Publicado em 15/09/2020 às 05:30:02
Há exatos 40 anos, um palhaço norte-americano desembarcou na TV brasileira para nunca mais sair do imaginário popular: Bozo. Xodó de Silvio Santos, o personagem rivalizou com Balão Mágico, Xuxa e heróis japoneses, marcou a primeira década do SBT e hoje, como ícone pop, virou até apelido do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Por que um palhaço nascido nos Estados Unidos em 1946 fez tanto sucesso no Brasil? O NaTelinha viajou no tempo e encontrou diferentes intérpretes de Bozo no SBT para desvendar as razões do êxito do personagem.
Bozo ocupava boa parte da programação diária do SBT, que recebeu o apelido de "Sistema Bozo de Televisão". Entretanto, o palhaço estreou quase um ano antes da inauguração da rede. Na ocasião, o programa ia ao ar pela TVS, no Rio de Janeiro, e pela Record (que pertencia a Silvio Santos) em São Paulo.
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Em 1979, o comediante Wanderley Tribeck (Wandeko Pipoka) foi escolhido pelo criador do Bozo americano, Larry Harmon (1925-2008), para ser o primeiro brasileiro a vestir oficialmente o uniforme azul do palhaço. Em menos de dois anos, a audiência das manhãs do SBT saltou de 12 para 43 pontos.
Com o sucesso, vieram os problemas. Tribeck começou a se desentender com Silvio e se recusou a atender crianças por telefone ("Interessa ao SBT condicionar a criança a jogar. Eu não quis participar disso", desabafou em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1983).
Silvio se lembrou então do "menino do circo", um adolescente que já tinha apresentado números circenses no Bozo. Descoberto com 16 anos por Valentino Guzzo (1936-1998), produtor e intérprete da Vovó Mafalda no programa, Luis Ricardo foi contratado para interpretar o palhaço e ganhou a confiança do patrão (até hoje, é seu substituto imediato no SBT).
"Em um show, o Vandeko não quis descer de balão. Fiz e o Silvio viu a fita, e perguntou para o Valentino sobre o 'menino do circo'. Ele pediu para eu fazer os números de circo, mas vestido de Bozo", recorda o apresentador.
Incomodado com os rumos do programa após a saída de Tribeck, Silvio chegou a colocar Bozo na "geladeira", mas retornou com Luis Ricardo ao telefone com os telespectadores mirins. "Nem ele esperava tantas ligações, deu até problema na Telesp [empresa paulista de telecomunicações], queimava torres e tudo. Gravei a primeira secretária eletrônica para evitar o congestionamento das linhas", conta Luis Ricardo.
Ainda como Bozo "estagiário" e com o contrato prestes a vencer, Luis pediu para conhecer Silvio, seu grande ídolo. Ao ver o jovem artista, o dono do SBT perguntou: 'Você é o novo Bozo? É muito bonito para ficar só de máscara, o que mais você sabe fazer?'". A partir daí, nunca mais parou de trabalhar na emissora.
"Era uma loucura. Eu fazia o Bozo no domingo, das 7h às 11h, ao vivo. Silvio começava a gravação do Show de Calouros às 11h. Ele dava uma atrasadinha, eu saía correndo e ia para o Cine Sol compor o júri. Chegava ainda com a marca do elástico do nariz no rosto", diz o apresentador ao NaTelinha.
Pelo excesso de gravações, Luis Ricardo começou a ficar rouco. Diagnosticado com calos nas cordas vocais, percorreu circos atrás de novos Bozos. Entre os principais intérpretes, estão Arlindo Barreto (retratado no filme Bingo, de 2017), Marcos Pajé e Décio Roberto (1958-1991). Eles também tinham substitutos: Edilson Oliveira (que também interpretava Tereuteuteu e anos depois ficou conhecido pelo personagem Chiquinho), Luiz Leandro e Paulo Seyssel Neto (sobrinho-neto do palhaço Arrelia e primo de Gibe, o Papai Papudo do programa).
Luis Ricardo ainda viajou pelo Brasil para treinar Bozos regionais (Silvio Santos queria aproveitar o sucesso do palhaço em outros estados). No Rio de Janeiro, se revezavam no papel Charles Myara e Nanni Souza. Na Bahia, o escolhido foi Cau Alves. Em Minhas Gerais, Jonas Santos e Evandro Antunes representaram o palhaço, também com boa audiência e muitos perrengues.
