Práticas abusivas

Roteiristas denunciam plataformas de streaming no Ministério Público do Trabalho

Os profissionais alegam que não conseguem ter diálogo com os contratantes


Fachada do Ministério Público do Trabalho de SP
A ABRA acionou o Ministério Público do Trabalho de SP e do Rio - Divulgação

A Associação Brasileira de Autores e Roteiristas (ABRA) acionou o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro e de São Paulo para denunciar práticas abusivas que estariam sendo adotadas pelas plataformas de streaming na contratação de roteiristas para séries e outros tipos de projetos.

A entidade, que representa quase 10 mil profissionais da área em todo o Brasil, disse à Folha de S. Paulo que tem recebido diversas reclamações dos associados, principalmente no que diz respeito à falta de diálogo entre eles e os contratantes. A advogada da associação, Paula Vergueiro, salienta que o principal objetivo deles é conseguir com que as plataformas dialoguem com os trabalhadores.

"Os roteiristas recebem os contratos [por meio das produtoras realizadoras do projeto] e a gente não consegue negociar nenhuma cláusula. São contratos impostos. Entramos com um pedido de mediação junto ao Ministério Público do Trabalho para que o órgão faça essa chamada para as plataformas virem conversar", explicou.

Vergueiro ainda explicou que as plataformas contratam produtoras nacionais para a execução dos projetos e essas empresas chamam os roteiristas, mas seguindo os modelos de contratos impostos pelas contratantes. Ela ressalta também que muitos dos contratos são versões traduzidas de documentos elaborados pela matriz da empresa no exterior.

"E existem cláusulas muito desequilibradas em favor das plataformas. Por exemplo, há contratos que exigem exclusividade do autor, que ele fique disponível para uma possível segunda ou terceira temporada de uma série, mas sem remunerá-lo por essa exclusividade."

Ainda de acordo com a advogada, outro problema que costuma acontecer com frequência é que o roteirista não pode acionar a Justiça se tiver alguma reclamação sobre o trato firmado. Caso isso aconteça, a mediação deve ser feita por arbitragem, que é quando chamam um profissional especialista para resolver.

"Mas é um procedimento caro, incompatível com as condições financeiras da profissão de roteirista", completou ela.

João Ximenes Braga relatou "uberização" em setor de roteiristas

João Ximenes Braga posando com expressão séria e camisa escura
Divulgação/TV Globo

Em depoimento enviado ao NaTelinha em abril deste ano, João Ximenes Braga, vencedor do 41º Emmy Internacional pela novela Lado a Lado (2012-2013), exibida na Globo na faixa das 18h, revelou a crise que os roteiristas estavam enfrentando e previu que a categoria entraria em colapso com o novo modelo de produção adotado pela indústria audiovisual.

Segundo ele, que foi contratado da emissora carioca por nove anos e deixou a empresa em 2016, o setor estava passando por um processo de "uberização" com a economia de custos feita pelas empresas e adiantou que, em algum momento, o caso chegaria à Justiça e poderia resultar em greve.

Confira na íntegra o depoimento de João Ximenes Braga sobre a situação no mercado de roteiristas

"Se as coisas continuarem como estão, esse mercado vai entrar em colapso, e não vai demorar, pois não é só o fim do contrato longo. Isso vem junto com uma nova visão de produção em que o roteirista é apenas um técnico e não mais pode almejar a posição de autor/criador. Tudo ao mesmo tempo, e de propósito, para baratear a mão de obra.

Quando terminou meu último contrato com a Globo, botei no papel alguns projetos de seriado, uma produtora grande se interessou por um deles, mas se recusou a me garantir em contrato que eu faria a redação final, alegando que “as plataformas podem querer dar o seu projeto pra algum roteirista da turma deles”. Perguntei: “e o que eu ganho com isso?”. Ela se omitiu da única resposta possível – “nada” – e não seguimos adiante. Por que diabos alguém vai criar uma história original se, além de toda a dificuldade em emplacá-la, pode ter seu produto roubado na mão grande? É uma ignomínia! Entender isso logo de cara foi um livramento, saí dessa corrida de malucos e voltei a dedicar minha escrita à literatura.

Conto esse episódio pra exemplificar que ser roteirista se transformou numa profissão sem atrativos e que não permite grandes ambições. Os veteranos estão, até onde me chega, descontentes. Já os jovens estão animados, surfando no hype. Mas ganhando mal, empilhados às dezenas em salas de roteiro em que até o chefe tem pouca ou nenhuma autonomia para conduzir a história, num sistema em que hoje os pareceristas que decoraram regras de manual de roteiro têm mais poder sobre o produto final que as mentes criativas.

Hoje sei que a ideia da obliteração da autoria não é apenas para evitar que um autor exponha sua visão de mundo, é um projeto financeiro: acabando com a autoria, acaba-se com os direitos do autor por sua obra. Inclusive, os contratos vêm da matriz americana e são assinados sem respeitar as leis brasileiras de direitos autorais. É mais uma forma de uberizar o roteirista ao máximo, mas que mais cedo ou mais tarde chegará na Justiça.

Não estou de todo pessimista porque acredito que o próximo governo não será inimigo da cultura e o cinema brasileiro voltará a abrigar essas mentes criativas. Um jovem roteirista terá oportunidade de ganhar um edital e decidir “esse ano não vou precisar entrar numa sala qualquer pra pagar boleto, vou fazer o filme da minha vida”. Se isso acontecer, vai ser bom pra todo mundo, inclusive para as plataformas de streaming, que terão produtos de audiovisual mais diversificados e criativos para licenciar e exibir.

Caso não, aí prevejo mesmo o colapso. Pois em breve os jovens que hoje estão abarrotando as salas de roteiro vão entender que, como roteiristas nesse sistema uberizado, não terão direito à ambição de conquistar nem a independência financeira, nem a realização artística. Previsão essa que não vem de bola de cristal, mas da História: quando o descontentamento é generalizado, se resolve ou na guilhotina, ou na greve." - João Ximenes Braga

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