gravadora criada para isso, para lançar música para o Brasil inteiro.”
Hugo Sukman
Desde o fim dos anos 1960, a Som Livre assumiu esse diferencial. “É uma gravadora brasileira que faz música para o Brasil, totalmente diferente das outras, que são multinacionais – importantíssimas, mas sem esse objetivo único de lidar com o público brasileiro”, define o jornalista.
Rainhas – do rock, dos baixinhos e da sofrência – marcaram a Som Livre
Foi na Som Livre que Rita Lee (1947-2023) encontrou a liberdade artística que tanto procurava para lançar os discos mais importantes de sua carreira. Foi também onde Xuxa bateu recordes de vendagem. As duas “rainhas”, do rock e dos baixinhos, marcaram a história da gravadora, junto a uma terceira, que conquistou súditos com sua “sofrência”.
“Rita, Xuxa e Marília são cantoras totalmente diferentes entre si, mas foram três artistas construídas com a Som Livre.”
Hugo Sukman
“A Som Livre soube se adaptar muito bem às transformações do mercado. Foi a primeira gravadora no Brasil a compreender o novo momento na virada do século XX pro XXI, quando a indústria fonográfica entrou em crise com a pirata e surgimento da internet.”
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Sukman pontua: “Por vários caminhos, a Som Livre percebeu antes das outras o novo trabalho de uma gravadora, não apenas a vendedora de discos, mas com o investimento, por exemplo, na carreira dos artistas e como uma sócia deles”.
A percepção da ascensão do sertanejo – sem descuidar de outros gêneros de sucesso, como o gospel, o pagode e a nova MPB – garantiu que a Som Livre continuasse sendo referência nos tempos mais recentes, com o ingresso nas plataformas digitais.
“Marília Mendonça via a Som Livre como a grande gravadora que falava com o Brasil. Ela é de fato a maior artista desse segmento. Mesmo depois de morrer, continuou em primeiro lugar, batendo recordes mundiais de execução e ganhando prêmios.”
Hugo Sukman