"Trabalhei como apresentador e assistente de produção. Lembro que a Alterosa não dava muita importância. Eu arrumava a peruca, que já estava bem ruim. Entregava os brinquedos para as crianças descaracterizado. Por contrato, não podia falar para ninguém. Só pessoas próximas sabiam, mas minha mãe falava para Deus e o mundo. Um dia eu estava almoçando e chegou uma 'escola' na porta de casa: 'Falei para os meninos da minha escola que você é o Bozo, eles vieram te conhecer'. Saí de cara lavada e eles não entenderam", lembra Evandro Antunes, que trocou o emprego em uma fábrica de dentaduras para provocar risadas naturais como Bozo.
"Quando fiz o teste para o personagem, me deram uma fita VHS do Bozo de São Paulo, Luis Ricardo, que fazia as brincadeiras pelo telefone. Assisti várias vezes para fazer o teste e ter maior chance de passar, pois reproduzi como ele fazia e, aos poucos, fui colocando meu estilo. Deu certo", diz Charles Myara, intérprete do palhaço no Rio entre 1982 e 1985.
Bozo mais longevo do SBT (oito anos no ar), Luis Ricardo acredita que o programa virou fenômeno a partir de quando se afastou do formato norte-americano. Ele convenceu Silvio a mexer na atração para ficar com "cara de Brasil".
"Se fosse o Bozo americano, não teria feito sucesso. O humor é totalmente diferente. Falei para o Silvio Santos isso. Sempre o respeitei muito, mas na época tinha 16 anos e não tinha nada a perder. Eu o tratava como se fosse meu pai. Ele falou para eu fazer como eu quiser. Eu acabei abrasileirando o Bozo", afirma à reportagem.
Tietados por fãs crescidos, os Bozos são meros desconhecidos das crianças de hoje, mais interessadas em uma tela menor. "Eu tenho um netinho de três anos que até assiste a um ou outro desenho na TV, mas prefere o celular. O que a televisão está mostrando hoje as crianças não ligam mais. Se não gostam, passam o dedo na tela", compara Evandro Antunes, que atualmente trabalha com uma companhia de cultura em Nova Lima (MG).
De todos os Bozos, o único que ainda trabalha para crianças na televisão é Charles Myara, o Theobaldo da série Detetives do Prédio Azul (Gloob): "Bozo foi importante na minha trajetória, guardo as lembranças com muito carinho. Falar com crianças não foi um problema porque comecei no teatro infantil. Amo fazer DPA. Na TV, é o melhor que tenho".
"Me chamam de Bozo o tempo todo. Eu dou risada", disse Bolsonaro em maio, incorporando o apelido pejorativo que ganhou de opositores. A proximidade entre os dois nomes e a associação manjada de um político a um palhaço ajudaram a transformar o ídolo das crianças nos anos 80 em sinônimo do presidente em 2020.
"Ele ama", brinca Luis Ricardo ao comentar o apelido. Wanderley Tribeck já gravou um vídeo em apoio ao presidente afirmando que é um "elogio" a esquerda chamar Bolsonaro de Bozo. O intérprete mineiro, em contrapartida, não vê graça na comparação e prefere proteger a imagem de seu principal papel na televisão.
"Acho ruim, porque o Bozo é um palhaço infantil, trabalha com coisas legais. As crianças de hoje vão achar que o Bozo é um político, e não tem nada a ver. Para a imagem do presidente Bolsonaro, é bom, porque o perfil do Bozo é de um cara legal, mas para o Bozo não é bom, porque associa sua imagem à de um político, e políticos fazem umas coisas que… meu Deus do céu. Vejo por esses dois lados", reprova Evandro Antunes.
Na opinião de Charles Myara, Bolsonaro foi esperto ao se associar ao palhaço: "Raciocine comigo, se o personagem palhaço Bozo foi tão amado pelo público infantil, independentemente do ator que o interpretava, logo, se você chama alguém de Bozo com tom pejorativo não procede, na verdade você está fazendo um elogio. Faz sentido?".
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