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Glória Pires é o grande assunto, mas Oscar 2016 foi muito além

Temas como racismo e pedofilia são trazidos aos holofotes pela cerimônia


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Divulgação

A edição de 2016 do Oscar pode ser vista por três aspectos diante do grande público televisivo brasileiro: o show promovido pelo canal estadunidense ABC, a transmissão nacional ancorada em rede aberta pela Globo e o valor de conteúdo especial de um dos longas premiados na noite de gala do cinema.   

Para os norte-americanos, as tiradas sobre o racismo, capitaneadas pelo humorista Chris Rock (sim, o inspirador daquela série que “Todo Mundo Odeia”) foram destaque. O tema se tornou alvo de acalorados debates após a constatação de que nos últimos anos não houve a indicação de negros nas principais categorias.  

Problema bem similar, com a falta de uma melhor distribuição de postos de destaque em proporção ao aspecto real da população, acontece por aqui. O motivo disso também se repete, com a falta de papéis vindo desde a base da pirâmide do entretenimento.

A Academia fez certa graça do assunto, como vem se tornando modus operandi nos últimos anos. Afinal, são mais de três horas de premiação. Sem uma dose de bom humor, encarar as dezenas de anúncios sem cochilar se tornaria uma missão quase impossível.

A questão social não foi escanteada, porém. No caso do embate racial, negros de destaque e já donos da estatueta, como Morgan Freeman e Whoopi Goldberg foram donos de falas no bloco mais nobre da cerimônia, que não pode ser considerada memorável pelo seu roteiro, mas foi correta na condução, embora o conteúdo tenha despertado sentimentos opostos na plateia das redes sociais.

Ah, as redes... Por aqui, elas tornaram Glória Pires em fenômeno instantâneo graças ao seu desastrosamente divertido desempenho como comentarista da transmissão global.

A atriz, uma das maiores do país e que há pouco mais de 20 anos estava na cerimônia em Los Angeles graças a indicação de "O Quatrilho" entre os filmes estrangeiros, roubou a cena. Mas não necessariamente de forma positiva.

Sua performance confusa foi um dos maiores erros de escalação já vistos desde a escolha de Bernard como substituto de Neymar no confronto entre Brasil e Alemanha.  

Para Glória, tudo era “bacana”, “merecido” ou “interessante”. Suas intervenções transcritas não ocupam o espaço nem mesmo de um tweet.

Os econômicos elogios, claro, foram para o que ela conseguiu assistir. Sobre Divertidamente, a atriz confessou: “não assisti”. Já sobre a cantoria de Lady Gaga, a saída pela tangente foi mais enigmática: “não sou capaz de opinar”.  

O jeito perdido e ranzinza chamou a atenção do público, deixou a brasileira como personalidade mais comentada do planeta, superando todos os atores presentes no Dolby Theatre, mas ainda assim seria um descalabro considerar que sua presença foi bem-sucedida.

Vale lembrar que os comentários de Glória foram anunciados em todas as chamadas, algumas com narração dela própria. Ou seja, ela não caiu de paraquedas nos estúdios por uma decisão de última hora.  

O buzz na internet e os sorrisos esboçados com suas surpreendentes frases não compensam o absurdo que é a ida para uma transmissão desse porte sem maior preparação.

E mais do que isso, sem boa vontade. Se a sinceridade tivesse sido compensada com comentários mais profundos ou ao menos animados sobre os longas assistidos por Glória, talvez o saldo pessoal dela fosse melhor.  
 
Diante desse retrospecto e de que o posto “artístico” de comentarista parece vago após a morte de José Wilker (ano passado Lázaro Ramos é que exerceu a função), parece provável dizer que Glória (felizmente!) não deverá ter uma segunda chance. Caso tenha, 2017 não deve ser o ano, já que nele o Oscar coincidirá com o Carnaval.  

Sobre seus parceiros de transmissão, Maria Beltrão e Artur Xexéo, não há ressalvas. A dupla afinada do "Estúdio i" levou o espírito do excelente programa da Globo News para a noite da TV aberta. São figurinhas que aí sim podem ser repetidas ainda por muito tempo.

O pingue-pongue direto entre eles, quando Glória não era “intimada” a se enturmar, mostrava que se havia desinteresse de uma das participantes, outros dois estavam ali com pleno conhecimento do tema.

A boa atuação de Maria nos leva a repetir uma pergunta que é feita anualmente há quase uma década: quando será que ela vai ganhar mais espaço na Globo “mãe”? Faz falta, mesmo que em outras transmissões eventuais, como a dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Aliás, o furor causado pelos comentários de Glória Pires quase que ofuscou um novo acerto da Globo: a antecipação do horário de começo da exibição do Oscar na emissora.

A cerimônia ainda entrou cortada, é verdade. Quase 1 hora da premiação se perdeu. Mas o “Fantástico” e o “BBB” foram excepcionalmente mais curtos. Se em outras ocasiões a entrada no ar ocorria beirando a meia-noite, nesse domingo foi por volta das 23h20. Bom precedente.

Por último, mas não menos importante, é preciso abordar a dimensão da grata surpresa “Spotlight”, película consagrada pela Academia como melhor filme. A história real se passa em um grande jornal impresso americano, mas suas lições servem para a prática do jornalismo em qualquer meio.  

Numa época em que as gracinhas costumam se sobressair diante das longas, complicadas e arriscadas investigações, rememorar um episódio razoavelmente recente em que a “caçada” dos profissionais da informação fez a diferença é revigorante. Inspirador tanto para quem acompanha o jornalismo com uma distância regulamentar quanto para os imersos na profissão.

São reflexões permanentes das redações trazidas para o grande público com certo floreio, mas sem fugir da realidade ou apelar ao simples maniqueísmo. Apesar da clareza do apresentado, o telespectador fatalmente acaba instigado a pensar além.
 
Entre os temas habilmente abordados, estão o temor de perseguir as grandes instituições, a diferença entre olhar local e olhar forasteiro, a ponderação entre apurar mais e correr o risco de ser furado por um concorrente, a imprevisibilidade em momentos catastróficos e os diferentes modos de colher informações de cada fonte.

Tudo próximo da nossa realidade. Mesmo que a história se passe em Boston, os créditos do filme trazem os nomes de diversas cidades em que casos de abuso sexual similares foram cometidos por integrantes da Igreja Católica. Entre elas, Rio de Janeiro e Franca, no interior de São Paulo.  

O longa, além da dimensão que transpassa sua duração em si, também foi recheado de méritos para vencer, com um conjunto impecável, em que todo o elenco brilhou. Ganhou “apenas” duas estatuetas, mas de peso: fora a de melhor filme, foi também eleito como melhor roteiro original, curiosamente a primeira e a última premiação anunciadas.

Bem mais significativo do que as diversas mais irrelevantes de “Mad Max”. Todas as estatuetas são douradas, mas é como se “Spotlight” tivesse se saído com a liderança dos ouros caso o quadro fosse olímpico.

Sem dúvidas, seu coroamento foi um dos melhores feitos do Oscar não só em 2016, mas ao longo de vários dos últimos anos.
 

O colunista Lucas Félix mostra um panorama desse surpreendente território que é a TV brasileira. Ele também edita o https://territoriodeideias.blogspot.com.br e está no Twitter (@lucasfelix)

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