Publicado em 17/08/2020 às 05:00:00
Trinta anos. É um tempo considerável, ainda mais se tratando de televisão. Foi por esse tempo que o programa policial Barra Pesada ficou no ar na TV Jangadeiro, afiliada do SBT no Ceará. Iniciado em 17 de julho de 1990, a atração saiu do ar definitivamente nesta última semana, em um processo de remodelação da programação da emissora. O policialesco era o último do "trio de ferro policial" do Nordeste que continuava no ar e confirma de vez uma tendência dos últimos anos: a audiência de crimes não compensa mais para as emissoras locais - salvo em casos de grande comoção.
O Barra Pesada deixou a programação da repetidora do canal de Silvio Santos em Fortaleza depois de ter sido suspenso por causa da pandemia do novo coronavírus. A mudança da grade só formalizou o que a direção da Jangadeiro queria: realizar um projeto multiplataforma com um tom mais ameno nas notícias, em vez de algo com uma abordagem tão antiga. No lugar, a emissora colocou uma edição mais longa do Jornal Jangadeiro. A audiência não é alta, a bem da verdade. O noticiário marca entre 8 e 9 pontos, enquanto o Barra Pesada, antes da pandemia, alcançava o dobro. Mas segundo fontes ouvidas pelo NaTelinha, a aceitação dos anunciantes ao produto é muito maior. E é isso que importa no momento.
Claro que a pauta policial ainda está lá no Jornal Jangadeiro, mas de forma amenizada e sem a embalagem que consagrou esse tipo de programa: corpos em exposição, trilhas macabras e entrevistas de gosto duvidoso com autores (ou suspeitos algumas vezes) de crimes como assassinato ou tráfico de drogas, com exposição degradante ou vexatória.
Faz pelo menos seis anos que esse novo fenômeno começou na televisão local brasileira. Até 2014, três apresentadores faziam parte desse eixo policialesco no Nordeste: Joslei Cardinot, José Eduardo e Nonato Albuquerque, em Pernambuco, Bahia e Ceará, respectivamente. O auge de seus programas foram na segunda metade da década de 2000, principalmente entre 2007 e 2008. Os índices eram espetaculares e os três chegaram a marcar, em algumas ocasiões, números maiores que 30 pontos de audiência - algo assustador para produtos exibidos na hora do almoço.
O primeiro a perceber que o programa policial não era mais um bom negócio foi José Eduardo, o Bocão. Entre 2006 e 2014, ele apresentou o Se Liga Bocão, uma revolução em programa popular na Bahia, para bem e para o mal. Juntando assistencialismo, esportes, pautas populares e muita cobertura policial, o apresentador fez a TV Aratu, afiliada do SBT na Bahia, atingir o primeiro lugar em 2007 com programação local, algo que não acontecia desde que a emissora deixou de ser uma afiliada da Globo, em 1987.
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Sua notoriedade o fez ser contratado a peso de ouro pela Record em 2008. Os índices continuaram em bons patamares até 2013. No ano seguinte, contudo, José Eduardo e a emissora de Edir Macedo perceberam que o produto tinha desgastado - caiu para o terceiro lugar de audiência, marcando míseros 5 pontos. Para entender o que estava acontecendo, a TV encomendou uma pesquisa de opinião e o resultado sentenciou: Bocão era querido, mas nem o público e nem os anunciantes aguentavam mais a atração que ele apresentava.
A Record acabou com o Se Liga Bocão e transferiu José Eduardo para o Balanço Geral em dezembro de 2014. A mudança deu certo e, desde 2016, o produto lidera a audiência na Grande Salvador e trava uma disputa ferrenha com a TV Bahia/Globo pelo primeiro lugar.
"Para mim, programa policial teve prazo de validade. E tudo demais cansa. Deixei para mudar o formato através de uma pesquisa interna da Record onde pedia para eu mudar e a estratégia deu certo. Cinco anos depois somos líderes no horário. Só tenho a agradecer ao povo que veio comigo", disse José Eduardo ao NaTelinha. Hoje, seus índices estão na casa dos 15 pontos.
Em Recife, Cardinot apresentava o Bronca Pesada na TV Jornal, afiliada do SBT por lá. Cardinot ganhou da Globo por três anos seguidos no Ibope: 2006, 2007 e 2008. Por causa das vitórias, a emissora da família Marinho teve que reformular todo o seu jornalismo local em Pernambuco, em experiência que serviu de piloto para o atual padrão de noticiários regionais da emissora, aproximando-se dos problemas dos telespectadores.
Cardinot ainda gozava de bons índices, mas a troca de emissora em 2011 - quando saiu da TV Jornal e foi para a TV Clube, atual afiliada da Record - iniciou seu processo de desgaste. Em outro canal, ele chegou até a vivenciar bons momentos, mas retornou a sua antiga casa após um impasse com a nova diretoria da Clube.
Em 2015, o jornalista retornou para a TV Jornal e ressuscitou o Bronca Pesada. Mas não era mais a mesma coisa e o apresentador começou a se sentir incomodado com o formato. Em setembro de 2016, o homem com cara brava e voz cavernosa baixou o tom e deu uma virada na carreira. Saiu de cena os crimes e entrou a prestação de serviço, com foco na resolução de problemas comunitários, e assuntos mais amenos - nascia ali o Por Dentro.
Deu certo. Cardinot é a maior audiência diária da TV Jornal e tem bom faturamento. De quebra, ainda incomoda a Globo. Na última terça-feira (11), o Por Dentro marcou 10,2 pontos no horário do almoço. No mesmo período, a Globo com o NE1 deu 10,9. Por vezes, chega a liderar com assuntos distantes do mundo do crime, como dúvidas sobre o auxílio emergencial do governo federal ou sobre a flexibilização das medidas restritivas estaduais, decretadas por causa da pandemia.
Mais uma vez, a pesquisa de público encomendada pela TV Jornal foi importante para Cardinot mudar. Na estreia de sua nova atração, ele notou que o policialesco somente não era algo bom para a TV e para o público. "No momento em que a gente abre o leque, temos outras formas de prestar serviço. A gente viu nas pesquisas a necessidade do público por um programa desse, de serviço", afirmou Cardinot em entrevista para o Jornal do Commercio, em 2016.
Não é só na região Nordeste que o número de programas policiais têm caído na TV. Em Goiânia, no Centro-Oeste, por exemplo, a única atração com essa abordagem no ar é a versão local do Cidade Alerta, apresentada por Silvye Alves na Record. Mas até ele está mais ameno. Monitoramento realizado pelo NaTelinha mostrou que, na última semana, 65% das pautas do programa foram sobre assuntos diversos, como os impactos da pandemia do novo coronavírus na economia local.
Na TV Goiânia, afiliada da Band, a emissora tirou do ar o Chumbo Grosso, programa policial que deu notoriedade para Marcão do Povo, hoje no SBT. Agora, a única produção local é o Na Tela, com foco na prestação de serviço e apresentado por Vicente Datena, filho de José Luiz Datena. Marca 1 ponto de Ibope, mas consegue bom faturamento.
No Espírito Santo, a TV Tribuna/SBT mudou o foco do Ronda Geral. Antes um policialesco sangrento, ele agora é uma revista eletrônica que se assemelha ao Balanço Geral, da Record, contando até com vídeos fofinhos de crianças que acompanham o programa.
O movimento está crescendo, mas ainda não é completo. Em Manaus, Sikêra Jr consegue altos números de audiência com seu estilo escrachado de xingar bandidos no Alerta Amazonas, que tem a versão nacional apresentada pela RedeTV!. No Distrito Federal, inclusive, a TV Brasília/RedeTV! acaba de contratar Brunoso, ex-repórter de Sikêra, para apresentar o policialesco DF Alerta, após a titular Nikole Lima migrar para a Record Brasília para ser titular do Balanço Geral Manhã.
No Ceará, que perdeu o Barra Pesada após 30 anos, continua no ar o Cidade 190, policial da TV Cidade, afiliada da Record. Mas a bem da verdade, o programa perdeu espaço para a estreia da versão cearense do BG. Um dos seus integrantes é Erlan Bastos, que ganhou fama na internet como fofoqueiro e foi contratado após descobrir que Edir Macedo, dono da Record, contraiu Covid-19 meses atrás.
O Balanço Geral Pará, apresentado na Record Belém por Marcus Pimenta, também sofreu mudanças. A capital tem a maior média de homicídios proporcional ao número de habitantes dentre as capitais do Brasil. Diante disso, a emissora manteve a pauta policialesca, mas com uma pegada mais humanista e respeitosa, sem o sensacionalismo de antes.
"Acho que a maneira de tratar a notícia policial tem sido diferente. O tom tem sido diferente. A abordagem também. E assim a gente tem feito em Belém. Não é reportagem policial, é reportagem que envolve segurança pública e mexe com a vida das pessoas. A diferença é que a gente não mostra corpo. A gente tenta trazer o lado mais humano da história", explicou Pimenta ao NaTelinha. Ele não acredita muito na diminuição de pautas policiais, mas reconhece a mudança de estilo para uma embalagem mais aceitável. "A gente tenta ir atrás dos detalhes da história. Não apenas da notícia de um crime, tenta ouvir a família", completou.
Se as TVs locais parecem perceber aos poucos que os policialescos não rendem mais como em outras épocas, as redes nacionais ainda relutam. O produto mais visto desse tipo, hoje, é o Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci na Record. Além de crimes, o programa investe em desaparecimentos e direitos do consumidor. Mas pautas policiais seguem sendo seu maior atrativo, além de causar polêmica. Recentemente, um homem foi assassinado após ter sido mostrado como suspeito de um crime por lá. Além disso, policiais militares de São Paulo estão sendo investigados por, supostamente, forjarem a prisão de um inocente só para aparecerem na atração.
Já a RedeTV! investiu em Sikêra Jr, o último grande fenômeno do jornalismo policial local no Brasil. No ar desde janeiro com seu Alerta Nacional, virou a maior audiência diária da emissora, com 3 pontos, e teve seu contrato renovado até 2027. Seu salário, segundo apurou a reportagem, quadruplicou com o novo vínculo por causa das luvas pagas pela assinatura, que serão diluídas com o tempo. Por mês, o apresentador passou a receber R$ 500 mil - o maior da emissora de Osasco atualmente.
Programas policiais ainda têm um espaço importante na programação da televisão brasileira, mas com o advento da internet e principalmente por causa do mercado publicitário, colocar um produto desses no ar não é mais um ótimo negócio. O impacto negativo é muito mais sentido hoje do que antigamente.
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